Um pouco de fuga e muito de encontro

Na imagem, foto aérea do ato com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em Copacabana, no Rio.

Kakay 26.abr.2024

É um momento de reflexão que alivia as angústias do dia a dia. A cada passo, parece que conseguimos nos distanciar das guerras, da violência e do ódio que hoje assolam o mundo. Corremos, muitas vezes, como quem está em fuga permanente. Um pouco de fuga e muito de encontro. Aprendi a me isolar nesses momentos quando fazia análise em Paris. Meu analista tinha seu consultório à beira do Jardin des Tuileries e, depois de cada sessão de 1 hora, vagava sozinho por mais 2 ou 3 horas. Era como se cada sessão tivesse 3 ou 4 horas.

“Perdi muito tempo até aprender que não se guarda as palavras. Ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam.” –Clarice Lispector Correr em Paris faz bem para a saúde e, especialmente, para o espírito. Normalmente, corro à beira do Sena e no Jardin des Tuileries. Mesmo cedinho, é interessante ver a enorme quantidade de turistas que parecem brigar por um espaço e por uma foto. Com a loucura das pessoas pelo celular, é comum ter que desviar de algum incauto que parece não notar a beleza de Paris e se ocupar tão somente da tela do WhatsApp.

São coisas que não conseguimos fazer no dia a dia comum, quando estamos em casa trabalhando. O mundo cotidiano tem uma velocidade que acaba nos distanciando de nós mesmos. Sem tempo para leitura, para não fazer nada e nem para olharmos devagar os detalhes que nos cercam. A crueza das notícias 24 horas faz mal às pessoas. Há, permanentemente, uma guerra a nos ocupar. Ou nós nos embrutecemos com as atrocidades, quase fingindo não as ver, ou, literalmente, enlouquecemos.

No Brasil, vivemos várias batalhas internas. A pobreza dominou as grandes cidades e as milhares de pessoas morando nas ruas não mais chamam a atenção. Parece que já fazem parte da arquitetura. E a irracionalidade campeia em quase todas as áreas. Em São Paulo, o governador insiste, abertamente, em apoiar a violência policial. Ao dizer, despudoradamente, que não se preocupa com a matança promovida pela sua polícia, deixa claro que essa atrocidade é para a direita e, especialmente, para a ultradireita, um capital político.
Não é preciso mais fingir que se preocupa com a crescente violência policial. Diferentemente, hoje, esse grupo de pessoas se jacta de apoiar abertamente as barbaridades cometidas em nome do Estado.
A herança maldita de 4 anos de fascismo bolsonarista tirou do armário seres que se libertaram de qualquer viés humanista. A cultura da arma de fogo, da prioridade do clube de tiro no lugar das bibliotecas, do exercício diário do machismo, do racismo e do ódio ao pobre fez com que a sociedade ficasse impregnada com um ar denso que dificulta a respiração e com uma espécie de muro que nos tolhe a visão. Hoje, vivemos permanentemente em um círculo de giz invisível, mas que nos aprisiona. E nos aniquila pouco a pouco.
E o pior é que é fácil perceber que existe um movimento mundial de valorização da ultradireita. O orgulho do brasileiro que se elegeu deputado pelo partido de extrema direita, o Chega, em Portugal, é de causar ânsia de vômito. Em recente discurso, ele disse que a Europa é para os brancos e a África, para os negros. E que vai lutar contra a imigração. E isso, pasmem, sendo ele um imigrante negro! É muito difícil discutir com quem não tem nenhum escrúpulo ou sequer um critério para se contrapor. É a valorização da mediocridade que, em nosso país, parece ter vindo para ficar.
O ataque sistemático e organizado que se faz ao Poder Judiciário, à toda evidência, faz parte desse propósito de desestabilizar a democracia. Não por acaso, trouxeram aqui o bilionário Elon Musk para atacar o ministro Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal. Para esses extremistas, a democracia é um perigo. Em nome de uma pretensa liberdade de expressão plena, buscam solapar as bases de uma sociedade democrática. Já cansou ver o tal Malafaia ser a voz estridente de um Bolsonaro “calado” por medo da prisão. A que ponto chegamos! Um ex-presidente da República que usa um ventríloquo patético para dizer o que não tem coragem de ele próprio falar.
É hora de colocar um final nos inquéritos, especialmente o que investiga a tentativa de golpe do 8 de Janeiro. O Brasil merece sair desse impasse que nos emparedou. Vamos julgar todos esses golpistas e dar a eles o que merecem. As guerras pelo mundo afora continuarão, a pobreza vai continuar a nos tirar o sono e a violência vai nos manter em estado de permanente alerta. Vamos tentar viver com esses fantasmas que são o espelho da sociedade moderna, mas, pelo menos, poremos fim ao fantasma do golpe e da boçalidade institucionalizada. Talvez aí a gente possa voltar a correr pelas ruas e praças de uma maneira mais leve.
Lembrando-nos do velho Pessoa:

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

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