Na imagem, Caetano Veloso e Maria Bethânia durante show no Estádio Mané Garrincha, em Brasília
“A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.”
–Pessoa, na pessoa de Alberto Caeiro.
É estranho, quase bizarro, o tempo que estamos vivendo. Uma sociedade dividida com o fortalecimento da ultradireita, que se constrói e se mantém com uma prática de ódio e de preconceito, faz com que mesmo as questões mais simples possam causar algum constrangimento. E, às vezes, é difícil entender os motivos que levam as pessoas a serem intransigentes e irascíveis. Todo cuidado tende a ser pouco quando a intenção não é aumentar o fosso. É claro que faz parte também do nosso lado nos posicionarmos contra as manifestações que beiram, ocasionalmente, a teratologia.
Gosto muito de música brasileira e, por contingências diversas, tive muitas chances de assistir e acompanhar grandes cantores e artistas. Não me esqueço de um pedido do Roberto Carlos, certa feita, para que eu convencesse a Maria Bethânia a cantar no show dele de final de ano. Como se eu tivesse alguma força junto a essa musa que, além da voz, que está entre as duas melhores do Brasil, ainda é a maior declamadora de Fernando Pessoa do mundo. Assisti a inúmeras apresentações dela pelo mundo.
No sábado (9.nov.2024), fui ao estádio de Brasília assistir a um espetáculo fascinante: Bethânia e Caetano. Um emocionante show para 60.000 pessoas, hipnotizadas, felizes e em transe. A força dos 2 no palco, pensei eu, extrapolaria qualquer pensamento que não fosse o de amor e o de alegria, numa viagem de fãs em estado puro, sem lenço e sem documento.
Eis que me encontro no camarote com um querido amigo a também curtir e viajar ao som de sucessos que conhecemos de cor. Um amigo de um grupo que, de alguma forma, os tempos bicudos do fascismo me afastou. Ainda que educadamente, numa tentativa de manter certo respeito. Ele se desgrudou do grupo só neste aspecto: não se distanciou de mim de uma maneira ostensiva. Teve inteligência emocional, o que permite um relacionamento civilizado.
De repente, enquanto Caetano canta “Sozinho”, do Peninha, esse meu amigo me diz bem baixinho, parecendo não querer dizer: “Você sabe que me criticaram porque eu vim ver este show, pois acham que é um espetáculo que não deve ser visto?”. Como se o Caetano, de 82 anos, e a Bethânia, de 78, fossem artistas perigosos aos bons costumes eleitos por essa direita que tem pavor à liberdade, à inteligência, à irreverência e, talvez, ao humor. Fiquei pasmo de ver onde buscam inimigos e como constroem os muros. Fossos de ignorância e de intolerância. Abismos que só servem para se perder.
Confesso que me senti surpreso e perplexo. Só queria aproveitar o enorme astral que os 2 irmãos conseguiram imprimir ao espetáculo. As pessoas cantando a plenos pulmões como se não houvesse amanhã. Sem absolutamente nenhum pudor de soltar a voz. A multidão, a meia-luz, a energia, tudo, enfim, contribuía para uma viagem, ainda que careta, a um espaço onírico que nos abraçava a todos. E, inesperadamente, sou avisado que aquele show era não recomendável pela turma que segue a cartilha bolsonarista. Confesso que, de alguma forma, senti que chegamos a um ponto sem volta. Na verdade, desde muito novo, sempre dei valor às pessoas que têm o mesmo sentimento do mundo do que eu. Podemos conviver com diferenças enormes e, às vezes, de fundo, sérias. Mas é necessário que exista um sentimento que justifique a existência.
É preciso ser tocado por emoções comuns, chorar por motivos que se explicam e emocionar-se sem ter uma razão óbvia. Isso é o tal sentimento do mundo. Por isso, depois do susto, voltei a curtir o show, irmanado por todos que estavam ali simplesmente felizes. E posso dizer que me senti abraçado por toda aquela multidão. Nem fiquei triste por tanto preconceito e ignorância. Simplesmente viajei nas letras que me fizeram voltar a um tempo que deixou de parecer longe. Eu era feliz misturado por um bando de gente que só queria deixar a vida acontecer. Sem ter que explicar o inexplicável. Por alguns segundos, senti pena do meu amigo; depois, nem isso. Eles que se entendam.
Assim, remeto-me ao Ferreira Gullar:
“Resta ainda acrescentar –pra se entender essa noite proletária– que um rio não apodrece do mesmo modo que uma pera
Não apenas porque um rio não apodrece num prato
Mas porque nenhuma coisa apodrece como outra (nem por outra).”