Se essa rua fosse minha

Nos acostumamos a conviver com as milhares de pessoas que vivem nas ruas e fingimos não ver, escreve Kakay
Mulher em situação de rua na Catedral de Brasília durante a visita do chanceler alemão Olaf Scholz ao Brasil, no final de janeiro

CopyrightSérgio Lima/Poder360 – 31.jan.2023

É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço ou a dignidade humana se afirmará a machadadas.”

–Torquato Neto, Poema do Aviso Final

Neste mundo cada vez mais desigual, há um processo brutal de desumanização que atinge praticamente a todos.

Nos acostumamos a conviver com as milhares de pessoas que vivem nas ruas. São crianças, homens e mulheres, e nós introjetamos uma frequente ação de desviar os olhos como que a pedir desculpas pela nossa imobilidade. É como se fosse um ato de defesa da nossa inexistente solidariedade: fingimos não ver para continuar a vida.

Esse “não ver” é uma opção de proteção da nossa sanidade interior e, evidentemente, de profunda covardia pela omissão. O fenômeno da aporofobia, que define o medo e certa rejeição aos pobres, reforça a invisibilidade dos que têm nas ruas seu único destino de acolhimento.

Como no Brasil do Bolsonaro não se fez o Censo, na realidade nós não sabemos exatamente o tamanho desse drama. Não temos a exata dimensão da população em situação de rua no país. Impossível, sem ter esses dados, desenvolver uma política pública eficaz. Mas a verdade bate às nossas portas diariamente. Basta dar uma volta de carro pelas ruas das grandes cidades brasileiras.

Na realidade, nem mesmo temos uma metodologia para definir o que deveremos efetivamente pesquisar. Em um levantamento de 2020, no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, foi constatado um aumento de 140% dos moradores de rua com um registro de 221.869 pessoas. Um escândalo! Importante registrar que, segundo o Ipea, de 2012 a 2022 a população do Brasil aumentou 11%, enquanto as pessoas em situação de rua tiveram um crescimento de 211%.

Uma decisão recente do ministro Alexandre de Moraes chamou a atenção para o tamanho do desastre. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o Partido Socialismo e Liberdade e a Rede Sustentabilidade ajuizaram uma arguição de descumprimento de preceito fundamental no STF. É evidente que a resolução dessa tragédia social não se dará via decisão do Judiciário. Mas foi importante levantar a discussão.

Movimento parecido já havia sido feito outras vezes como, por exemplo, quando o Supremo Tribunal declarou o estado de coisa inconstitucional em relação ao sistema penitenciário brasileiro.

Sempre disse que, se fôssemos levar a sério a miserabilidade dos presídios no Brasil, nós não conseguiríamos dormir. É impossível imaginar que, perto das nossas casas, nas grandes cidades, existem masmorras medievais onde as pessoas são amontoadas como bichos e, em regra, não conseguem ter sequer um espaço digno para dormir ou para ter sua higiene pessoal e se alimentam de comidas podres e azedas.

Remeto-me ao grande Mia Couto:

Cego é o que fecha os olhos e não vê. Pálpebras fechadas, vejo luz. Como quem olha o sol de frente. Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior. Cego é quem só abre os olhos quando a si mesma se contempla.”

Na realidade, foi um julgamento histórico, mas que não teve nenhum efeito prático. O Estado não conseguiu avançar e o sistema carcerário continua caótico com seus quase 800 mil presos, a maioria sem culpa formada.

Também no tocante aos milhares que vivem nas ruas, não será uma decisão judicial que vai abrandar a penúria e a miséria que acompanha esses brasileiros. Ao que constato, cada vez mais, ao se exporem ao relento das noites, essas pessoas ficam mais invisíveis. Mas o ato de ajuizar a ação e a decisão do ministro Alexandre servem para nos encher de indignação cívica.

O ministro fala das condições impreteríveis para uma existência digna. E explicita que “a dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas”.

É disso que se trata. É necessário colocar na pauta do dia o direito fundamental, básico, à moradia e ao acolhimento institucional. Discutir e priorizar os direitos sociais à educação e ao trabalho. E, na base de uma sociedade humanista, o direito fundamental à identidade.

É fato que 3 milhões de brasileiros não possuem certidão de nascimento e algo em torno de 50 milhões não possuem CPF. É difícil exercer a cidadania em meio a tanta invisibilidade. Para muitas dessas pessoas, o direito de existir é quase uma impossibilidade. É como se uma nuvem densa e tóxica cegasse os olhos, tirasse a capacidade de respirar e matasse pouco a pouco a esperança de uma vida simplesmente digna.

Certamente, não cabe ao Judiciário resolver uma questão que passa por uma ação do Executivo e do Legislativo. E é interessante notar que existe um cipoal de leis que, se executadas, poderiam minorar esse drama. Mas sabemos que as leis, muitas vezes, são feitas para não serem cumpridas. Algumas, como a que enfrenta a temática da arquitetura hostil, são simples e o cidadão pode acompanhar.

Mas o que mais importa é trazer essa discussão para a mesa no dia a dia. A determinação de um diagnóstico pormenorizado da situação permite estabelecer rumo às políticas públicas. O resto é vontade política.

Fundamental lembrar que, em 2009, na gestão Lula, o Brasil saiu do mapa da fome da ONU. Porém, com Bolsonaro, passamos a ter 33 milhões de brasileiros novamente acometidos pelo flagelo humilhante da fome. Sem contar os quase 50 milhões em insegurança alimentar.

Esse é o caminho: derrotar o fascismo e a barbárie e trabalhar por um governo com prioridade humanista que resgate nosso sonho de viver numa sociedade humanitária, na qual a dignidade da pessoa seja a meta principal. É possível.

É andar sempre com Pessoa ao lado:

Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.”

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Fonte:360