Por Kakay
“Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera.” –Augusto dos Anjos, poema “Versos Íntimos”.
Nunca imaginei que sentiria saudades da polarização política entre direita e esquerda. Os embates que empolgavam a todos: AécioXDilma ou AlckminXLula. É claro que, à época, sabíamos que a vitória da direita e a implementação das políticas neoliberais iriam, pouco a pouco, solapando os direitos sociais e afastando o pobre da mesa. Era a luta por sobrevivência de um estado social, uma tentativa de incluir o menos favorecido no mundo sempre tão desigual e injusto.
Existia uma tensão nas divergências políticas que eram claras e históricas. A gente sabia, com razoável segurança, como a sociedade poderia ganhar se tal candidato e partido vencessem e quais seriam as perdas nas derrotas.
Com certa clareza e possível comparação histórica, o mundo se dividia entre ruim e razoável. Nunca conseguíamos estar num patamar realmente bom, pois a exclusão social, a pobreza e a fome estavam sempre presentes. Era uma luta diária de sobrevivência para milhões de pessoas e cada grupo político representava o aumento do fosso, ou um lampejo de melhorias. Era fácil constatar. Mas era civilizado.
Hoje, em muitos casos, a velha divisão entre esquerda e direita foi implodida. Por uma série de fatores ainda não totalmente estudados e compreendidos, o mundo se abriu para o enorme risco de um antagonismo irracional, sem nenhum limite ético, nenhum escrúpulo e sem controle. Sabíamos do pântano que, muitas vezes, tem a velha política como habitat natural. E a sociedade sempre procurou encontrar maneiras de enfrentar, com armas democráticas, esses movimentos que residem em uma área pegajosa e estranha.
Mas a democracia se equilibrava com cada grupo tentando cumprir os ritos de uma convivência civilizada. Claro que, muitas vezes, os limites eram derrubados, como no caso do golpe contra a Dilma, no escândalo criminoso da república de Curitiba e da força-tarefa da Lava Jato –coordenada pelo ex-juiz Sergio Moro–, na prisão do Lula para entregar o governo para o Bolsonaro, entre outros descalabros. Mas, mesmo com tantos percalços, ainda podíamos defender certa democracia.
Hoje, a impressão que nos incomoda e nos assusta é a de que abriram a porta do esgoto. Seres escatológicos saíram das trevas e ocupam com incrível desenvoltura os espaços políticos. Com rara desfaçatez e sem nenhum, absolutamente nenhum, critério ético ou escrúpulo.
A mentira virou uma arma diária e, na disputa política, especialmente nas mídias sociais, o interesse é usá-la de maneira mais convincente e capilarizada. Se uma inverdade, ainda que grave e infamante, puder causar um estrago nas hostes inimigas –não é mais adversária– e, principalmente, angariar mais seguidores nas mídias sociais , é o que será usado e implementado.
Não existe mais a mínima preocupação ao espalhar uma fake news, mesmo as mais vulgares, covardes ou criminosas. Ao contrário, os criminosos –sim, são criminosos– jactam-se, em público, de serem essas criaturas teratológicas. E essa atitude ainda serve para aumentar exponencialmente os seus seguidores.
Tentei acompanhar o debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo. É assustador. Ou estabelecem e cumprem regras civilizatórias, ou, aos poucos, só sobrarão essas figuras bizarras no palco. Não há nenhum espaço minimamente civilizado para suportar tamanha agressividade e uso desmedido de ofensivas. Palhaços como o tal Padre Kelmon, da última eleição presidencial, tornaram-se figurantes em comparação com o que se avoluma na política. Escrevi aqui, neste prestigiado espaço, na última 6ª feira (23.ago.2024), em meu artigo “Deu no New York Times”, a previsão maldita do Steve Bannon, ex-estrategista chefe da Casa Branca no governo Trump: com o crescimento da extrema-direita, sentiríamos saudades do Trump. Com o que tenho visto, penso que esse tempo já chegou.
O fenômeno que se anuncia e toma corpo na nossa frente é algo dantesco. Mais do que usar os princípios da ultradireita, há um misto de messianismo, cinismo, uso deliberado da mentira como estratégia, compulsão pela atitude agressiva, obsessão por ganhar dinheiro, sem nenhum critério, nas redes sociais, enfim, o caos como meta. E, com esse descontrole nas relações políticas, voltamos a um ponto extremamente delicado: a atitude do Poder Judiciário como polo ativo no controle dos abusos.
Sempre nos lembrando de Rui Barbosa, na Oração aos Moços: “Justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”. Já escrevi, diversas vezes, que, com o crescimento da extrema-direita bolsonarista e a criminosa tentativa de golpe em 8 de Janeiro, o Brasil foi jogado em um impasse. No governo anterior, no Executivo, vicejava a ultradireita solapando todas as conquistas democráticas. O Congresso estava, em sua grossa maioria, cooptado.
O que sustentou a democracia foi a ação firme e constitucional do Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal e o Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo sendo, em regra, um poder patrimonialista, conservador, machista e racista, o judiciário se superou e garantiu o Estado Democrático de Direito. Ainda ameaçado, mas, agora, com o apoio mais amplo da sociedade organizada.
É interessante acompanhar a discussão da determinação de retirada do ar de redes sociais do candidato Pablo Marçal. É pueril a imputação de que foi um ato de censura prévia. Ora, tanto não é censura que foi permitido que o candidato abrisse outras contas. O que foi decidido é que fossem retirados os abusos.
Na realidade, o que chama atenção e merece reflexão é que, se fosse a sociedade minimamente madura e lúcida, tais decisões nem seriam necessárias. Todos esses abusos histriônicos seriam debitados como folclore e a vida seguiria com uma pretendida normalidade democrática. O que assusta é que a grande maioria aplaude. Em vez de asco, tem admiração. Com isso, o show de horrores tende a crescer e a democracia vai, cada vez mais, cedendo lugar para a barbárie. Perdemos todos. Remeto-me ao grande poema, Poema em linha reta, de Fernando Pessoa na pessoa de Álvaro de Campos:
“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”
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