Skip to main content

Prisão de Putin no Brasil enfrentaria um vácuo legal e dependeria de decisão judicial

Foto: EFE/EPA/VYACHESLAV PROKOFYEV/SPUTNIK/KREMLIN POOL

Um eventual pedido do Tribunal Penal Internacional (TPI) ao Brasil para prender o ditador russo Vladimir Putin, pelos sequestros de quase 20 mil crianças em território ocupado na Ucrânia e envio para adoção por famílias russas, poderia passar por dificuldades de execução devido à ausência de uma lei no país para regulamentar o procedimento.

Embora Putin negue, analistas ocidentais e a inteligência ucraniana não descartam a possibilidade de que ele tente vir ao Brasil para participar do encontro do G20 (o grupo das maiores economias do mundo) em novembro, no Rio de Janeiro.

Caso o russo viesse ao país, sua prisão, já determinada pelo TPI, deveria ser autorizada por um juiz federal de primeira instância, conforme definido em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, como ainda não há lei específica sobre a questão, o magistrado teria de decidir, inclusive sobre eventuais pedidos de soltura, com base em analogias e princípios do direito penal e internacional que considerasse aplicáveis ao caso.

O Brasil aderiu em 2002 ao Estatuto de Roma, que criou o TPI, sediado em Haia, na Holanda, mas até hoje o Congresso não aprovou uma lei para detalhar como essa e outras medidas de cooperação seriam concretizadas. O TPI, também conhecido como Corte de Haia, define crimes de dimensão internacional, como os crimes de guerra e contra a humanidade, genocídio, apartheid, tortura e desaparecimento forçado.

Ele foi criado para punir pessoas – principalmente autoridades – que agridem de forma grave os direitos humanos de populações locais, e ficam impunes em seus países de origem. As nações que aderiram ao Estatuto de Roma, como o Brasil, se comprometeram a colaborar, e daí a obrigação de que executem prisões determinadas pelo TPI.

No ano passado, Putin tornou-se alvo de um mandado de prisão internacional expedido pelo TPI. O presidente da Rússia foi considerado responsável pela deportação de ao menos 19 mil crianças ucranianas que viviam em territórios temporariamente ocupados pela Rússia. Posteriormente, elas foram adotadas à força por famílias russas. A maioria dos pais ucranianos não sabe o paradeiro dos filhos que foram vítimas do crime.

A rigor, se Putin pisar num território de um país signatário do Estatuto de Roma, esse país é obrigado a prendê-lo e entregá-lo ao TPI. Como mostrou a Gazeta do Povo em abril, o Brasil tentou aprovar, junto às Nações Unidas, uma regra de imunidade para chefes de Estado de países não signatários do Estatuto de Roma.

Na prática, o objetivo seria que líderes de países que não aderiram à criação do TPI, como Putin, não corressem risco de serem presos por aqueles que se comprometeram com o tribunal internacional, caso do Brasil. Seria uma brecha para que ele pudesse desembarcar no Rio de Janeiro no mês que vem, no encontro do G20.

O russo, no entanto, disse que não virá ao Brasil para não atrapalhar o evento. “Entendemos perfeitamente que, mesmo que deixássemos de lado o TPI, todos falariam apenas sobre isso. Na verdade, impediríamos o trabalho do G20”, disse.

Antes da declaração, o procurador-geral da Ucrânia, Andriy Kostin, havia exigido que o Brasil prendesse Putin caso ele comparecesse à cúpula no Rio de Janeiro.

Nunca houve, porém, boa vontade para isso por parte do atual governo brasileiro. Em setembro do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva garantiu que Putin não correria risco de ser preso caso viesse ao encontro do G20 no Rio.

“Se eu for presidente do Brasil, e se ele [Putin] vier para o Brasil, não tem como ele ser preso. Não, ele não será preso. Ninguém vai desrespeitar o Brasil”, disse Lula, durante entrevista em Nova Déli, na Índia.

Na semana passada, numa entrevista à CNN Brasil, também antes da declaração de Putin, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse que existe uma “tradição” de imunidade para chefes de Estado.

“Todos os chefes de Estado têm internacionalmente proteção e privilégios de imunidades. Inclusive em Nova York, as Nações Unidas estão em território americano, há um acordo de sedes que obriga a conceder tratamento diferenciado e com imunidades aos chefes de Estado que participam das assembleias da ONU. Então, é a mesma coisa”, afirmou o chanceler brasileiro.

Mas o próprio Mauro Vieira ressalvou, em seguida, que um juiz de primeira instância poderia determinar a prisão de Putin, de modo a atender ao TPI. “Eu não sei o que pode acontecer, se algum juiz poderá dar uma medida, um pedido de prisão. Eu não posso atuar dentro da futurologia, o que vai acontecer eu não sei”.

Decisão sobre prisão cabe a juiz de primeira instância
A delegação a juiz federal de primeira instância, para determinar a prisão de uma autoridade estrangeira a pedido do TPI, foi definida em 2020 pela ministra do STF Rosa Weber, hoje aposentada. Ela reconheceu que, na ausência de lei específica sobre o assunto, essa tarefa ficaria a cargo de um magistrado de primeira instância.

Ela se baseou em dispositivo da Constituição que define as competências do juízes federais. O artigo 109, inciso III, diz que cabe a eles processar e julgar “as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”.

Em tese, essa tarefa poderia ficar a cargo do próprio STF, como ocorre nos casos de extradição, quando o criminoso é condenado em um outro país, e não num tribunal internacional, como o TPI. É o que prevê, por exemplo, um projeto de lei em tramitação no Congresso desde 2008 para regular a atuação do Estado brasileiro em relação às ordens do TPI.

Pelo texto da proposta, o pedido de prisão do TPI seria recebido pelo Ministério das Relações Exteriores, que o encaminharia em cinco dias ao Ministério da Justiça. Esse, por sua vez, enviaria o pedido em 30 dias ao presidente do STF, para que julgasse se a solicitação está de acordo com a Constituição e as leis brasileiras.

Esse projeto de lei (PL 4038/2008) foi apresentado à Câmara pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em setembro de 2008, em seu segundo mandato. Mas está parado na Casa desde 2016. Em 2021, a CPI da Pandemia apresentou projeto de lei semelhante no Senado, mas desde então nunca foi votado na Comissão de Relações Exteriores, primeiro passo na tramitação.

Estatuto de Roma prevê que ditador deve ser preso mesmo que não haja leis nacionais para isso
De qualquer modo, vários artigos do Estatuto de Roma impõem ao Brasil a obrigação de colaborar, mesmo sem leis aprovadas internamente para regular todos os detalhes.

“Os Estados Partes deverão, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste”, diz, por exemplo, o artigo 86 da convenção internacional.

Para Vladimir Aras, procurador regional da República e ex-secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República (PGR), a prisão de Putin é improvável, e não só no Brasil. Num artigo publicado no ano passado, após a ordem de prisão do russo, ele lembrou que não houve êxito em 2009 e 2010, quando pela primeira vez um chefe de Estado teve uma ordem de prisão decretada pelo TPI – no caso, Omar Al-Bashir, que era presidente do Sudão, acusado de genocídio. Países africanos não colaboraram e ele só deixou o poder em 2019, quando foi deposto e preso dentro do próprio país.

“Dificilmente veremos uma operação internacional, seja dos Estados Unidos ou da União Europeia, para prender o presidente da Rússia, um país que é uma potência nuclear e que, do mesmo modo que EUA e China, não é parte do Estatuto de Roma. Na prática, porém, Putin e Maria Lvova-Belova [acusada de supervisionar a deportação de crianças ucranianas para a Rússia] ficam desde já com seus movimentos limitados. Teoricamente só poderão sair da Rússia para visitar países satélites”, escreveu Vladimir Aras em artigo publicado, em abril de 2023, na revista Conjur.

Fonte: Gazeta do Povo