Mesmo internado na UTI, o presidente da República decidiu não se licenciar por não ver obrigação nem necessidade. Especialista aponta preocupação do petista em não se mostrar “mortal”.
Embora esteja internado desde a noite de segunda-feira em São Paulo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva preferiu não passar o cargo ao vice-presidente, Geraldo Alckmin, que assumiu apenas alguns de seus compromissos. Desde a internação, o petista passou por dois procedimentos para conter um coágulo e evitar novos sangramentos na cabeça.
O vice-presidente estava em São Paulo na terça-feira e voltou às pressas a Brasília para cumprir uma agenda de Lula, que receberia o premiê eslovaco Robert Fico. Mesmo “proibido” de receber visitas de trabalho, o presidente manteve conversas telefônicas com ministros e continuou despachando do hospital. Na quinta, assumiu o comando do encontro do Conselhão.
A UTI ocupada pelo presidente é privativa e bastante ampla, o que dá a ele a possibilidade de tratar de assuntos do governo com privacidade. Mesmo saindo do tratamento intensivo, a previsão é que Lula continue internado até a próxima terça-feira. A orientação médica é que ele descanse até o final do ano, evitando viagens.
“A Constituição fala que, não sendo viagem ao exterior, o cargo só passa para o vice em impedimento de condições, e isso não ocorreu, como os próprios médicos falaram. Ele despachou os atos publicados e tem falado com os ministros por telefone”, afirmou um dos auxiliares do presidente.
Quando passou três dias no hospital em setembro do ano passado para fazer uma cirurgia no quadril, Lula também não transferiu o cargo a Alckmin. Do mesmo modo, Lula avisou que não sentia a necessidade de se licenciar desta vez.
Na madrugada de terça-feira, 10, Lula fez uma trepanação, um pequeno orifício no crânio, para eliminar um hematoma de cerca de três centímetros que começou a sangrar. O hematoma era fruto de uma queda sofrida dois meses atrás. Ontem, ele fez novo procedimento, desta vez uma embolização da artéria meníngea média, parecido com um cateterismo. A medida é preventiva para eventuais sangramentos.
O presidente ficou sedado por pouco mais de uma hora e, ao conceder entrevista coletiva pela manhã de ontem, o cardiologista Roberto Kalil, que comanda a equipe médica no Sírio Libanês, afirmou que ele já estava consciente, conversando normalmente.
“Decisão acertada”
Para os políticos do entorno do presidente, a decisão de não transferir o cargo a Alckmin foi a mais acertada para evitar especulações sobre a gravidade do estado de saúde do petista. Na quarta-feira, já circulavam fotos criadas com inteligência artificial mostrando Lula com a cabeça toda enfaixada. Na verdade, a incisão no topo é mínima – para isso, apenas uma pequena parte do couro cabeludo foi raspada.
Quando sofreu uma queda no banheiro, em outubro passado, Lula, que está com 79 anos, mostrou-se desgostoso, conforme fontes do Palácio do Planalto. A primeira-dama, Janja, tem dado atenção redobrada à dieta do petista, assim como à sua rotina de exercícios. O regime “rigoroso” tem gerado críticas de assessores, correligionários dele no PT e políticos de outras legendas, uma vez que o presidente não faz mais almoços nem tem encontros de relacionamento, uma de suas características desde os primeiros governos, nos anos 2000.
No hospital, a primeira-dama também tenta administrar o assédio a Lula para garantir seu descanso. Assim, as visitas ficaram restritas e devem permanecer dessa forma mesmo quando ele deixar a UTI. Líderes do partido e integrantes do governo têm evitado telefonar mesmo para Janja, se informando sobre o presidente apenas com os assessores e por meio das entrevistas dos médicos. O fotógrafo pessoal do presidente, Ricardo Stuckert, tem acompanhado Lula no hospital, assim como uma assessora de imprensa.
“É uma preocupação pertinente o presidente não demonstrar estar pior do que está. Eu não sou médico, mas aparentemente não há motivo para isso (se licenciar)”, avalia o cientista político Gabriel Goldfajn, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV (CEPESP/FGV).
Para Goldfajn, como as negociações do pacote fiscal estão sendo tocadas pelos ministros no Congresso, o ambiente político não está tumultuado. “Está todo mundo fazendo a conta de que o presidente vai voltar em breve”, disse. “Agora, se esse afastamento se prolongar, se não aparecer foto do presidente, a situação pode mudar”, ponderou. Sobre a foto presidencial, o pesquisador lembra que Lula ainda está convalescente e que essa foto deveria surgir nos próximos dias, quando ele estiver melhor.
“Símbolo não pode ser mortal”
Já a professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart destaca que Lula não se afasta do governo para se tratar por ser um símbolo. “Todo esse desafio sobre o afastamento do Lula, de ele não poder se afastar para se tratar como qualquer pessoa faria, é o fato de que ele é um símbolo e um símbolo não pode ser mortal. A doença dele está chamando atenção para o fato de que ele é um ser humano e, portanto, mortal”, diz.
Mayra Goulart conclui que, para além do que o presidente representa, ele tem o papel de exercer múltiplas funções. “Tem mais um problema aí. Porque se ele fosse só um símbolo, tudo bem. Ele poderia ser substituído nas funções cotidianas. Só que ele concentra muitas outras funções como líder do PT, da esquerda de modo geral, e do governo. Ele atua nessas duas esferas resolvendo conflitos internos dentro do partido e dentro do governo”, prossegue a professora. “Por isso a dificuldade de ele obter uma licença. Qualquer oscilação em torno da figura do Lula causa tanta instabilidade.”
Estado de Minas