“Pedaços de mim mesmo”

Padre João Medeiros Filho

Eis o título de um livro de Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó (RN), há 37 anos na Casa do Pai. Nutro por ele profunda admiração, respeito e gratidão. Tentarei acrescentar outros fragmentos, não registrados naquela obra. Ao conferir-me o sacramento da confirmação, tocou-me sua belíssima homília sobre o Sermão da Montanha, dirigida aos fiéis de Jucurutu. Hoje, posso aquilatar a profundidade teológica e espiritual de sua pregação. Era o Ano Santo de 1950. Ele preparava-se para ir a Roma. De volta do Vaticano, trouxe-me um terço, bento por Pio XII e dissera-me: “Seja devoto de Nossa Senhora. Ela é a ternura divina, face maternal de Deus. A Igreja precisará de você.” Dom Delgado não tinha a imponência heráldica que caracteriza alguns “príncipes da Igreja”. Seus gestos inspiravam humildade, abertura, serviço, ternura e amor. Poucos sabiam que ele era amicíssimo e compadre de Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) e outros líderes. De grande conhecimento didático-pedagógico, impressionou o Ministro da Educação, Gustavo Capanema. Sua transferência para São Luís (MA) foi de uma comoção, só repetida em Caicó, quando do sepultamento de Monsenhor Walfredo Gurgel. Queira Deus que o bispo eleito do Seridó conheça seu pensamento e obra pastoral.

Em Caicó, o legado de seu primeiro prelado é ingente. Contemplou as etapas da vida humana. Fundou a “Pupileira”, primeira creche do Seridó, campo de estágio das alunas da Escola Doméstica Darcy Vargas (obra sua) e abrigo seguro para as crianças, cujas mães necessitavam trabalhar. Além do Ginásio Diocesano, criou oito escolas paroquiais para educar jovens de menos recursos financeiros. Os candidatos ao sacerdócio tiveram sua formação no Seminário Cura d’Ars por ele fundado. Para os idosos deixou o Abrigo Dispensário Prof. Pedro Gurgel. Transformou um cemitério desativado em centro de reflexão e treinamento para o laicato.

Considero-me privilegiado por ter conhecido, antes do Concílio Vaticano II, um prelado de tanto espírito ecumênico, profunda visão pastoral, sensibilidade humana e dinamismo social. “Ele apascentava no poder do Senhor e na sublimidade de seu Deus” (Mq 5, 4). Eis alguns de seus gestos icônicos. Em 1942, ao fundar o Ginásio Diocesano, convidou um farmacêutico (Zezinho Gurgel) e uma linguista (Myrtilla Lobo), ambos de confissão evangélica, para ministrar aulas de ciências e língua portuguesa. Por esse motivo, denunciaram-no à Nunciatura Apostólica. O Núncio quis ouvi-lo. Respondeu-lhe: “Convidei-os, não para ensinar religião, mas para transmitir o que eles conhecem bem. Por outro lado, os futuros líderes e doutores de amanhã precisam, desde cedo, aprender a conviver com as diferenças.”

Em 1949, recebeu em sua diocese um seminarista salesiano (Luís de França). Os superiores negaram-lhe a ordenação, pois o jovem sofria de epilepsia, considerada à época, desaconselhável para o presbiterato. Após meses observando o jovem, resolveu ordená-lo. Mais denúncias à Nunciatura. Respondeu ao representante do Vaticano no Brasil: “Sou responsável diante de Cristo pelo rebanho que me confiara. Conheço as necessidades do bispado. Deus não discrimina pessoas. O rapaz não é culpado de padecer dessa enfermidade. Os fiéis têm mais compreensão e sensibilidade do que nós, padres e bispos.” Iria ordenar o levita. Mas, este veio a falecer, não da doença, mas de um infarto fulminante, de tanta emoção, ao comprar o cálice para a sua primeira missa.

A caridade de Dom Delgado surpreendia quem não estava acostumado a ver gestos de benignidade evangélica. A marca característica de suas atitudes era a prática da compreensão e misericórdia divina. Em 1964, quando arcebispo de Fortaleza, acolheu dois membros da Igreja Católica Brasileira: Dom Raimundo Simplício de Almeida e Padre Enemias Freire de Almada, que solicitaram à Santa Sé retorno ao catolicismo romano. Sugeriu que morassem na residência arquiepiscopal, pois careciam de adaptação e mais estudos. Um dia, seu secretário particular dissera-lhe: “Dom Delgado, esse bispo e o padre da Igreja Brasileira não regulam bem.” Respondeu o arcebispo: “Você diz isso por puro preconceito, pois vieram da Igreja Brasileira. Quantos padres desequilibrados você conhece na Igreja Romana e os aceita! Estes dois são simples. Deus poderá se servir deles para fazer o bem.” Disse Jesus: “Misericórdia eu quero e não sacrifícios” (Mt 9, 13).