Padre João Medeiros Filho
Pé rapado, sinônimo de pessoa humilde, era uma expressão bastante empregada no passado. Apesar de não se saber quando ela surgiu, verifica-se que, em meados do século XVII, foi citada por Gregório de Mattos Guerra, “o Boca do Inferno”. Este teria dedicado alguns versos a uma mulher soteropolitana que lhe pediu um cruzado para mandar consertar os calçados: “Anica…, lembra-te o tempo que andaste de pé rapado”. O mestre Câmara Cascudo, em Locuções Tradicionais do Brasil, afirma que os termos significam “descalço, pé no chão”, uma metonímia para designar a população de origem modesta. Durante a Guerra dos Mascates (1710-1711), a expressão foi utilizada com referência depreciativa às tropas da aristocracia rural. Estas, descalças, combatiam o exército português, cujos membros da cavalaria ostentavam botas e uniforme de combate.
Mas, qual é sua origem? Desde os tempos remotos, na Europa ocidental, havia nas igrejas – que ainda não utilizavam carpetes – um aparelho para os fiéis limpar os pés, rapando o excesso de sujeira, antes de adentrar no templo. Posteriormente, o costume foi adotado do Brasil. Nos países europeus, quando não havia automóveis e as ruas não eram pavimentadas, o chão ficava molhado pela neve derretida. Em alguns casos, havia lama. Os fiéis que possuíam charrete, liteira e cavalos, serviam-se deles para se deslocarem às igrejas, permanecendo com os pés limpos até o pórtico do templo. Aqueles que não dispunham de meio de transporte, ficavam com os sapatos sujos. Antes de entrar nas igrejas, para não enlamear o recinto, limpavam no “rapador” a sola dos calçados. Daí, passaram a ser chamados de pés rapados. Em virtude de sua parca condição financeira, não possuíam carruagens e cavalos. A expressão passou a ser sinônimo de gente de poucos recursos. No Brasil colonial (e até hoje, em certas localidades), as ruas não tinham calçamento. Várias pessoas também andavam sem sapatos, necessitando “rapar os pés”, à porta das igrejas e de outros lugares públicos. Isso acentuava ainda mais os termos, consagrando a conotação de pobreza econômica.
Com um sentido análogo, tem-se a expressão “sem eira nem beira”, de largo emprego em Portugal e no Brasil, até a atualidade, para denominar cidadãos de classe econômica inferior. Alguns relatos dão conta de que os barões e os demais aristocratas olhavam com desdém os mais humildes. À época, quando uma moça se apaixonava por um rapaz pobre, os pais repreendiam-na com tal afirmação: “Fulano não tem eira nem beira”. Segundo alguns pesquisadores, a gênese dessas palavras está na arquitetura do Brasil colonial. No nordeste brasileiro, a expressão reveste-se do mesmo significado, aproximando-se dessa descrição arquitetônica. Consoante tal versão, antigamente as casas dos abastados tinham um telhado formado de: eira (o forro), beira (a platibanda) e tribeira (a cobertura com telhas), a parte mais elevada do telhado. As famílias de menos recursos não tinham condições de arcar com esse tipo de construção, erigindo apenas a tribeira, ficando sem eira nem beira. Para outros autores – que apontam origem diferente, no entanto com idêntica acepção – eira era uma área de terra batida, onde os grãos (trigo, arroz etc.) ficavam ao ar livre para secar. Entendia-se por beira o seu contorno. Na ausência deste, o vento levava os grãos e o proprietário perdia grande parte da colheita.
Tais expressões, embora se originem de nossa cultura e enriqueçam o vocabulário, encontraram reações e alguns opositores. Cabe lembrar a figura de Dom Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana e primeiro eclesiástico a integrar a Academia Brasileira de Letras. Há relatos de que o prelado proibiu o uso das expressões nas paróquias de sua diocese por entendê-las contra o espírito do Evangelho. Em documento pastoral escreveu “O vosso bispo também não tem eira nem beira. Consolai-vos, pois o nosso Mestre e Salvador, de igual modo, foi considerado simplesmente como o filho do carpinteiro” (cf. Mt 13, 55). Lembrava ainda as palavras do apóstolo Tiago, em sua carta: “Meus irmãos, não façam diferença entre as pessoas [todos são irmãos e filhos de Deus]” (Tg 2, 1).