Padre João Medeiros Filho
Inexiste nos textos bíblicos neotestamentáriosqualquer palavra de Jesus se auto definindo como morte. Ao contrário, Ele proclama: “Eu sou o Pão da Vida” (Jo 6, 48); “Vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10), ou ainda, “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Santo Agostinho pregava: “O cristão não conhece a morte, mas a vida que começa com a morte.” Esta é a porta da Eternidade, o sono que conduz ao Infinito. Certa feita, o Filho de Deus, diante de uma família sofrida pela perda da filha, exclamou: “A menina não morreu, ela dorme” (Mt 9, 24). Com a notícia do falecimento de seu amigo Lázaro, Jesus afirmara: “Ele está dormindo, irei acordá-lo” (Jo 11, 12). Sono é o termo empregado pelos primeiros teólogos da Igreja, quando cessa nosso existir. Daí surge a expressão da liturgia de réquiem: “Requiescat in pace” (durma, descanse em paz).
Para Mário Quintana: “Morrer não é o último atobiológico. Acontece também nas perdas cotidianas enaquilo que nos traz saudades, quando acabam planos,esperanças, amizades.” Integra imprescindivelmente a natureza do ser humano. “Morrer é um ato natural, como beber, comer e dormir”, escreveu o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Anormal é aquilo que muitas vezes o precede: aparelhos conectados e tubos introduzidos no corpo sem o paciente poder fazer nada, pois não é mais dono de si mesmo. Mister se faz atenuar a solidão e a ansiedade que precedem à morte. Poucos têm palavras para falar tranquilamente sobre a realidade inevitável. Contudo, é um dever para os que creem, um ato de misericórdia, análogo ao preconizado no capítulo 25 do Evangelho de Mateus. A ciência e as religiões não refletemsuficientemente sobre esse aspecto. Há carência deserviços e movimentos espirituais para proporcionar serenidade, aceitação e desprendimento naqueles que partem. Falta quem saiba cuidar da inexorável separação. É graça – quando pressentido ou anunciado – nosso fimacontecer, de forma mansa e sem dores, em meio às pessoas amadas e num clima de paz e quietude.
Para o cristianismo, a morte é apenas o umbral do Céu. A sabedoria da fé leva a viver com toda responsabilidade e despedir-se da existência com plenodespojamento. A morte é a devolução de algo que não pertence ao homem. Consiste no verdadeiro nascimento do ser humano – “mors vere dies natalis hominis” – pregou o Bispo de Hipona. A vivência da fé proporciona oequilíbrio humano. Se de um lado, pensarmos somente no término dos dias, colocaremos o sentido de tudo no final da existência terrena. Há algumas pessoas que tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor da vida, dom divino. Entretanto, a tentação mais comum é a abordagem contrária: priorizar oexistir efêmero. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos migrantes, moradores temporários neste mundo” (1Cr 29, 15). O apóstolo Paulo arremataperemptoriamente: “Somos cidadãos do céu” (Fl 3, 20).
“Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer” (Ecl 3, 2), diz a Sagrada Escritura. Viver e morrer não são antagônicos, mas irmãos. São Francisco de Assis percebeu tal verdade, ao falar da “Irmã Morte”. Isto exige que sejamos sábios para nos preparar quando a vida irá se plenificar. Poderia a Medicina desenvolver uma nova especialidade (tanatoatria) para assistir aos que terminam sua caminhada terrena. Sua missão seria preparar para o definitivo que leva à plenitude. Deverá fazer tudo para que o desenlace seja tranquilo e cercado de carinho. Poder-se-ia designar como padroeira de tal ramo da ciência médica Nossa Senhora da Piedade, simbolizada na ternura de “La Pietà”, de Michelangelo. Naquela escultura, Maria está representada com o seu Filho Amado, morto em seus braços. No colo de uma mãe o morrer não causará medo. A Igreja deve ser essa Mãe, expressão de afeto, que sabe nos envolver nos momentos do desabrochar da vida plena, onde de acordo com o Apocalipse “não haverá mais luto, nem choro, nemdor, pois as coisas de antes passaram” (Ap 21, 4).