Os mistérios de Shakespeare

Marcelo Alves Dias de Souza

É quase uma convenção dizer: “o que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco”. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes conspiratoriamente contestada. De fato, em William Shakespeare (1564-1616), há alguns mistérios para que ousemos imaginar na nossa vã filosofia.

Há lapsos factuais na “biografia” de Shakespeare. Pouco se sabe da sua juventude. “Mas por que deveríamos saber?”, indagam Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), para depois responder: “Ninguém a sua época imaginava que ele ia ficar famoso ou mesmo havia uma tradição de anotar fatos biográficos”. E há sobretudo os ditos “anos perdidos”. Sabe-se que Shakespeare casou com Anne Hathaway quando tinha 18 anos. Tiveram a filha Susana seis meses após. Quando ele estava com 20 anos, vieram os gêmeos Hamet e Judith. Mas o próximo registro sobre Shakespeare já o mostra com 28 anos, em Londres, atuando e escrevendo peças. Nada se sabe do paradeiro do Bardo durante esses “lost years”? Bom, isso é realmente um mistério.

Indo além, há diversas teses sobre quem teria sido Shakespeare ou, melhor dizendo, quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhas que atribuímos a um tal William Shakespeare. Como explica François Laroque, em “Shakespeare: Court, Crowd and Playhouse” (Thames & Hudson, 2002), determinados críticos – alguns sérios, outros nem tanto –, sobretudo a partir do século XVIII, têm tentado provar que não poderia ser o ator William Shakespeare o autor das obras-primas compendiadas no “First Folio”, o primeiro cânone Shakespeariano, de 1623. Eles, um tanto quanto preconceituosamente, não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como um homem de origem simples poderia adquirir todo esse conhecimento?

Isso e outras circunstâncias – como os já referidos “lost years” e a ausência de manuscritos autênticos – têm contribuído para a controvérsia existencial e, sobretudo, autoral. Outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Otelo”, de “Macbeth”, de “Hamlet”, do “Rei Lear” e de outras tantas maravilhas. Francis Bacon, Christopher Marlowe, Bem Jonson, Walter Raleigh, John Donne, os Earls de Derby, Oxford, Essex, Salisbury e Southhampton, o cardeal Wolsey, esses são alguns dos “suspeitos de sempre”. Mas há também alguns “acusados insuspeitos” – um tanto quanto bizarros –, segundo anotam os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, como Mary, Rainha da Escócia, a Rainha Elizabeth I, um grupo de jesuítas ou mesmo uma anônima freira irlandesa. Nesse ponto, eu até recomendo um bom filme, intitulado “Anonymuos”, de 2011, que propagandeia, embora equivocadamente, haver dado um ponto final ao mistério.

Na verdade, como consta do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, guardadas as circunstâncias de tempo e lugar: “(a) Nós sabemos mais sobre a vida de Shakespeare, tanto em termos de fatos quanto acerca das conclusões racionais deles advindas, do que de qualquer outro dramaturgo elisabetano. (b) A cronologia de eventos conhecidos (certidão batismal, registros de morte e enterro, de compra e venda de mercadorias e imóveis, datas de suas publicações e produções) indica uma grande quantidade de material factual existente sobre ele e sua família. Quantos céticos poderiam juntar tantas evidências acerca de um membro de suas próprias famílias, mesmo numa época em que a documentação tem se tornado comum? (c) Documentos relacionados às atividades de Shakespeare, incluindo cartas para ele e material relacionado à sua família, são abundantes no Shakespeare Center Records Office em Stratford-upon-Avon. Poucos poderiam razoavelmente permanecer céticos se examinassem esses materiais”.

Seguidor da Navalha de Ockham, vou nessa mesma linha, a da explicação mais simples. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I, em 1564, em Stratford-upon-Avon, na casa da Henley Street. Foi trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge na capital do Reino. Voltou à sua terra natal, em 1611, já rico e famoso. E foi viver em New Place até a sua morte em 1616. O resto são estórias, dele e sobre ele.  

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL