Olhos no espelho

 

Manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro, em Brasília

É urgente que os brasileiros voltem a ter a coragem de indignar-se com a realidade de violências e atentados aos direitos, escreve Kakay

Um dos efeitos deste momento trágico pelo qual passa o país é risco de acomodação dos sentimentos contra a injustiça. Um governo com viés fascista, desumano, sem nenhuma empatia e que produz uma quantidade inesgotável de absurdos leva o cidadão a certa apatia.

É difícil resistir ao exame das melhores e atitudes teratológicas que vêm, especialmente, por parte do presidente da República. Dia a dia nós somos testados a enfrentar os mais diversos descalabros. É um verdadeiro respeito aos direitos garantidos ao cidadão, ao respeito à vida social, à tentativa de uma chance de segurança. A todo instante, nós somos chamados a dar uma resposta aos pedidos à estabilidade democrática. Com isso, a sociedade vai se tornar cada vez mais insensível

Na última semana, entre vários outros, o mundo voltou os olhos para acompanhar mais uma chacina no Rio de Janeiro . Uma ação policial desastrada que deixou o saldo de 25 mortos. A tragédia da Vila Cruzeiro é a 2ª maior na história do Estado, ficando atrás apenas do massacre de Jacarezinho, que teve 28 mortes .

E, mais uma vez, a dor vira estatística. O luto transforma-se em números e as execuções seguem sem que o Estado possa dar uma resposta à barbárie institucionalizada. O único exclusivo de autoria, cínico e vulgar , por parte das autoridades é: os executados ou pessoas com ficha criminal, ou que eram suspeitos de cometimento de crimes. A desfaçatez ea inversão de valores absolutos por parte Estado, que deveria ser o responsável pela segurança da sociedade, são revoltantes.

A cultura de agressividade e desrespeito aos direitos do cidadão mais necessitado está a tal ponto arraiga que as forças de segurança sequer se preocupam em dar uma explicação. Talvez por não existir mesmo nenhuma resposta; ou porque a institucionalização da violência já é considerada uma realidade aceita pela maioria. O resultado de um governo fascista e que faz apologia ao armamento, à tortura, à guerra racial, à violência contra as mulheres e à comunidade LGBTQIA+ é exatamente o recrudescimento contra os invisíveis sociais.

Chega a serra desesperada a situação do negro e do desprovido no Brasil. O empobrecimento do país, atolado em uma crise sem precedentes, levou um contingente de brasileiros a viver nas ruas sem emprego, sem esperança e sem perspectivas.

O sentido etimológico da palavra chacina é o esquartejamento do porco. E essa parece ser a melhor imagem para explicar essa tragédia: o miserável e o negro são tratados como animais abatidos e esquartejados. E as estatísticas que já não comovem ninguém.

É necessário uma reflexão sobre o momento pelo qual passa o país. É que todos nós devemos cobrar uma punição evidente dos agentes do Estado que a ordem Mas é preciso que levou a refletir sobre os rumores que o Brasil. Urge que olhemos a sociedade que estamos desenvolvendo. Quem afinal somos nós? Como profetizou o poeta Charles Bukowski:

“ O que é terrível não é a morte, mas como vidas que vivem ou não vivem suas. A maioria das mortes das pessoas é um engano. Não sobrou nada para morrer. 

morte do Genivaldo em uma câmara de gás improvisada diante de uma multidão de pessoas e à luz do dia. Uma tortura filmada e sem qualquer reação das pessoas para impedi-la. A barbárie consentida e a covardia como reação geral. O sadismo, a indiferença, o desprezo à vida humana e a completa falta de empatia: todos cúmplices! Viramos uma sociedade robotizada. No máximo, faremos um movimento, depois da consumação do assassinato, para cobrança aos agentes públicos responsáveis ​​pelo crime. E esse ato de cobrar uma penalidade nos dá a sensação de estarmos cumprindo a obrigação como cidadão –resposta civilizatória. Exime-nos de qualquer culpa ou responsabilidade. Nossa hipocrisia recompensada até que outra tragédia se apresente.

De onde vem tanta indiferença? O que fez de nós essas seres insensíveis que desviam, a cada instante, o olhar da miséria alheia acumulada nas ruas brasileiras? Não temos mais coragem de olhar nos olhos dos pais que carregam os filhos nas sarjetas. Não olhamos mais sequer para nossos olhos no espelho. É impossível nos reconhecermos na nossa indiferença cotidiana. Para sobreviver, deixamos de existir.

Muito triste o nosso destino. Um país que se curvou a um presidente que faz apologia à tortura abertamente, que distribui armas, que zomba das mulheres e dos negros, que se gaba de ser fascista, racista, misógino e homofóbico e que optou por exaltar a barbárie em sentido literal. Esse país só podia nos legar essa multidão de zumbis atordoados e sem reação que justifique a nossa existência.

É urgente que voltemos a ter a coragem da indignação e a tentar ser agentes da nossa história, e não objetos desse enredo trágico que paralisa a sociedade brasileira. E é possível fazer isso dentro dos limites institucionais, afastando, pelo voto , essa realidade macabra.

Vamos trazer nosso Brasil de volta por nós mesmos. Ou nós nos damos essa chance ou continuamos seguindo como párias em um país vazio, estranho e desumano; e, o pior, a viver essa solidão interior que passa a ser a nossa única companhia. Sempre me amparando em Clarice Lispector:

“ Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania. Depende de quando e como você me vê passar. 

Fonte: Poder 360-