Oitenta anos, o que dizer?

Padre João Medeiros Filho
Desde a infância, meus pais despertaram em mim o sentimento de gratidão. E confesso: alegra-me cultivá-lo, ao longo dos meus dias. Diariamente, agradeço ao Criador o dom da vida e por Ele me ter constituído arauto de sua ternura. Grato sou por tantas maravilhas concedidas, dentre elas, os amigos. Um poeta bíblico, há quase quatro mil anos, afirmara: “A soma de nossos anos chega a setenta ou para os mais fortes, oitenta. A maior parte deles é luta… Passa depressa. É como se voássemos” (Sl 90/89, 10). Estes versos, divinamente inspirados, encerram, além da beleza literária, uma mensagem do Eterno. Quem nos faz levantar voo é Deus. Ele torna-nos ávidos de esperança e sedentos do Infinito. Nisto consiste a realidade humana. Para quem tem fé, ela é sopro do Altíssimo (Gn 2, 7), centelha celestial, aceno da plenitude da Luz. Participa do mistério divino, latente a nossos olhos, mas perceptível à visão da fé. O que seria de nós, se a vida fosse totalmente manipulada pelos homens, seus caprichos e instabilidade?
Perguntam-me como me sinto, completando oito décadas. Continuo sendo o menino de recado de Deus, temendo esquecer a mensagem confiada, atento para transmiti-la fielmente, sem misturar minhas palavras com as Daquele que me enviou. Quantos anos você tem? Como Rubem Alves, repito: “Digo que não tenho mais oitenta”. Estes se foram na poeira dos caminhos, nas trevas da existência, atravessados com ajuda do clarão da fé e iluminados pelo brilho da graça sobrenatural.
Os amigos indagam-me: por que você decidiu ser padre? A resposta não está em mim, mas em Cristo. “Não fostes vós que me escolhestes. Fui eu que vos escolhi.” (Jo 15, 16). O motivo dessa escolha faz parte do mistério do ser humano. Meu pai esperava ver-me um tribuno, com discursos repletos de ideias e sonhos, talvez vazios da riqueza de Deus. Por minha mãe, teria sido médico, aliviando dores, qual seu tio Epaminondas Tito Jácome. Entretanto, os planos de Deus eram outros. Proclama o Todo-Poderoso: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos e meus desígnios não são os vossos desígnios.” (Is 55, 8). Não tenho palavras para explicar porque fui tornado fagulha do Sagrado e lábil pulsação do Eterno. O Cardeal Suennes, arcebispo de Bruxelas, na homilia da ordenação de meus colegas, advertiu: “Não façam muitos planos. Vivam de acordo com a sede de Deus, manifestada pelos seus irmãos”. Adotei esta orientação para o meu ministério presbiteral.
Com o tempo e no silêncio, compreendi que falar muito de Deus pode sinalizar que Ele não está dentro de nós. A fala insistida e continuada indica ausência. Ele é como o vento. Podemos senti-lo na pele e ouvi-lo no farfalhar das folhas. Um dia, Ele colocou meu coração para além do tempo, na Eternidade. O encanto do Transcendente seduziu-me. “O zelo de tua casa me inebriou”, diz o salmista (Sl 69/68, 10). Deus é a Beleza. Segundo Helena Kolody, “as coisas belas são sua sombra no mundo”. Esplêndido é o Evangelho; extasiante, o mistério da Eucaristia; encantadoras são as Bem-aventuranças; tocante é a poesia de Maria Santíssima. Tudo isso me inspirou a ser sacerdote. E Michel Quoist (meu contemporâneo, em Louvain) marcou-me com estas palavras: “Deus não mora apenas numa casa. Se assim fosse, estaria ausente do resto do mundo. Vento engarrafado não sopra. Meu irmão, leve Deus para o meio dos homens.”
O que dizer da Igreja? É terrena e divina, sacramento temporal de Cristo, detentora de muitas virtudes e alguns pecados, pois também é humana. Respeito-a profundamente. É minha mãe na fé. Dela pode-se discordar esporadicamente, desrespeitá-la jamais. Isso me ajudou a viver em paz e feliz, ao longo destes oitenta anos, dos quais cinquenta e seis, de sacerdócio. Não sou exemplo, e sim mendigo do perdão divino. O reconhecimento de nossa miséria atrai a misericórdia de Deus. Busco viver o ensinamento do salmista: “Provai e vede como o Senhor é bom. Inefável é o seu amor, incomensurável a sua bondade.” (Sl 34/33, 8; 36/35, 8). Minha fé leva a entregar-me, cotidianamente, ao Pai Celeste.