Mentiras desavergonhadas, escreve Kakay

Palácio do Planalto, houses the presidential offices of the president of Brazil. was designed by Oscar Niemeyer. Its name “highlands”, in reference to the geographical scenery of the capital. Brasília, October 26, 2018. Photographer: Sérgio Lima / Bloomberg.

A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas, no fim; lá está ela.” —Winston Churchill.

Se o caos dos dias atuais pudesse ser explicado por algum especialista em desgraça e ele ousasse escrever sobre o Brasil, certamente ele seria tido como um profundo pessimista ou um arquiteto das trevas. O Brasil é indescritível. Um acúmulo exorbitante de maldades faz com que o país esteja à deriva, à beira de um naufrágio.

Para muitos, o debacle já veio com a implementação da política fascista e negacionista que nos legou, até o presente momento, 431 mil mortos pela pandemia. Dentre os sobreviventes, 14,4 milhões de brasileiros estão desempregados e perto de 33 milhões estão no trabalho informal. Somos um país de dimensões gigantescas com uma desigualdade brutal e desumana. E temos um sistema político cruel e corrupto que surpreende a todos. Viramos chacota mundial e pária internacional.

A estrutura que levou à Presidência da República um grupo que não tem a dimensão do país deve e tem que ser repensada. E, o pior, é um bando sem preparo, sem escrúpulos e sem limites. A mentira passou a ser a grande arma nacional. O elo de unidade dos que estão no governo é a mentira despudorada, que nem sequer causa constrangimento. Vale lembrar-nos de Ferreira Gullar:

“Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que aí outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.

E se o outro é como ele, outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mora reflete o que admira num jogo multiplicado em que a mentira de
Narciso a Narciso
inventa o paraíso.

O espelho embaciado,
já Narciso em Narciso
não se mira:
Se torturam
Se ferem
Não se largam
Que o inferno de Narciso

É ver que o admiravam de mentira”

A mediocridade eliminou quase totalmente a produção intelectual no Brasil. Viramos um país do óbvio, das mensagens de 5 linhas, da falta de reflexão e dos discursos no cercadinho na frente do Palácio. Mas, para todos nós que resistimos, é importante delinear os espaços de enfrentamento da barbárie.

O desmonte deliberado de todas as áreas anuncia tempos ainda mais desesperadores. O completo abandono da ciência, da educação, da saúde e de todas as bases de um país justo foi se concretizando a passos largos.

E numa disputa surda entre a vida e a morte, entre as luzes e o obscurantismo, o país vai tentando se posicionar enquanto o governo trata de saquear a nação à luz do dia. É uma política deliberada de sucateamento. Não são poucos os que hoje entendem que erraram, e que o apoio a este grupo miliciano indica uma forte sensação de ruptura institucional. Mas ainda existe uma parcela considerável que não acredita no vírus, que defende que a terra é plana e que nós é que somos imbecis, não eles, todos cúmplices dessa tragédia humana. Tudo isso remete-me ao grande Candido Portinari, pintor e poeta:

“Loucos os homens cospem lama
Sobre as flores e as criancinhas.
Quando começaram? Sem cílios
E as retinas mortas continuam

As espadas de água e as terras
Fendidas escorrendo-nos dentro.
Vozes feias e malditas
Perseguindo-nos. E as luzes e as folhas?

Eles não caem não se levantam
Não vão e não vêm. Não são
Pesadelos? Dementes espaventados fogem…”

Mas o grupo que comanda o Brasil optou por governar um país imaginário. A mentira individual leva a uma série de deformações que pode causar constrangimento a quem tem responsabilidade, mas que é a arma dos que estão atualmente no poder. A questão é que, neste momento, a mentira coletiva passou a ter um espaço e uma força que orienta o destino do país. Os mentirosos passaram a acreditar nas versões criadas e um fio tênue entre realidade e ficção tem dado mais espaço a esse mundo imaginário. Imaginário, mas com efeitos reais catastróficos. A narrativa teratológica substitui a realidade com a simplicidade que leva boa parte das pessoas a se sentir representada. Os idiotas, já disse Nelson Rodrigues, perderam a modéstia. A reflexão
e a crítica viraram artigos de luxo.

Reconhecer o nível de insanidade dessas autoridades é importante para definir como combater a selvageria.

É um governo no qual o Ministro da Casa Civil tem o desplante de tomar a vacina escondido, com medo da reação do presidente da República. Um general se escondendo de um capitão de araque. Uma vergonha alheia.

Um outro general da ativa, que ocupou o Ministério da Saúde sem sequer saber o que era o SUS (Sistema Único de Saúde), mente em rede nacional sem nenhum pudor. Não existe uma inteligência emocional ou uma estratégia que não seja o deboche. O ex-ministro disse que o presidente nunca o desautorizou a comprar vacinas e é desmentido por inúmeros vídeos. É muita desfaçatez. É aquele limite do mundo ficcional que aparentemente essas estranhas criaturas criaram para elas.

O problema é que as consequências das alucinações coletivas, vividas por essas autoridades, são suportadas pelo cidadão real. As mentiras que os sustentam e que os fazem viver numa bolha repercutem no dia a dia do brasileiro. No caso, as vacinas não foram compradas por ordem expressa do comandante dos asseclas.

E a guerra ideológica que alimenta esses pigmeus intelectuais faz com que, neste momento, não exista produção do imunizante no Brasil por falta de insumo. Sem vacina comprada e sem insumo para produzir no território nacional. Tudo documentado, filmado. Mas, no mundo imaginário vivido por esses governantes, nada aconteceu. Eles são a própria mentira. Confundem-se com ela. Vivem dela.

E o desesperador é que, nas poucas vezes que cumprem o que falam, que dizem a verdade, a realidade é também desastrosa. O ministro do Meio Ambiente, na reunião ministerial de 22 de abril presidida pelo presidente da República, esclareceu que o plano dele era, aproveitando que a mídia e as atenções de todos estariam voltadas para a pandemia, “passar a boiada”, promover uma “baciada” de mudanças de regras ligadas à proteção ambiental para satisfazer a sanha predatória dos grupos que apoiam o governo.

Essa é a nossa sina. Viver entre o delírio do mundo imaginário onde a mentira é o ponto de união dos medíocres e a infeliz realidade de um país sucateado e entregue. E a realidade, da qual não podemos fugir, é que o Brasil virou um país triste, perigoso, sem luz.

O oxigênio que falta aos milhares de infectados, entregues muitas vezes à própria sorte, é o mesmo que devemos desesperadamente buscar para nos dar forças ao enfrentamento. Não podemos deixar de resistir. Vamos lutar contra o mundo falso e imaginário e vencê-lo no mundo real. Até porque não nos deram outra opção. Melhor socorrer-nos ao sonhador D. Quixote:

Mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é Justiça!

poder 360.