Padre João Medeiros Filho
Quem aprecia autos – ao sabor de Gil Vicente e Ariano Suassuna – talvez pudesse narrar nesse gênero as tragédias de nosso país, dentre elas Brumadinho, metáfora de nossa realidade. Restaurante e escritórios, bem abaixo no caminho da barragem rompida, permanecem “na retina cansada” dos sobreviventes. As sirenes soam descontroladas aos ouvidos dos habitantes de outras cidades. As árvores e as pedras rolam, pois não se sustentam com tanta sujeira material e imaterial a seus pés. Inúmeras construções e planos destruídos, pessoas ceifadas de suas vidas em átimos.
Muitos fecharam os olhos, durante anos, diante de erros bárbaros, omissões e negligências em que o poder público é ausente ou conivente. Foram catástrofesprevistas. Elas continuam e, se os reparos forem procrastinados, atingirão a ponte de Igapó, sobre o Rio Potengi ou a de Niterói sobre a Baía da Guanabara. Piscamos ainda os olhos, mas centenas de pessoas os cerraram eternamente, cobertos com a lama fétida do descaso e da ganância. Dirigentes revelaram uma cegueira de décadas, perante incongruências e crimes, apesar de permanecerem vivos e de consciência anestesiada. Longe, lenços enxugam as lágrimas de uma gente atônita, sofrida e perambulando na noite do menoscabo social e público. Existem os que tentam consolar as vítimas, procurando explicar o inexplicável. Autoridades e responsáveis abrem sindicâncias intempestivas e inconsequentes, talvez inócuas, decretando luto oficial e bandeiras a meio mastro.
Foi assim em Minas Gerais (Miraí, Mariana e Brumadinho), no Rio Grande do Sul (boate Kiss), em São Paulo (incêndio em Cubatão e no Museu da Língua Portuguesa, dentre tantos), no Rio de Janeiro (o fogodevorou o CT do Flamengo, o Museu Nacional; o desabamento no Morro do Bumba etc…). Não esquecemos ainda o infortúnio de Goiânia (césio 137). Vidas e patrimônio cultural viraram cinzas. Cidades estão pávidas e indefesas ante tanto desleixo. Se não houver providências, pontes e viadutos dissolver-se-ão, como o asfalto com o qual recapeiam ruas e estradas. Resistem crateras abertas, feridas não cicatrizadas, bueiros com bocas escancaradas – quais túmulos – preparadas para sepultar as próximas vítimas. A displicência com que tratam nossas cidades, as avenidas por onde passamos, as estradas pelas quais trafegamos rondam-nos em constante ameaça. Há fios pendurados ou desencapados, deixados ali por uma empresa, por outra que mexeu, e mais alguma que precisou desligar ou ligar algo. São responsabilidades jogadas de mão em mão, de governo em governo, de uma esfera a outra.
Ouvem-se promessas, às vésperas das eleições. As câmaras municipais dão nomes dos mortos às ruas e avenidas que os vitimaram. Afinal, necessitam de homenagens para não serem totalmente esquecidos. Assembleias legislativas? Olhem a ALERJ: vários integrantes, atrás das grades, por desvios, corrupção, servidores fantasmas, laranjas e “rachadinhas” de salários. Aquelas de outros estados aguardam investigações, se encontrarem alguém disposto a dizer a verdade. Alguns deputados certamente falarão que estão nas suas bases, lutando pelas cidades que representam no parlamento.
Aqui ficamos diante da lama de nossa indignação, recolhendo os rejeitos e escombros de nossa revolta e até, quem sabe, culpando Deus por tantas desgraças. Assiste-se ao espetáculo cotidiano da insanidade e à briga pelo poder no Congresso. Ecoam discursos teatrais, recheados de “excelências” e salamaleques. Oxalá seu pensamento e vontade estivessem voltados para o povo, transformandodiscursos em gestos concretos. É nele que devem fixar a atenção e registrar as solicitações. Não raro, somos deixados ao largo. Teremos de esperar o dia em que a casa cair, o buraco engolir, o prédio incendiar, a ponte desabar, o rio transbordar, o fio eletrocutar, a pedra rolar do morro, a barragem romper? Ah, mas não se pode deixar de pagar o IPTU, o IPVA e outros tributos com vencimento em breve. Deus queira que o dinheiro arrecadado sirva realmente para não chorarmos por tantos desastres. Lembremo-nos das crianças de outrora: “Cadê o dinheiro que tava aqui? O gato comeu”; o fogo queimou, a lama engoliu e o rio carregou. Cabem as palavras do evangelista Mateus, falando dos santos inocentes: “Ouve-se um grito em Ramá, um grande lamento. Raquel chora os seus filhos, que já não vivem” (Mt 2, 18. Jer 31,15).