Marcas europeias na liturgia

Padre João Medeiros Filho

A presença de elementos europeus na liturgia é incontestável. O Concílio Vaticano II procurou depurar as bizarrices, mas ainda vigem algumas alheias à nossa cultura. Segundo Adélia Prado, “várias mudançaspropostas por certos reformistas destoam do clima místico e sagrado.” Ainda hoje, alfaias e paramentos religiosos remetem a costumes da Europa ocidental. Sente-se também essa influência nos hábitos de frades e freiras. Costumes foram concebidos em função do rigor invernal de países do hemisfério norte. Os capuzes dos buréis franciscanos, beneditinos etc. visam a guardar o rosto dosusuários de ventos gélidos. O solidéu episcopal – influenciado pelo quipá judaico – tinha a função de resguardar da friagem a cabeça dos prelados. Estes, até a década de 1960, usavam uma tonsura maior que a dos demais clérigos. Como proteção contra o frio, idealizou-se, além do solidéu, a mitra episcopal para os atos litúrgicos realizados nas seculares catedrais, desprovidas de aquecimento.

Até o Concílio Vaticano II, para as missas pontificais solenes, o bispo adentrava os templos de batina, roquete e mantelete. Retirava este e vestia-se com amicto, alva, cíngulo, estola, tunicela (própria dos antigos subdiáconos), dalmática (atualmente usada pelos diáconos), manípulo (espécie de toalha no braço esquerdo) e casula. Isso tudo para mitigar os rigores climáticos, acrescentando o simbolismo da plenitude sacerdotal. Imaginem essa roupagem no tórrido Seridó. Não parava por aí. O bispo devia usar luvas (cores combinando com o tempo litúrgico), mormente quando estivesse no sólio pontifício. Antes da reforma conciliar, chegando ao trono, o bispo sentava-se e seis acólitos ajoelhavam-se em torno dele para trocar os sapatos e calçar umas sapatilhas especiais, denominadas cáligas. Outrora, nos países europeus, o pontífice descia da carruagem, andava alguns metros, antes de ingressar na nave central da igreja, molhando os sapatos na neve derretida. O clima no nordeste brasileiro e outras regiões tropicais é bem diferente. Tais vestimentas não combinam com o calor em nosso país e alhures. Dom José Adelino Dantas, ao ser nomeado bispo, informou aonúncio apostólico que não tinha condições financeiras de comprar o enxoval, inclusive anel, cruz peitoral e báculo. Estas três insígnias lhe foram presenteadas por benfeitores.

Lembro-me de um caso, quase anedótico, ocorrido na catedral caicoense. Certa feita, acolitei uma missa pontifical, celebrada por Dom José de Medeiros Delgado, na festa da Irmandade das Almas do Seridó. Esta transcorre na segunda quarta-feira de novembro, em plenacanícula das dez horas. Concelebrava Monsenhor Walfredo Gurgel. O Coral de Parelhas, regido peloCônego Amâncio Ramalho, executava uma linda edemorada polifonia do pós-comunhão. Dom Delgado, transpirando muito e sedento, volta-se discretamente para o seu vigário geral e sentencia: “Walfredo, se não existir céu, que tabocada!” Incontinenti, respondeu o sacerdote: “E que lá no céu, não haja essa cantoria de Amâncio.” O bispo, apesar da seriedade do momento, não conteve o riso.

Não é apenas na liturgia que acontece coisas alheias à nossa cultura. É bem conhecida a indumentária do goleirode futebol: camisa com mangas compridas, meias até os joelhos, luvas etc. Como movimenta-se menos que os demais jogadores, é necessário protegê-lo do frio. No entanto, tais vestes não condizem com lugares calorentos. Sábias as palavras do apóstolo Paulo aos colossenses, mostrando a adaptação cultural: “Não se faz mais distinção entre grego e judeu, escravo e livre, porque agora o que conta é Cristo” (Col 3, 11).

Essa discrepância cultural acontece igualmente com os irmãos evangélicos. Estes, em pleno calor de Jucurutu, são obrigados a participar de cultos em templos não climatizados, trajando camisa de mangas longas, paletó e gravata (houve quem obrigasse o uso de colete). Este tipo de traje não condiz com o calor do Seridó. Há um dado positivo na missionariedade dos evangélicos. Alfabetizavam primeiramente os membros das igrejas para ler a Sagrada Escritura. Isto fez com que os países colonizados por protestantes tivessem maior índice de alfabetização do que os catequizados pelos católicos. Todavia, não faltam estranhezas. Certos pregadores norte-americanos, ao evangelizar na África, influenciaram os nativos inicialmente no uso de coca-cola. A Carta aos Coríntios ensina o respeito às diferenças culturais: “Para todos eu me fiz tudo, certamente para salvar alguns. Por causa do Evangelho, eu faço tudo” (1Cor 9, 22).