Mãe: o doce silêncio da ausência

Kakay 31.mai.2024 (sexta-feira) – 5h59
“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo.”
–Manoel de Barros, “Livro das Ignorãças”
Há momentos na vida em que muitos atos relegados à insignificância tomam corpo e sentido. Lembrar o que fizemos ontem é o óbvio e só merece destaque quando o esquecimento se faz presente. Esquecer é algo sem importância, salvo quando vira perigosa regra.

O dia a dia de quem a gente ama tem outra cor com o esquecimento. E é estranho, com um simples observar, sem profundidade, nem ciência, quando o esquecimento vem acompanhado de um olhar perdido. Não se sabe se de angústia, de busca ou de um alheamento que tem um quê de cansaço e dor. Parece sabedoria. Difícil para quem pensa que está lúcido entender esse outro espaço do que parece ser uma não lucidez.

Não há nada mais cruel, doloroso até, do que o espaço entre a tal lucidez e a perda dela. Depois que o esquecimento se instala, todos, aparentemente, sofrem menos. Somos adaptados, de fábrica, na luta pela sobrevivência, pois temos um kit emergência. Quando o problema se apresenta, enfrentamos. Quando acreditamos que há saída, o caminho é muito sofrido. Mas nós nos apresentamos. E o esquecimento não se define assim, de pronto. É traiçoeiro e insinuante. Vem aos poucos e nos engana com pequenas memórias, saudadas quase como milagre. Também nós, aparentemente lúcidos, precisamos desses respiros de memória e comemoração. Na verdade, essa doença assusta a todos que nos vemos nela com uma projeção macabra.
Digo que sofremos menos até o inevitável acontecer, pois precisamos nos manter lúcidos. Enquanto a tal névoa está baixando e deixando os olhos opacos, todos nós nos negamos a acreditar. E é incrível a minha experiência com a maturidade do amor nessa hora.

A falta do diálogo deixa de ser falta e a presença nos basta. Os casos antigos não mais contados continuam a nos aconchegar silenciosamente. O silêncio amoroso é uma companhia sempre acolhedora. O beijo fugaz. O olhar repentino. Às vezes, a memória de uma insignificância. Tudo nos remete a Sophia de Mello Breyner Andresen, no lindo poema Ausência:
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda que a tua.”.

Difícil entender o que contém naquele olhar perdido, antes tão claro e tão lúcido. Impossível entender o silêncio da ausência com quem sempre tinha um caminho a contar, um carinho explicitado. Um amor materializado nas palavras doces que só a mãe pode ter. E, especialmente, um silêncio do sorriso que não se negava. Afeto puro. Esse sorriso ainda hoje existe quando ela parece querer nos pegar no colo. E nos abraça com um sorriso que ilumina a vida. Lembro-me do meu poeta amado, Leão de Formosa: “É a única deusa viva do meu culto, a única mulher que quero ver no céu”.
Não sei se é consolo saber que toda essa dor e falta vêm de anos acumulados de amor, alegria, camaradagem, carinho e cumplicidade sem limites. O que mais me faz falta é exatamente esse excesso que vivi. Excesso que justifica a vida e que explica o vazio. Não sei em que lugar foi habitar tanta doçura, amor, solidariedade e carinho. Meu maior espanto é, às vezes, querer seguir o seu olhar perdido e, docemente, me perder. Para encontrá-la.
Lembrando-nos de Mia Couto: “Antes de dormirmos a mãe vinha esticar os lençóis que era um modo de beijar o nosso sono”.

Foto reprodução: O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay