“Perdi muito tempo até aprender que não se guarda as palavras, ou você as fala , ou as escreve , ou elas te sufocam .” Clarice Lispector
Hoje, o massacre que matou 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado do Carajás completa 25 anos. Quase nada mudou no Brasil . Os trabalhadores continuam sendo mortos , e isso é o que nos interessa enfrentar e o que nos mobiliza. A sociedade ainda parece desprezar a gravidade da questão da terra. São tantas as demandas de enfrentamento do fascismo diário que corremos o risco de não nos engajarmos com a devida força e o comprometimento necessário nessa importante matéria.
À época, foi decidido que deveríamos fazer um júri simulado para denunciar internacionalmente o massacre. O júri foi formado e o seu presidente era o grande José Saramago . O Ministério Público foi representado pelo ex-Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles . Os jurados eram pessoas ilustres, como Marina Silva , Marcelo Lavenère, Paulinho Delgado, dentre outros.
A OAB indicou-me como advogado do “réu”, o Estado do Pará . Tarefa inglória. Aceitei e prometi a mim mesmo dar ao “réu” uma defesa digna .
Na ocasião, reunimo-nos no auditório Petrônio Portela, no Senado Federal , para o júri simulado. O mundo estava de olho no júri.
Na noite anterior, em um jantar no meu restaurante, o mítico Piantella , o mestre Saramago me questionou: “ouço falar bem do senhor, qual vai ser sua linha para essa impossível defesa?” E eu, respeitosa e atrevidamente, respondi: “Mestre, eu só advogo quando tenho tese. Vou ganhar.” Ele, com certa perplexidade, riu. Não sei se comigo ou de mim.
Começou o júri e a plateia era quase integralmente de trabalhadores. A maioria não entendia muito – e com razão – que aquele ato era um júri simulado . Era uma denúncia do abuso e do assassinato dos trabalhadores. Eu era hostilizado e vaiado como advogado do ” réu “, o Estado do Pará.
A acusação massacrou o meu “cliente”. A plateia aplaudia fortemente. Quando havia referência à defesa, eu era vaiado . Um clima verdadeiro estava instaurado num júri simulado.
Passaram a palavra para a defesa , o que é um ato sagrado. Em meio às vaias, eu pedi que me ouvissem . E, de forma respeitosa – pois os trabalhadores são respeitosos – , o silêncio se fez. Em seguida, procedi à defesa do “meu cliente “.
A minha argumentação era técnica.
Quem matou os trabalhadores de Eldorado do Carajás foi a falta da reforma agrária. O responsável constitucionalmente por essa reforma era e é o governo federal. Logo, quem deveria estar no ” banco dos réus ” não era o governo do Pará, mas, sim, o governo federal . Em última análise, o então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Silêncio no auditório. Tensão . Eu havia feito uma das defesas mais emocionadas da minha vida. Com a permissão criativa que a defesa tem constitucionalmente .
De repente, a plateia começou a aplaudir de pé e gritou a minha tese. Era um brado pela reforma agrária, que nunca veio. Uma homenagem aos mortos que seriam reproduzidos milhares de vezes pela desigualdade. Lembro-me de ser, talvez, o primeiro advogado a ir a Rio Maria, indicado pelo grande Márcio Thomaz Bastos, para enfrentar os fazendeiros. E, por sugestão do Padre Ricardo, dormir no banheiro e ver o quarto onde eu dormiria ser atingido por 12 tiros!
Na verdade, o que eu guardo com carinho, e até emoção , foi o jantar com o Saramago quando ele me ofereceu um brinde . Mais ou menos dizendo que tinha ficado emocionado de ver a defesa, usando argumentos jurídicos, priorizar os direitos humanos, o direito à vida. Enfim, tudo aquilo que a gente tem feito ao longo dos anos . A certeza de que nós não fazemos nada perto do que faz o MST . Mas, a vida é assim. Se o Saramago se espantou com nossa postura, eu penso: vale a pena continuar na luta.
Miro-me na escrita de Mia Couto: “Nenhuma palavra alcança o mundo, eu sei. Ainda assim, escrevo .”
Fonte: Último Segundo