Joka, da Tapiocaria da Vó, é morto durante assalto

Joka foi um dos personagens do documentário “Não estamos à venda”, dirigido por Raquel Cardozo | Foto: reprodução.

Uma das figuras mais conhecidas da Vila de Ponta Negra, João Batista de Lima, de 63 anos, mais conhecido como “Joka”, criador da Tapiocaria da Vó, foi assassinado na madrugada da última segunda-feira (5). Ele reagiu a um assalto e levou um tiro na “prainha de Pirangi”, em Parnamirim.
A ocorrência foi registrada pela Polícia Militar pouco antes das 3h. Ele estava com uma amiga quando foi abordado por um homem que anunciou um assalto. O criminoso ainda levou R$ 100 e dois celulares.
Uma unidade do Samu foi acionada, mas Joka não resistiu e morreu no local. A ocorrência foi atendida pela Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Plantão, e o crime será investigado pela DHPP de Parnamirim. A suspeita é de latrocínio, mas a Polícia Civil informou que as investigações ainda irão aprofundar a motivação.
A Tapiocaria da Vó, da qual era responsável, funciona como um espaço cultural com comidas regionais e frutos do mar. Colorida e muito bem decorada, reúne músicos para apresentações culturais e aglutina a comunidade local. Neste início de fevereiro, o clima já era de carnaval, com prévias e muita boemia.
Lia Araújo, moradora da Vila de Ponta Negra e integrante do Coletivo Enegrecer, diz que a comunidade “amanheceu sentindo o peso de ter perdido um dos grandes moradores e articuladores daqui”. Eles costumavam trabalhar juntos no desenvolvimento de projetos culturais. E era um dos defensores para que a Vila pertencesse aos nativos de Ponta Negra.

Foto: cedida

“Não tem como não mencionar que todo esse acervo cultural que hoje a Vila resgata foi fruto do trabalho de Joka. E Joka foi da juventude da Vila, do clube de jovens da Vila na época dele. Foi presidente do conselho comunitário. Ele era conhecidíssimo, não somente aqui na Vila, mas em Natal. Nacionalmente ele tinha articulação. A Tapiocaria da Vó é um dos pontos hoje que deveria se tornar ponto de memória, porque ele fazia questão de fazer com que aquele lugar fosse reconhecido exatamente pelos valores que a comunidade traz. É uma perda irreparável. Um cara tranquilo, que não tinha problema com ninguém, um cara que era bem visto. É uma tragédia”, lamenta.

Joka era Rendeiro, pescador, filho, neto e bisneto de pescador e rendeira, “nascido de uma paixão precoce pela arte”, como diz um texto biográfico, escrito por Lia, anos atrás para a inscrição de um projeto, em que Joka também fazia parte.
A relação com a arte vinha realmente de família: seu pai era brincante do Rei do Congos de Calçola, e o artista iniciou sua jornada explorando diversas formas de expressão por meio do convívio com as rendeiras, com o forró tradicional e a experiência com os grupos folclóricos da Vila de Ponta Negra.

A Vila para quem é da Vila

Joka foi um dos personagens do documentário “Não estamos à venda”, produzido pela documentarista Raquel Cardozo. Em um dos trechos da produção, ele lamenta a gradativa saída dos moradores locais para a vinda de pessoas sem identificação cultural com a comunidade.
“Hoje o que me entristece muito é ver os nativos saindo daqui, vendendo a grande parte pra gringo. E com os nativos vai embora a cultura”, disse. Porém, não deixava se abater e falava da Vila com carinho:

“As maiores emoções que eu tive em minha vida foram ver um pitoco acender uma lamparina e abrir um treco que saía água. Essas são várias coisas que marcaram minha vida como nativo, além de sobreviver da caça, sobreviver da pesca, sobreviver do que plantávamos. Meus pais, meus avós, meus bisavós, todos os meus antepassados, na entressafra do peixe plantavam feijão, milho, mandioca, batata, entre outros”, falava no documentário.

Para Raquel Cardozo, Joka era um grande incentivador cultural. “Ele disse que não ia deixar o medo limitar ele, porque ele ama aquela prainha e se realizava demais indo pescar lá”, contou. A documentarista ainda dirigiu uma outra obra com a participação de Joka, sobre a produção do azeite de uma fruta chamada bati. “Ele quem me disse da importância de fazer esse documentário, a importância cultural. Ele é um dos entrevistados e também narra a abertura e o final”, lembrou Cardozo.

Uma das últimas fotos tiradas por Joka antes de morrer | Foto: cedida

Segundo Lia Araújo, a família de Joka foi uma das primeiras famílias negras a habitar aquela região. “Tanto que antes a Vila poderia ser considerada quilombo. Hoje é um território negro, mas antes era um quilombo formado por quatro famílias”, explica.

“O território da Vila era muito maior do que é hoje. Foi fruto da desapropriação da terra que surgiu uma resistência como o Joka. Ele falava muito sobre a vinda das pessoas, essa coisa de ‘nós não estamos à venda, e a gente cobra caro’”.

Servidora pública e moradora da Vila, Ana Carolina Pontes Ros era cliente da Tapiocaria da Vó. “Joka mantinha ali um espaço de resistência cultural de extrema importância pra Vila. Filho de pai pescador e mãe rendeira, mantinha naquele espaço a cultura local viva”.

Ana estava com Joka até horas antes dele ser morto. “Estava muito feliz ontem participando do evento Mungunza Cultural no Porão das Artes e foi embora tranquilo, dizendo que ia ficar na prainha descansando até quarta-feira.”

Fonte: www.saibamais.jor.br – Valcidney Soares