Na semana passada, tratei aqui da contaminação do discurso jurídico, no seu próprio ambiente – grosso modo, nos autos –, por um tipo disfarçado de ficção, um “direito contado”. Falei dos discursos dos profissionais do direito em seus métiers, sobretudo aqueles produzidos por personagens membros do Ministério Público e juízes. Sugeri que eles entronizaram a famosa assertiva de Ost, de que “do relato é que advém o direito”, para fazer um uso deveras errado dela.
A partir desse texto, nos grupos de WhatsApp da Academia de Letras e da Academia de Letras Jurídicas norte-rio-grandenses, recebi uma provocação do meu professor de introdução ao estudo do direito, Ivan Maciel de Andrade, com o seguinte teor: “e o fenômeno chamado ‘bias’ – em que medida interfere no ‘livre convencimento’ ou na ‘persuasão racional’ do julgador?”.
A resposta é: numa grande medida. Sabemos disso desde os tempos do realismo jurídico americano, sobretudo na sua segunda fase, quando seus líderes, entre eles Jerome Frank (1889-1957) e Karl Llewelyn (1893-1962), desmascararam a doutrina tradicional, segundo a qual os juízes decidiam apenas aplicando as normas/regras mencionadas nos seus pronunciamentos, para também colocar na ribalta, como razão determinante da tomada de decisões, as preferências políticas ou morais do julgador. A norma jurídica formalmente escolhida/apresentada seria apenas a racionalização de uma decisão já “preconceituosamente” tomada.
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, reconheço que tomamos decisões baseados numa miríade de razões/fundamentos, somente alguns dos quais são racionais ou mesmo conscientes. Os passos na elaboração de uma decisão são complexos e não óbvios. Acho que é impossível nos vermos totalmente livres dos nossos preconceitos, bias ou mesmo ideologias ao tomarmos qualquer decisão. Na vida cotidiana, certamente. E na atividade ministerial/judicante também.
Phillip J. Cooper (em “Public Law and Public Administration”, F. E. Peacock Publishers, 2000), com base nas ideias do legal realism, dá um resumo: “O Direito consiste em um conjunto de decisões tomadas por pessoas no poder. Essas decisões não são necessariamente racionais. Os juízes têm preferências e valores, e suas decisões, bem ou mal, são afetadas por características herdadas ou adquiridas que eles trazem para a magistratura. O comportamento dos juízes também é afetado, especialmente em tribunais, pelo fato de que tais cortes são órgãos colegiados que operam com toda a força e todas as fraquezas impostas pela dinâmica de pequenos grupos”.
De toda sorte, acredito que podemos – e, mais do que isso, devemos –, como profissionais do direito, minorar a influência dos nossos preconceitos, bias ou ideologias nas nossas decisões. Devemos tentar ser independentes de nós mesmos, quero dizer. Aliás, diferentemente do homem comum, o juiz/promotor deve ser treinado para isso. Julgar é o métier deles. E há instrumentos para minorar essa “influência de si mesmo”. A lei serve para isso. Os precedentes também.
Nesse ponto, nunca deixo de mencionar a lição de Andrés Ollero Tassara (em “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial”, Centro de Estudios Constitucionales, 1989): “Dentro de uma apresentação estritamente técnica da função de aplicação das normas, a ‘independência’ indicava a subtração a qualquer imperativo ou fonte de pressão, alheios ao processo técnico (‘políticos’, para reduzir o tópico). O juiz não deve depender de ninguém, e só se reconhecer submetido ao texto legal. O problema surge quando se torna evidente que não há tal aplicação técnica sem prévia interpretação valorativa; nela os juízos encadeiam-se inevitavelmente com juízos prévios, que marcam uma dependência peculiar do juiz: de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo, pessoal e dificilmente transferível. Esta dependência do juiz do seu próprio entorno, juntamente com o caráter mais ou menos aberto, mas sempre histórico do sentido do texto legal, explica a pluralidade interpretativa que os diversos órgãos acabam produzindo. A hierarquização processual ajudará a reduzir essa dependência judicial, suavizando-a. Prescindindo dessa e de outras instâncias de controle, entre as quais o respeito ao precedente (exigido pela igualdade) ocupa lugar destacado, não se faria homenagem alguma à independência de uma subjetividade cuja eliminação é tão utópica como indesejável, dado que, sem tais juízos prévios, nunca haveria juízo algum. Vincular o juiz ao precedente [à lei parece mais que óbvio] é obrigá-lo a controlar seus próprios juízos prévios em diálogos com juízos próprios e alheios. Assim se tornará mais dono de si mesmo e aumentará também a dimensão de sua independência; porque nada corrói mais a confiança na Justiça do que as aparências de arbitrariedade (‘independência’ sem controle) nos responsáveis por realizá-la”.
Por fim, admitindo como uma realidade a impossibilidade de uma decisão pura, livre de quaisquer preconceitos/bias, o que vejo hoje é uma hiperinflação das ideologias. Para um lado e para o outro, a todo redor, diga-se de passagem. E isso é péssimo.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL