“Fratelli tutti” (Todos irmãos)

Padre João Medeiros Filho
Eis o título da terceira encíclica do atual Pontífice a ser publicada, no próximo dia 3 de outubro, véspera da festa litúrgica de São Francisco de Assis. Tradicionalmente, os documentos eclesiásticos dessa natureza são redigidos em latim (língua oficial da Santa Sé). Entretanto, Francisco, ao nominar sua segunda carta encíclica, empregou uma expressão do dialeto úmbrio: “Laudato si” (Louvado sejas). Gestos, textos e palavras de Bergoglio têm se tornado rapidamente pauta da mídia e das redes sociais. Críticas circularam em alguns países, por conta da escolha da língua e do título adotado por Sua Santidade no próximo escrito.
Na história do catolicismo, Francisco é um dos raros papas a intitular uma encíclica em idioma moderno. É mais um caso de sua “liberdade poética”. Em 2015, com a “Laudato si” quis prestar uma homenagem ao Santo de Assis. Seus opositores acusam-no de continuar abandonando o tradicional latim. Porém, não se pode esquecer que Pio XI publicou, em 1931, a “Non abbiamo bisogno” (Não temos necessidade), uma resposta da Igreja às ações repressivas dos regimes totalitários. Seis anos depois, editou a “Mit brennender Sorge” (Com grande preocupação), endereçada ao episcopado alemão. Diante das discordâncias, poder-se-ia lembrar a frase de Cristo: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.” (Mc 2, 22).
“Fratelli tutti” é citação das palavras iniciais da sexta reflexão de São Francisco, a qual faz parte da coletânea de suas vinte e oito admoestações. Segundo teólogos, elas constituem o núcleo central da espiritualidade franciscana. Depois da “Laudato si”, “Fratelli tutti” será mais um documento inspirado no legado do fundador da Ordem dos Frades Menores. Grupos rechaçam – sem o documento ter vindo a lume – as duas palavras do seu título, desconhecendo a origem e o motivo da opção do Sumo Pontífice. Há eclesiásticos e leigos insistindo para o Papa acrescentar ao título os termos: “e sorelle” (e irmãs). Isso faz lembrar o artigo (Masculinicídio) de nosso confrade Armando Negreiros (cf. Blog “Ponto de Vista”, edição de 31/08/20). Ali, o autor relata a tendência de neologismos desnecessários (muitos de cunho ideológico, desprezando a língua pátria e suas regras gramaticais). Hoje, tal propensão atinge até mesmo a liturgia católica. O “Orate fratres” (Orai irmãos) do missal católico vem sofrendo alteração em algumas traduções para “Orai irmãos e irmãs”. Os pregadores sentem-se praticamente obrigados a começar suas homilias e reflexões com a saudação: meus caríssimos irmãos e minhas caríssimas irmãs. Existe também quem queira introduzir o termo irmãs nas epístolas, inexistente nos textos inspirados.
Voltando à “Fratelli tutti”. Era de se esperar que, nestes momentos de crise, o Romano Pontífice haveria de se manifestar. Etimologicamente, encíclica significa carta circular. É dirigida a católicos e pessoas de boa vontade. Neste ponto, Bergoglio segue a tradição eclesial, interpelando os cidadãos do mundo sobre os problemas atuais. Consoante comunicado oficial do Vaticano, do dia 5 último, “Fratelli tutti” será fundamentalmente um escrito sobre a fraternidade humana. Contém um apelo à cooperação internacional, nestes tempos difíceis pelos quais passa a humanidade. É um pronunciamento que poderá se tornar um dos mais abrangentes dos últimos pontificados, no que tange à versatilidade dos assuntos abordados. Vaticanólogos acreditam que causará um impacto expressivo como a “Pacem in Terris”. Ainda hoje, especialistas consideram este escrito de São João XXIII – idealizador do Concílio Vaticano II – um texto relevante sobre a dimensão social do Evangelho.
O Papa insistirá em temas que vem tratando em seus últimos discursos: cessar-fogo mundial, globalização, meio ambiente, economia, migrações, pandemias, solidariedade, colaboração entre os fiéis e não crentes. O documento privilegia a temática da fraternidade humana. É um convite aos povos a se unirem na construção de um mundo mais justo. Constitui-se em um alerta, rechaçando as diversas formas de desrespeito à dignidade humana, na atualidade. Infelizmente, de acordo com autoridades e estudiosos, em lugar de se discutir temática e oportunidade da nova encíclica, há um apego a minudências e dados de somenos importância. As críticas lembram a advertência de Jesus, em diatribe com os seus contemporâneos: “Guias cegos, vós engolis um camelo e vos engasgais com um mosquito!” (Mt 23, 24).