
Uma das coisas que mais escutamos hoje, para fins de crítica ao Poder Judiciário, são alegações que não passam de falsas simetrias: “absurdo! Decidiram assim neste caso e assado naquele; absolveram Fulano e condenaram Sicrano; concederam a liberdade [ou a tal prisão domiciliar, hoje muito em moda] a este, mas não concederam àquele”.
Bom, está certo Ronald Dworkin (1931-2013) na assertiva de que a “igualdade perante a lei” é quem nos oferece a explicação irrefutável e definitiva da necessidade de decisões semelhantes para casos semelhantes. A igualdade não pode ficar apenas no plano normativo. Tem seu lugar, talvez de maior destaque, na solução dos casos concretos na vida em sociedade. O jurisdicionado não compreende/aceita duas decisões antagônicas resolvendo o mesmo princípio, a mesma regra e, sobretudo, os “mesmos fatos”. Em resumo, nada mais justo que casos “iguais”/semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos semelhantes sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos.
Todavia, é pressuposto, para que os julgamentos de dois casos estejam condicionados (por uma questão de igualdade perante a lei), que haja realmente uma identidade entre os fatos dos dois casos.
E que identidade é essa? Deve ser absoluta? Óbvio que não, sob pena de invalidarmos a própria possibilidade de aplicação do princípio da igualdade. Afinal, já dizia Heráclito de Éfeso (500-450a.C.), “nós não podemos nunca entrar no mesmo rio, pois, como as águas, nós mesmos já somos outros”. Para ser mais claro: dois casos nunca são inteiramente iguais.
Mas, se a identidade absoluta é impossível, precisamos encontrar uma regra segura para, evitando as falsas simetrias, exigirmos a igualdade de tratamento para dois casos de alguma forma semelhantes. Há critérios para isso. Na verdade, como já ensinava Karl N. Llewellyn (no clássico, que faço questão de citar aqui, “The Branble Busch: some Lectures on Law and its Study”, Columbia University School of Law, 1930), há que se atribuir um nível correto ou apropriado de generalidade aos fatos constantes dos dois casos. Eles devem ser considerados, baseado em critérios de generalidade apropriados, como representativos de uma categoria abstrata de fatos. Ao fato é atribuída significância não por si só, mas como membro de uma categoria. Ademais, o critério para o correto grau de extensão dado à generalização deve ter por parâmetro e limite a constatação de não haver razão jurídica que leve à distinção entre os fatos dos dois casos cotejados, caso a se decidir e caso parâmetro, pertencendo ambos, na situação dada, à mesma categoria de fatos.
O problema é que as pessoas, hoje em dia, no afã de criticar (e de esculhambar mesmo) o Poder Judiciário, generalizam tudo, absurdamente, desavergonhadamente. Colocam tudo no mesmo saco. Consideram tudo “o mesmo rio”, sem sequer minimamente ler as águas – ops, os fatos – dos dois casos comparados, tanto especificamente como, em seguida, no devido grau de generalidade. E, na verdade, se lidos/observados os fatos, um caso demanda mesmo condenação; o outro, não. Se alguém, dadas as suas circunstâncias, merece uma “prisão domiciliar”, outrem, por sua vez, pode ser que não. Temos de conhecer/ler o processo/fatos. É o básico do básico. Já dizia a menina Mafalda, do genial Quino (1932-2020), “viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”.
Bom, para evitar falsas simetrias, encerremos sem mais filosofia: dois casos (mesmo que enganosamente parecidos) às vezes são muitíssimo distintos; às vezes, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL