Com o mundo ocupado com a pandemia e suas graves consequências econômicas, o regime venezuelano se dedicou ao que sabe fazer de melhor: manter-se no poder.
A habilidade é tamanha que produziu o que o escritor Alberto Barrera Tyskha chamou de “espetáculo paradoxal”: uma eleição para “aniquilar o último resquício de democracia que resta no país”.
Com a eleição cujo resultado não trará nenhuma surpresa, pois Nicolás Maduro e companhia aprenderam a não deixar essas coisas ao sabor da vontade dos eleitores, haverá uma nova Assembleia Nacional e os oposicionistas que haviam conquistado maioria no legislativo perderão sua conexão com ela.
Maduro não é bobo. Sabe que poucos países importantes deixarão de reconhecer Juan Guaidó, que havia assumido uma simbólica presidência provisória na qualidade de presidente da Assembleia Nacional.
Mas sabe também que, quanto mais passa o tempo, mais enfraquecido ainda fica Guaidó. Tirar-lhe o único título representativo no qual podia se ancorar é mais um golpe tinhoso.
Maduro está adorando cada minuto que a oposição se desidrata, com uma parte minoritária aceitando participar da farsa por pura falta de opção.
Com o domínio total da máquina, oficial e oficiosa, Maduro e asseclas resistiram às tentativas de quebrar a unidade do regime por dentro, atraindo comandantes militares para o lado da democracia.
Não funcionou e quanto mais sobrevida tem o regime, mais controla as possíveis dissidências internas.
Sentindo-se invulnerável, o madurismo tem condições de se lixar para o povo ao qual diz representar e governa em condições surreais.
A hiperinflação, ligeiramente em queda durante a quarentena por retração do consumo, recuperou forças; a indústria do petróleo continua dizimada e não dá mais para contar quantas vezes a moeda foi desvalorizada. O dá, se conseguirmos fazer contas que alcançam trilhões de bolívares, remontando à primeira desvalorização, na época de Hugo Chávez.
O país também não tem acesso a empréstimos externos e as sanções americanas já custaram, no mínimo, 17 bilhões de dólares. Nem a pandemia e o fechamento de fronteiras impediram que venezuelanos desesperados procurem fugir pura e simplesmente da fome – são cinco milhões de pessoas que já deixaram o país, um sexto da população.
“Com um salário mínimo mensal – que triplicou no mês passado e agora vale pouco mais de um dólar – só dá para comprar um quilo de arroz”, exemplificou a correspondente do El País, Florantonia Singer.
O descontrole é tão grande que, ironicamente, os herdeiros do regime nascido para desafiar o imperialismo americano agora consideram a possibilidade de dolarizar a economia.
Como Maduro consegue sobreviver a um desastre tão avassalador, sem perspectivas de que alguma coisa mude, nem que seja minimamente, para melhor?
O pacto de sangue feito com os comandantes militares, todo mundo sabe a que preço, é uma das respostas.
A repressão também. Desde 2014, foram 18 mil homicídios extrajudiciais, 14 mil prisões arbitrárias e centenas de casos de tortura, segundo o último relatório da OEA.
O escritor Alberto Barrera traçou um roteiro do que acontecerá no domingo: “Em tempo recorde, para dar uma lição ao ‘imperialismo’ – o Conselho Nacional Eleitoral apresentará os resultados da eleição, nos quais se destacará a vitória arrasadora do partido do governo, provavelmente incluindo a maioria absoluta no novo parlamento”.
“Agirão e falarão como se as denúncias e os relatórios sobre o caráter viciado e inconstitucional do processo eleitoral jamais tivessem existindo”.
“Convocarão um grande pacto de união nacional, de diálogo. Falarão de amor. Invocarão os problemas do país e apelarão a deixar para trás as diferenças e olhar com esperança para o futuro. Farão isso com segurança e tranquilidade, com singular histrionismo, tentando sempre por em dúvida a percepção que existe sobre a realidade”.
Infelizmente, tem toda razão. E, indiferente a percepções, a cruel realidade continuará a ser o que é.
Radar – Veja