Dom Delgado e Padre Cícero

Padre João Medeiros Filho
No dia 20 de julho de 2022, celebrar-se-á o octogésimo oitavo aniversário do falecimento de Padre Cícero Romão Batista. Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó, foi um dos defensores e pioneiros da luta pela reabilitação canônica do renomado cearense. Sua atitude corajosa data de 1944. Naquele ano, os bispos da Província Eclesiástica da Paraíba (Natal não era arquidiocese) deliberaram que os sacerdotes não batizassem crianças com o nome de Cícero. O prelado seridoense foi voto vencido, ao ponderar que essa não seria uma atitude cristã. Mesmo sendo verdade o que se atribuía ao “Patriarca do Juazeiro”, não se deveria estigmatizar um nome. Prezando a colegialidade, o antístite caicoense não desejava contrariar os irmãos no episcopado. Procurou, então, Dom Moisés Sizenando Coelho, metropolita de João Pessoa. Assegurou-lhe que os presbíteros de sua diocese seguiriam a orientação do episcopado, apesar de considerá-la desprovida de fundamentação teológica e pastoral. Para evitar atritos do seu clero com pais e padrinhos, ele mesmo administraria o sacramento a quem o solicitasse e decidisse adotar tal prenome. Despediu-se do arcebispo paraibano com as palavras que caracterizariam sua vida episcopal: “Sou eu o responsável diante de Deus pelo meu rebanho.”
À época, o rito do batismo acontecia em latim (língua que a maioria dos fiéis não entendia). Alguns párocos, não querendo afrontar as diretrizes dos superiores nem se indispor com os paroquianos, batizavam as crianças com os nomes dos santos padroeiros das igrejas e capelas. No Seridó, onde exerci o ministério sacerdotal, lidei com vários pedidos de retificação dos assentamentos batismais. Infelizmente, o preconceito ia mais adiante. O “Patriarca do Juazeiro” era devoto de Nossa Senhora das Dores, por isso havia sacerdotes que não benziam quadros e imagens da Mater Dolorosa. Certa feita, um amigo mostrou-me um quadro que pertenceu a sua mãe. No verso estava escrito: “o vigário recusou-se a benzer a santa.”
Enquanto arcebispo de Fortaleza, Dom Delgado intensificou os esforços pela reabilitação do presbítero do Cariri. A esse respeito trocou ideias com pensadores e líderes cristãos, dentre eles, Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Parsifal Barroso, Luís Sucupira e Monsenhor Azarias Sobreira. Há cartas dele a Tristão sobre o assunto. Em 12/4/1970, assim lhe escreveu o arcebispo: “Estou empenhado em dar à passagem do centenário de ordenação sacerdotal do Padre Cícero Romão Batista (30.XI.1870) um brilho especial.” Prossegue o missivista: “Desde algum tempo, venho me interessando pela reabilitação dele. Escrevi vários artigos sobre o dito sacerdote. Agora para anunciar a celebração centenária, publiquei mais dois pequenos estudos.”
Irmã Annette Dumoulin, em “Padre Cícero, santo dos pobres, santo da Igreja” (publicado pelas Edições Paulinas), analisa os fatos ocorridos no sul do Ceará, apresentando uma síntese da reabilitação pela Santa Sé. O zelo e carinho do “Patriarca do Juazeiro” em acolher especialmente os mais simples e sofridos, ouvindo-os e abençoando-os, constitui, sem dúvida, um sinal de Deus e sua graça. Não adotou a teologia do medo. Ensinou com mansidão e ternura. Não julgava. Ouvia e perdoava, seguindo o Divino Mestre. Não se revoltou com as incompreensões e as punições, hoje reconhecidamente indevidas. Viveu o que escreve o apóstolo Tiago: “Feliz aquele que suporta a provação, receberá a coroa da vida, que Deus prometeu aos que O amam” (Tg 1, 12).
Um ilustre eclesiástico natalense afirmou: “Se nossos fiéis tivessem a metade da veneração ao “Padim Ciço”, voltada para os mártires de Cunhaú e Uruaçu, nossa espiritualidade seria mais marcante.” O RN mantinha laços de união com o “Patriarca do Juazeiro”. Além da expressiva devoção que os potiguares lhe dedicam, ele foi colega de estudos de vários dos nossos presbíteros, notadamente do “Apóstolo da caridade”, Padre João Maria Cavalcanti de Brito e companheiro de ordenação do caicoense Sebastião Constantino de Medeiros. Dom Delgado admirava o presbítero cearense, a sua fé, obediência e amor à Igreja. Chamava-o de “Mártir da disciplina.” Durante mais de quarenta anos, empenhou-se pela sua reabilitação. Inspirou-se em Atos dos Apóstolos: “Se esse projeto é de origem humana fracassará. Ao contrário, se vier de Deus não conseguireis destruí-lo” (At 5, 38).