Padre João Medeiros Filho
Em nossos templos é habitual a realização de diversos tipos de campanhas e coletas. Mas, pouco é dito sobre doação de órgãos. O assunto é esporadicamente abordado em sermões, nas escolas ou em família. Doar órgãos é uma forma de solidariedade e fraternidade cristã. Cristo entregou-se totalmente até a morte para dar a vida aos irmãos. Nisto reside a fundamentação teológica para as doações de órgãos. O Filho de Deus se imolou para que vivêssemos. “Vim para que todos tenham vida em plenitude” (Jo 10, 10). Os sacramentos, em especial a Eucaristia, são teologicamente transplantes místicos. Cristo padeceu, morreu, doou-se para fazer viver espiritualmente os seus irmãos. A iconografia católica representa Cristo como um pelicano, ave que na penúria de alimentos dá sua própria carne para saciar a fome de seus filhos. Santo Tomás de Aquino, em seu belíssimo hino litúrgico Adoro-Te, alude ao “Bondoso Pelicano”
Em novembro de 2008, o Papa Bento XVI dirigiu-se aos participantes de um congresso internacional sobre transplantes, promovido pela Pontifícia Academia para a Vida. Na ocasião, expressou: “a doação de órgãos é um ato de amor que testemunha genuinamente a caridade,olhando além da morte a fim de triunfar sempre a vida.” Recentemente, o Papa Francisco declarou: “De nossa própria morte e nossa doação pode surgir a saúde de doentes e sofredores, contribuindo para reforçar a cultura da ajuda, esperança e vida.”
Por duas vezes, fui submetido a um transplante de córnea. A espera foi longa. Para o primeiro procedimento cirúrgico, em Natal, aguardei mais de dezenove meses. Após um ano de tratamento, fui inscrito novamente para outro transplante. Aguardei vinte e oito meses (havendo ainda 122 pessoas antes de mim). E quem necessita de um coração, rim ou outro órgão para sobreviver? Aconselharam-me a transferir a inscrição para o Ceará. No início de fevereiro, recebi uma nova córnea. O segundo procedimento foi realizado pelo cirurgião Dr. José Newton da Escóssia no Instituto da Visão do Ceará (Fortaleza), dirigido pelo Dr. Aécio Dias. Ambos são mossoroenses. Agradeço diariamente a Deus por esta segunda chance. Peço aos amigos que no silêncio da prece me ajudem a agradecer aos doadores (na eternidade), médicos e auxiliares daquela clínica oftalmológica. Meu primeiro transplante foi realizado por Dr. Uchoandro Uchoa, médico dedicado e excelente profissional. Recebi também acompanhamento de Dra. Ana Cláudia Garcia, da Prontoclínica de Olhos (Tirol). A todos expresso a minha gratidão.
Tenta-se explicar a longa fila de transplante no RN em razão da pandemia. Argumento pouco convincente. Há de se convir que ela atingiu todo o país. Mesmo assim, o tempo de espera em Sorocaba, Fortaleza e outras cidades não durava tantos meses. Não sou credenciado para analisar profundamente os motivos de tal demora. Apresento apenas um testemunho sobre o sofrimento silencioso de muitos. Metodologias, políticas e recursos para a captação e doação de órgãos devem ser repensados, mormente em terras potiguares. A divulgação é insuficiente. Há campanhas justas e necessárias contra câncer de mama, próstata, diabetes, cardiopatias etc. A magnitude da doação de órgãos poderia ter a mesma relevância.
As lideranças políticas, socioeconômicas, acadêmicas e religiosas deveriam ter um maior engajamento neste aspecto. Muitos órgãos perdem-se por ausência de captação e coleta, que necessitam ser precedidas de conscientização dos familiares de doadores sobre a importância da doação. Os hospitais do interior do RN carecem de equipes e estrutura de captação, conservação e transporte. Segundo dados oficiais, em 31/01/23, havia no RN mais de oitocentas pessoas esperando um órgão. Enquanto isso, em outras unidades federadas as filas já estavam zeradas tecnicamente. Vive-se na sociedade da insensibilidade, do egoísmo e distanciamento. Poucos sentem motivação para servir. Este é um mandamento cristão. “Vim não para ser servido, mas para servir” (Mt 20, 26). As instituições religiosas poderiam realizar uma campanha da fraternidade ecumênica sobre doação e transplante, sensibilizando os fiéis. A sociedade muito agradeceria. Cheias de consolo, paz e apelo são as palavras do apóstolo Paulo: “Deus vivificará os que já partiram, chamando à existência os que não vivem mais” (Rm 4, 17).