DEMOCRACIA EM PAUTA: ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, “KAKAY”, FALA SOBRE OS ATOS GOLPISTAS DE 8 DE JANEIRO

As eleições presidenciais de 2022 evidenciaram uma polarização política e ideológica que ganhou força nos últimos 4 anos durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. O discurso maniqueísta do ” nós contra eles”   proferido em diversas ocasiões pelo ex-mandatário do executivo brasileiro criou na mente de seus seguidores uma realidade paralela.

Diante da derrota, o sentimento antidemocrático alimentado por Bolsonaro chegou ao seu ápice no dia 08 de janeiro de 2023, quando seus seguidores instigados por ideias golpistas depredaram as sedes dos poderes executivo,legislativo e judiciário. Diante do caos dos atentados fascistas, o presidente Lula Inácio Lula da Silva brilhou mais alto em sua rápida contraofensiva em defesa da democracia. Essa é a opinião do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay.

Em conversa com o portal ATLANTICO, o jurista compartilhou suas opiniões sobre os atos golpistas e o que se pode esperar do Brasil com o novo governo Lula e seus desafios.

O que podem os atos terroristas de 08 de janeiro e o resultado acirrado das eleições de 2022  nos ensinar sobre a atual situação da democracia brasileira ? 

Os atos ocorridos no dia 8 de janeiro foram muito significativos. Existe uma tradição em países civilizados de que nos 100 primeiros dias de governo há uma certa tranquilidade vindo da própria oposição e da sociedade como um todo. A imprensa, por sua vez, entende que há um momento de “respiro” e de aguardar os primeiros movimentos da nova administração para somente aí começar seu trabalho de olhar crítico. O governo Lula viveu em 8 dias o que muitas outras gestões não suportariam mesmo depois de consolidadas. Destaco aqui duas situações marcantes: A primeira é quando no ato de sua posse o presidente Lula convida cidadãos brasileiros que retratam as parcelas mais excluídas da sociedade para subir a rampa ao lado dele. É como se a partir dali o Brasil tivesse tomado posse de si próprio. E depois, quando no dia 8 houve aquela tentativa de golpe, de ruptura com o processo institucional e democrático, o Lula reagiu como um grande estadista. Ele regressou a Brasília por estar em um compromisso fora da capital, se dirigiu até a sede do Supremo Tribunal Federal que foi depredado de uma forma covarde  e alí, diante da ministra Rosa Weber e demais ministros, realizou uma homenagem à democracia e ao poder judiciário. A  tentativa golpista foi uma ideia que Bolsonaro alimentou durante toda sua gestão ao sugerir ataques ao STF e ao poder judiciário. A reunião do dia 9 de janeiro foi extremamente importante por estarem presentes os representantes dos 27 estados e do Distrito Federal, os ministros do STF, ministros de Estado, presidentes do Congresso  Nacional e do Senado Federal e o presidente da Câmara dos Deputados. Foi um momento essencial pelo fato de todos os presentes no encontro se mostrarem contrários aos atos golpistas e, ao fim da reunião,caminharem juntos do Palácio da Alvorada em direção ao Supremo Tribunal Federal. Aquilo foi, para mim, a concretização de que a democracia brasileira resistiu e as instituições estão sólidas para fazer frente ao fascimo que ainda está latente na sociedade.

“O governo Lula viveu em 8 dias o que muitas outras gestões não suportariam mesmo depois de consolidadas

Paralelamente aos atos terroristas, testemunhamos também os acampamentos Brasil afora em frente aos quartéis. O senhor acredita que esteja havendo algum tipo de histeria coletiva em nossa sociedade ? 

Eu não diria que houve uma histeria coletiva. O Bolsonaro se elegeu em cima do uso de um discurso fascista, inserido em um período onde houve o fortalecimento da ultra-direita em nível global. É impressionante o que esse governo fascista conseguiu desestruturar em 4 anos de administração. Ele fez isso com a cultura, a arte, as ciências, a saúde, a educação e tantas outras áreas mais. Então, sem sombra de dúvida, esse apelo populista fascista cria raízes em todas as pessoas que não conseguem fazer uma análise conjuntural do momento grave pelo qual estávamos passando. Claro que a sociedade brasileira não chega a ter nem 50% de fascistas reais porque isso seria um quadro irreversível , mas há uma grande parte da população que participa de algo parecido com uma seita. O bolsonarismo se tornou uma espécie de seita. Por outro lado, há esperança. O fato de que o  Datafolha mostrou em pesquisa que 93% dos brasileiros se posicionam contrários aos atos golpistas e a posse de Lula pregando a unidade popular dão esperança de que o bolsonarismo irá se dissipar.

O senhor defende a ideia de que uma pacificação no país exige primeiro a punição de todos os envolvidos nos ataques golpistas, incluindo prisões e outras sanções cabíveis ?

Eu tenho escrito muito sobre isso. Na minha opinião, o Brasil pós ditadura errou muito na redemocratização quando concedeu  anistia aos torturadores e terroristas sem levá-los a uma responsabilização. Ali, foi gestado o “verme” bolsonarista. Inclusive, o Bolsonaro foi expulso do exército por praticar atos terroristas . Ele é um homem que passou sua vida pregando a tortura, a morte, a violência e o ódio. Eu penso que todas essas ações dele ,enquanto presidente por 4 anos  e instigando a ruptura nacional, falando em invadir o STF e fechar o Congresso Nacional, precisam ser enfrentadas. A sociedade somente terá paz caso todos aqueles que participaram dos atos golpistas de 8 de janeiro sejam punidos com o rigor da lei. É claro que reação imediata foi impressionante: 1500 presos dos quais pelo menos 922 tiveram prisão preventiva decretada posteriormente. Mas até o momento foram presos na condição de terroristas, e vale lembrar que o adjetivo “terrorista” é um termo técnico, embora não possamos usar a Lei do Terrorismo de 2016 pelo fato do direito penal ser muito restrito. Então eu entendo como necessária a investigação dos fatos como já está sendo realizada. Recentemente foi feita uma operação de lesa-pátria  cujo resultado foram 4 militares processados com busca e apreensão e a prisão de um ex-ministro. Entretanto, é lógico que precisamos chegar aos financiadores. As estruturas dos acampamentos eram caríssimas, um fato constatado pelo relatório do próprio  interventor. Então descobrir quem são os financiadores é fundamental. E depois, mas não menos importante, os militares. Nós temos militares de alta patente que fomentaram o golpe. Isso é claro para mim. Tão importante quanto achar os financiadores e os possíveis militares envolvidos, é chegar naquele que criou toda a base de ideias que culminaram nos atos golpistas. Essa pessoa é o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A sociedade somente terá paz caso todos aqueles que participaram dos atos golpistas de 8 de janeiro sejam punidos com o rigor da lei

Que desafios o presidente Lula pode enfrentar diante de uma oposição que é em parte herdeira de ideias conservadoras, antidemocráticas de Jair Bolsonaro?

Eu acredito que o desafio do presidente Lula é enorme, mas ele possui a habilidade necessária para governar. Tendo uma “herança maldita” sem tirar o peso da palavra é o que ele recebeu. Foi feita uma desestruturação muito grande em praticamente todas as áreas e foi eleito um congresso mais conservador. Tanto é que o presidente precisou criar uma frente ampla para governar. São 37 ministérios comandados por partidos muito distintos. Inclusive, quando o recebi em minha casa no dia 12 de dezembro, para fazer um brinde em homenagem a futura diplomação, o presidente fez um discurso no qual ele afirma que nunca pensou que seria candidato à presidência mais uma vez e que assim o fez por entender que ele seria a única pessoa capaz de derrotar nas urnas o projeto fascista de Bolsonaro. O que se revelou verdade. Mas acredito na experiência dele para tomar os rumos mais sensatos. Acredito que o momento agora é de união para isolar a extrema direita e reconstruir o país.

Após um longo período em que os poderes legislativo e judiciário foram sistematicamente atacados, o senhor acha que com a nova administração esses ataques tendem ao arrefecimento ou eles continuarão enquanto existir um pensamento coletivo alinhado à extrema-direita ?

Eu acho, com certeza absoluta que a tendência é arrefecer. O sistema presidencialista no Brasil é muito forte. Acho, inclusive, muito simbólico. Porque se você tem um presidente que, diariamente, insulta os 3 poderes, fala em fechar o congresso nacional,   o Supremo Tribunal Federal e ataca pessoalmente de forma covarde os ministros do STF, no mínimo cria uma instabilidade inacreditável.  O que na verdade aconteceu foi que Bolsonaro, usando de força do poder executivo, cooptou parte do poder legislativo através de manobras como o orçamento secreto. Então o Congresso Nacional, ou a maioria de sua composição,  faltou com o Brasil de certa forma. Em momentos mais dramáticos boa parte do Congresso não cumpriu com o papel institucional que lhe cabe. Então nós tivemos um Supremo Tribunal Federal e um poder judiciário como todo, fazendo uma resistência democrática. Claro que a história fará justiça, mas devemos ter a absoluta certeza de que só foi possível manter um grau de estabilidade e o Estado Democrático de Direito por causa da forma com que os ministros do Supremo Tribunal Eleitoral agiram. A tendência natural é que haja um arrefecimento porque umas das primeiras providências do Lula ainda antes de tomar posse foi visitar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Essa é a harmonia que deve existir. Agora, há um poder executivo sério e democrático, que respeita os demais poderes e é chegada a hora do poder judiciário voltar a ter uma participação menos ativa. O judiciário é um poder “inerte”. Naquele momento em que ele precisou agir para manter as instituições democráticas, ele agiu. Agora eu espero que cada poder volte a exercer suas funções dentro de seus respectivos limites, respeitando os demais.

” Devemos ter a absoluta certeza de que só foi possível manter um grau de estabilidade e o Estado Democrático de Direito por causa da forma com que os ministros do Supremo Tribunal Eleitoral agiram “

É de conhecimento geral os prejuízos causados à sociedade e ao regime democrático pela propagação defake news. Para o senhor, é possível que haja, tal como o Marco Civil da Internet, uma jurisdição similar para os aplicativos de mensagens e similares de forma a combater as notícias falsas ?

Essa questão das fake news é hoje um desafio internacional. Não é uma tarefa fácil fazer frente às notícias falsas, mas com certeza é um esforço coletivo e global. Há um livro chamado ” Os Engenheiros do Caos” que tenta explicar como líderes da estirpe de Bolsonaro e Trump usam das notícias falsas para conseguir chegar ao poder. O livro explica como a extrema direita usa das fake news para conseguir o que querem. O fato de ser difícil de combater essa realidade é que estamos lidando com grupos de pessoas sem qualquer limite ético. Apenas visam o poder pelo poder e espalham absurdos como a mensagem da distribuição do “kit gay”. Uma pesquisa feita na época em que o Haddad foi candidato à presidência mostrou que 83% das pessoas entrevistadas acreditavam na história do kit gay. É um absurdo.

Mudando um pouco a direção de nossa conversa, me refiro agora à pauta ambiental e dos povos originários. Do ponto de vista criminal, quem deve responder pelo estado de calamidade do povo yanomami e quais os crimes que podem ser identificados até agora ?

Eu talvez tenha sido um dos primeiros a enquadrar Bolsonaro como um genocida em sua linha de expressão exata do termo e que ele pudesse ser levado aos tribunais internacionais. Em relação povo Yanomami,  é um caso clássico de genocídio. Na época do enfrentamento à pandemia, houveram muitas discussões técnicas das quais participei  onde se chegava a um consenso de que Bolsonaro podia ser culpado omissão e pelas mortes dos 200 mil brasileiros mortos até aquele momento, mas que ele ainda não poderia ser enquadrado como genocida. Outro ponto a se levar em consideração é que em 1998, enquanto deputado, Bolsonaro sugeriu um projeto de lei que visava destruir a reserva dos Yanomami. Uma verdadeira covardia. Diversas vezes antes e durante a campanha presidencial de 2018 , Bolsonaro afirmou que caso chegasse à presidência, não daria um palmo de terra para nenhum indígena e que, se necessário fosse, as minorias seriam exterminadas para que a maioria pudesse governar. Declarações e ações muito cruéis. Além disso, existem outros elementos que precisam ser apurados. O próprio ex-ministro da justiça Sérgio Moro precisa ser examinado nesse processo que apura o genocídio. Porque ele, quando da qualidade de ministro da justiça, desestruturou a FUNAI com o objetivo cristalino de facilitar os garimpos, grileiros e pescadores ilegais da Amazônia. Eles acabaram com todo o trabalho que a FUNAI desenvolveu. Logo, ele deverá também ser investigado por um processo de genocídio. Há, inclusive fortes indícios de que os ambientalistas Phillip e Bruno Pereira foram mortos pelo líder da pescaria ilegal daquela região. Foi um genocídio para ocupar a terra. A ex-ministra e atual senadora Damares Alves também deve ser investigada nesta matéria. Enquanto ministra, ela deixou de responder 21 ofícios que poderiam  ter salvo parte do povo Yanomami.

Gostaria de sua análise sobre a importância geopolítico estratégica do Brasil. Como o presidente Lula pode recuperar o prestígio e protagonismo brasileiro no cenário internacional,notadamente após o estrago causado pela política isolacionista adotada por Jair Bolsonaro?

Em novembro de 2022 eu estava em Lisboa dando uma palestra quando o presidente Lula me convidou para uma cerimônia na Universidade de Sorbonne, Paris. Lula, naquele momento, representava uma candidatura comum , mas é preciso levar em conta toda a trajetória dele de ter sido preso por 580 dias e ter uma boa parte da imprensa atacando ele sem descanso. O que me deixou impressionado e até emocionado foi a forma como ele foi recebido por professores, acadêmicos, alunos e autoridades francesas. Ou seja, a simples presença dele enquanto candidato à presidência já foi algo marcante e a importância que a imprensa francesa deu a ele naquela época também. Lula chegou inclusive a ser recebido pelo presidente Emmanuel Macron no Palácio Élysée com honrarias de presidente de Estado. Bolsonaro ainda era presidente do Brasil, mas não tinha nenhuma relação diplomática com a França. O ex-presidente cometeu uma terrível gafe ao proferir palavras machistas e misóginas para com a primeira-dama francesa. A situação envergonhou a nação brasileira. Lula, por outro lado, trouxe um olhar mais positivo em relação  ao Brasil.  E quando Lula venceu as eleições, a forma pela qual o Brasil passou a ser tratado mudou completamente. Até dois dias depois da vitória, a Noruega, por exemplo, liberou um fundo destinado à Amazônia que até então estava bloqueado por falta de confiança em Bolsonaro. Em seus primeiros 30 dias de governo, Lula já tinha visitado a Argentina e os Estados Unidos, conversando com o presidente Joe Biden. O presidente Lula representa a esperança de resgatar o prestígio que o Brasil já possuiu perante a comunidade internacional.

“O presidente Lula representa a esperança de resgatar o prestígio que o Brasil já possuiu perante a comunidade internacional ”

O Fórum Brasil África 2023 reunirá  líderes africanos e de outras regiões para discutir ações de reaproximação com o Brasil. Que mensagem esperar do presidente Lula para oportunizar iniciativas de cooperação e parcerias com o continente africano ?

Os primeiros governos do Lula priorizaram muito o continente africano. Foram abertas muitas embaixadas na África, as quais o presidente viajava para visitar toda vez que possível. Lula estabeleceu relações bilaterais com inúmeros países africanos em diversas frentes.  Depois da posse, o presidente foi deixando claro as direções que o governo iria tomar e enfatizou uma reaproximação vigorosa com o continente africano. Esse aceno e vontade de voltar a ter laços fortes com  a África são importantes porque Bolsonaro tinha uma certa repulsa pelo continente, o que é uma realidade fácil de constatar. Agora com Lula retornando, tendo a experiência de duas gestões anteriores que geraram excelentes resultados com a África, não há dúvidas de que as relações tendem a melhorar. Acredito que o Fórum Brasil África 2023 trará debates muito ricos e relevantes para as rodas de conversas.

Fonte: atlântico