A comida ficou “salgada” em 2020. Em um ano marcado pela corrida aos supermercados no início da pandemia de coronavírus, pelo aumento de consumo em função do auxílio emergencial e ainda por exportações aquecidas, o prato do brasileiro ficou mais caro.
O custo dos alimentos subiu 12,14%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de janeiro a novembro – último dado disponível em 2020.
Como comparação, todo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerado a inflação oficial do país, subiu 3,13% no mesmo período.
O IPCA calcula, além da alimentação, outros 8 grupos de produtos e serviços (habitação; artigos de residência; vestuário; transportes; saúde e cuidados pessoais; despesas pessoais; educação e comunicação).
Para especialistas ouvidos pelo G1, além de um movimento mundial em que as pessoas buscaram mais alimentos para consumir em casa durante a pandemia, o dólar, que valorizou mais de 25% no ano, teve papel importante nos valores praticados no país.
Além disso, algumas culturas ligadas ao grupo de hortaliças tiveram redução de área de plantada neste ano, devido a problemas climáticos e perdas dos produtores no início da pandemia, o que acabou elevando os preços dos legumes e verduras.
A dupla inseparável e tradicional do prato feito encareceu bastante neste ano. O arroz virou meme e chegou a ser comparado a joias, com alta de 69,5% de janeiro a novembro, de acordo com o IBGE.
Ana Maria Braga apareceu na TV com um colar de arroz, em setembro: ‘Arrumei até um cofre para guardar a minha joia’ — Foto: Globo
O saco de 5kg, que custava cerca de R$ 15 em São Paulo, no 1º semestre, termina o ano custando cerca de R$ 30 em alguns comércios.
Já o feijão carioca, o mais consumido, valorizou 12,9%, e o tipo preto, 40,7% no mesmo período.
POR QUE SUBIU?
O ano já não tinha começado favorável para o arroz, com os estoques da entressafra em níveis baix, em relação a outros anos, explica o analista Gabriel Viana, da consultoria Safras&Mercado.
“Iniciamos 2020 com preços acima da média de mercado dos últimos 5 anos. Logo na sequência, tivemos o coronavírus e ninguém sabia dos impactos da doença ainda. O consumidor foi aos supermercados e fez estoque”, relembra.
A situação deixou um sinal de alerta para o 2º semestre, período de entressafra. Foi justamente nessa época que um outro movimento fora do comum surgiu: as exportações.
Se houve corrida aos supermercados no Brasil, não foi diferente em outros países do mundo. Ao mesmo tempo, grandes vendedores mundiais, como Tailândia e Índia, limitaram as vendas do alimento para o exterior.
Com isso, o mercado mundial se voltou para um fornecedor confiável: o Brasil. De janeiro a novembro, o país exportou 54,2% a mais em relação a 2019 em volume, com receita de US$ 488,4 milhões no período (+58,9%).
Só que aí surgiu um problema. “O Brasil produz mais ou menos o que consome (10 milhões de toneladas) de arroz. É uma balança comercial quase zero”, explica Gabriel Viana.
Juntando isso com a grande procura e o dólar nas alturas, que fez aumentar o valor pago pelas indústrias brasileiras na disputa com exterior, o resultado é o atual. “Foi uma tempestade perfeita”, resume o consultor.
No auge dos preços, em setembro, houve um cenário em que havia dificuldade de encontrar arroz para comprar no campo.
“Existiu um movimento especulativo, é comum no mercado. Muitos produtores acabaram negociando toda a safra antes do plantio. Quem ainda tinha arroz disponível, foi vendo o preço subir e foi buscar um valor de comercialização ideal”, diz Viana.
No caso do feijão, além da procura aquecida no início da pandemia, outros dois problemas afetaram a atividade: quebra de safra (quando a lavoura produz menos do que o esperado) no Sul do país no começo do ano e a opção dos agricultores por produzir grãos mais rentáveis, como a soja.
A área plantada da primeira safra do alimento, por exemplo, que é colhida de janeiro a abril, diminuiu cerca de 40% em 5 anos, segundo o Instituto Brasileiro do Feijão (Ibrafe).
Já o feijão preto, que tem o segundo maior consumo, valorizou ainda mais que o carioca. Além dos motivos já listados, o Brasil teve problema para importar o alimento da Argentina, que é o principal fornecedor dessa variedade ao país.
“Por imaturidade da cadeia produtiva, importamos feijão preto da Argentina e lá houve uma desorganização do setor, o que dificultou as compras, já que os vendedores exigiam pagamento em dólar”, explica Marcelo Lüders, presidente do Ibrafe.
COMO FICA:
Para 2021, o analista de mercado diz que a indústria está mais preparada para a situação e, ao mesmo tempo, os consumidores viram que não há necessidade de estocar alimentos.
Seguindo este cenário, a tendência é que os preços do arroz caiam para níveis parecidos com os do 1º semestre deste ano. Menos do que isso será difícil.
A previsão da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é de que a produção brasileira seja 2,1% a menor do que na última safra. Mesmo assim, no quadro de oferta e demanda, a quantidade ainda daria conta do consumo no país.
Porém, qualquer mudança na produção ou no aumento das exportações pode deixar o cenário apertado. Existem dois sinais de alerta que podem mudar tudo: uma segunda onda de Covid-19 ou uma quebra de safra.
Diferentemente do arroz, o cenário do feijão para 2021 preocupa. O IBGE diz que, se for mantida a perspectiva de produção atual, será necessário importar ainda mais.
Lüders acredita que é necessário um fomento maior à produção de feijão e incentivo ao consumo, que vem caindo ano após ano. “É provável que tenha aumento de área de feijão preto no Brasil porque os elos vão percebendo que existe mercado.”
Feijão fradinho pode ser uma alternativa no consumo — Foto: Reprodução/EPTV
O especialista enxerga potencial na China, que consome bastante feijão e que diminuiu sua produção interna para dar prioridade a outras culturas.
Outro caminho seria habituar o brasileiro a outras variedades como o vermelho e o fradinho, para que, em caso de necessidade, seja possível comprar do exterior.
A ‘mistura’
Desde o ano passado, as carnes têm deixado o churrasco do brasileiro mais caro. Isso se reflete também no consumo do dia a dia.
No caso da carne bovina, mais especificamente o contrafilé, a alta foi de 7,8% de janeiro a novembro, de acordo com o IBGE. Já a proteína de frango subiu 11,4% e a suína, 30%.
POR QUE SUBIU?
A carne bovina teve um maior incremento de exportações e preços. “Era esperado que, em 2020, teria um mercado comprador mais firme. Estamos em um ciclo pecuário de alta, ou seja, os animais para reposição estão caros, e isso encarece o preço para os frigoríficos”, explica Alcides Torres, diretor da Scot Consultoria, especializada em pecuária.
Ele explica que nem mesmo a pandemia derrubou a cotação do animal no campo, que, pelo contrário subiu mais de 40% na comparação com novembro do ano passado.
No acumulado do ano, as vendas de carne bovina para o exterior atingiram 1,85 milhão de toneladas, 8% a mais do que no mesmo período de 2019.
O setor já faturou US$ 7,7 bilhões em 2020, com a China sendo responsável por 57,9% das compras.
Com o alta nos preços, a previsão é de que o brasileiros comam quase 2 kg de carne bovina a menos neste ano (27,9 kg por pessoa).
Isso desencadeou uma “troca de proteínas”, ou seja, consumidores migrando do contrafilé para o peito de frango, para a bisteca ou para os ovos.
O “apetite” chinês também se refletiu na carne de porco. O país asiático enfrenta dificuldades no abastecimento desde o final de 2018, devido a um surto de peste suína africana, uma doença sem cura que dizimou rebanhos do país.
Maior produtora e consumidora de carne de porco do mundo, a China viu no Brasil uma grande oportunidade.
“De janeiro a novembro, tivemos 40% de aumento de importação da China e, consequentemente, teve aumento nos preços pagos internamente”, explica Marcelo Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Suínos (ABCS).
Mesmo assim, com o encarecimento da carne bovina, o setor ficou mais competitivo e conseguiu ganhar mais espaço no mercado interno. A expectativa da associação é que o consumo anual por pessoa da proteína cresça em 1 kg em 2020, chegando a 17,2 kg.
O problema é que, mesmo recebendo mais pelo animal, os criadores viram os custos da atividade subirem muito neste ano por conta de outros dois produtos do agronegócio: o milho e a soja, que são utilizados como ração.
O custo da ração
Há quem diga no campo que o frango é o “milho que anda”. O motivo é que a ração é cerca de 80% do custo total da atividade, e o grão, junto com a soja, é o principal alimento desses animais.
Neste ano, ambos atingiram preços recordes. Uma saca de soja de 60 kg, que custava cerca de R$ 84 no Paraná em novembro de 2019, passou a custar R$ 164 no mesmo mês deste ano, alta de 95%.
Mas, no campo, a valorização da carne de frango não acompanhou os custos. O quilo do animal vivo comercializado na Grande São Paulo subiu 11%, de janeiro a novembro deste ano.
“Ainda que os preços que estejam elevados, não significa que foi favorável para a avicultura, já que os criadores estão com margens bem apertadas”, resume a analista do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da USP (Cepea) Juliana Ferraz.
No começo da pandemia no Brasil, em abril, a carne de frango chegou a sofrer forte desvalorização. Mas as indústrias mudaram de estratégia e diminuíram a produção do alimento.
Com esse movimento, a partir de junho houve uma recuperação e, ao mesmo tempo, o mercado começou a sentir os efeitos do auxílio emergencial do governo federal, que aumentou o poder de compra do cidadão.
O incremento de renda foi mais importante para atividade do que as exportações. Tanto que a expectativa é de que as vendas para o exterior fiquem estáveis.
Para este ano, a previsão é de que o consumo per capta de carne de frango seja de 45 kg, 5% mais do que em 2019. A carne de frango continua sendo, de longe, a proteína mais consumida no país.
Não existe o frango sem o ovo, e vice-versa. E essa proteína, considerada a mais barata de todas, também não poderia deixar de ter ficado mais cara em 2020.
Acompanhando o aumento da procura, o consumo de ovos no país deve crescer 8,7% neste ano, chegando a 250 unidades por cidadão.
O ano do ovo começou em baixa, seguindo a ressaca das outras proteínas. Mas, no fim de fevereiro, a partir da Quaresma – período de 40 dias antes da Páscoa em que católicos não consomem carne – o consumo aumentou, como sempre acontece. A diferença é que subiu e não parou.
Na sequência, com a entrada do auxílio emergencial, o consumo caiu, com muita gente voltando para o frango ou para outras carnes. Somada a isso, a queda na procura de restaurantes, hotéis e escolas fez os preços baixarem.
Mas, em outubro, a alta nos custos de produção voltou a pesar. Junto a isso, o calor intenso na principal região produtora do país, Bastos (SP), matou milhares de animais, fazendo com que o preço voltasse subir.
De janeiro a novembro, o ovo no campo ficou 22% mais caro, de acordo com o Cepea, passando de R$ 77,80 a caixa com 30 dúzias em São Paulo para R$ 94,67.
COMO FICA
Especialistas dizem que o cenário para as carnes ainda está indefinido porque esses alimentos variam conforme o mercado externo. Ou seja, tudo vai depender de outros países, em especial a China.
Para carne bovina, a tendência é que as exportações continuem aquecidas, avalia Alcides Torres, da Scot Consultoria. No Brasil, a previsão para 2021 é que os valores sejam parecidos com os do começo de 2020.
“O preço do boi (no campo) chegou ao limite. Isso deve fazer com que o setor encontre um novo patamar de equilíbrio (de valores)”, diz o consultor.
Os criadores de suínos esperam que 2021 seja de exportações em alta, porém o mercado interno preocupa.
“Sem o auxílio do governo, entramos num período de recessão. É uma situação que tem nos preocupado porque o preço do grão (para ração) não vai baixar. Não sabemos qual será a capacidade de compra do brasileiro e qualquer desequilíbrio no consumo tem uma sobreoferta”, diz Marcelo Lopes, da ABCS.
Para frango e ovo, o cenário é de baixa. O motivo é que as vendas dos dois alimentos agora começam a estagnar e, com a queda natural de início de ano, os preços devem ficar próximos com os vistos no início de 2020.
“O mais provável é que esse movimento de queda se estabilize em janeiro, a menos que exista um movimento muito atípico ou que as exportações cresçam muito”, afirma Juliana Ferraz, do Cepea.
A salada
Salada mais cara 2020 — Foto: Érico Andrade/G1
O tomate, a alface e a cebola, que chegaram a ter deflação em 2019, registraram altas na casa dos dois dígitos neste ano.
Desse grupo, o preço que mais subiu foi o do tomate que é, inclusive, o segundo alimento com maior inflação em 2020, depois do óleo de soja.
De janeiro a novembro, o valor do legume disparou 76,51% ao consumidor. No mesmo período do ano passado, chegou a ter deflação de 42,85%
As altas começaram em agosto, quando o mercado sentiu os efeitos da redução da área plantada do tomate, que teve início em março, após a implementação das medidas de isolamento social.
“Nos primeiros 15 dias da quarentena, houve um descarte do tomate que já estava colhido e que não tinha mercado para escoar. A demanda caiu nesse período e os produtores sentiram muito. Então, logo no início da quarentena, eles começaram a desacelerar os plantios”, diz João Paulo Bernardes Deleo, do Cepea. “Se não fosse isso, teria sido um desastre de prejuízo ao produtor.”
Deleo afirma ainda que o tomate é, normalmente, uma cultura mais cara. “A produção de 1 hectare de tomate, por exemplo, custa R$ 100 mil reais. De soja são R$ 3 mil”, diz.
Já a alface foi a hortaliça mais impactada no início da pandemia, de acordo com a pesquisadora Marina Marangon, que também é do Cepea. No acumulado do ano até novembro, o preço subiu 23,38%. No mesmo período de 2019, caiu 2,51%.
Assim como aconteceu com o tomate, logo no começo do isolamento social, muitas alfaces que estavam colhidas foram descartadas, e plantações foram destruídas ou abandonadas por causa da queda da demanda.
“Alface é uma cultura bastante perecível, que depende de intermediação na cadeia. E, por conta do preço baixo ao produtor, muitos deixaram de plantar e foram reduzindo a área”, explica Marina. Na época, o Globo Rural registrou a situação de agricultores em SP (veja abaixo).
Já o preço da cebola subiu 15,12% até novembro de 2020, enquanto, em igual período de 2019, teve queda de 0,5%. A alta também foi puxada por uma redução da área plantada.
Isso ocorreu por dois motivos. Um deles foi o clima: com o excesso de chuvas no início do ano, os produtores plantaram menos do que o esperado para o período.
O segundo motivo foi que, com a incerteza gerada pela pandemia, agricultores de São Paulo, Minas Gerais e Goiás decidiram diminuir também a área de plantio a partir de maio.
Além disso, entre março e maio, as cebolas vendidas no Brasil são, geralmente, importadas da Argentina, país que restringiu as vendas no período por causa da Covid-19. Com menos cebolas circulando no mercado, os preços dispararam.
COMO FICA
Os preços da salada devem se manter altos no começo do ano. No caso da alface, os custos da safra de verão são, normalmente, mais altos, pois o produtor tem mais gastos com a cultura.
Mas os preços da cebola não devem alcançar os picos registrados entre março e junho. “A estiagem na região Sul do país, que começa a abastecer o mercado a partir deste mês, diminuiu produtividade da lavoura. Então teremos um volume controlado de cebolas”, afirma Marina.