São vários “Chicos”. Tem o que canta o amor, que permitiu me apropriar de muitas letras românticas para parecer inteligente e charmoso com as mulheres. Tem o que fala da mulher, com uma propriedade que só a alma feminina consegue, e que também me auxiliava nas cartas, nas serenatas e nas noites no Beirute. Tem o político, que ajudou algumas gerações a se sentirem representadas por tanta capacidade de resistência. Com, muitas vezes, uma ironia que não era captada pelos monstros da ditadura e da extrema-direita. A ironia é uma arma fortíssima contra a ignorância. E Chico é um mestre no jogo com as palavras.
Tem o Chico gozador, que sabe rir de si próprio –como quando descobriu nas redes sociais que não era unanimidade nacional. Tem o Chico que fala de detalhes da vida, embaralhando tudo e nos fazendo sonhar. O Chico do cotidiano, que nos dá a sensação de que ele é humano como qualquer um de nós. O homem do seu tempo que não tem medo de se posicionar politicamente em nenhum momento. Que põe a cara a tapa e chama para briga. O Chico apaixonado pelo Fluminense, que se permite vestir a camisa do time e ir ao Maracanã, mostrando que é quase gente como a gente. Como agradeço por ele não ser flamenguista. Se fosse, eu teria um motivo de ter alguma simpatia pelo Flamengo.
O Chico que joga bola e não sabe perder. Montou um time para poder ganhar, o Politheama, com camisa, campo e tudo. Até o juiz. Joguei contra ele; não pode nem encostar que é falta. E ninguém reclama. Como nos lembra a letra dele, na música “O Futebol”:
“Para estufar esse filó
“Como eu sonhei
“Só
“Se eu fosse o Rei
“Para tirar efeito igual ao jogador
“Qual
“Compositor”.
Todos nós, fãs apaixonados, temos alguma história com ele. Claro que ele não sabe de nenhuma, mas são lembranças importantes para cada um de nós. Recordo-me de um show na minha cidade, Patos de Minas, em que nós, para homenageá-lo, jogávamos milho no palco. A apresentação era na Festa do Milho. Anos depois, ouvi ele dizer que essa foi uma das cenas mais bizarras da sua carreira: os grãos de milho entrando no violão e atravessando o som. Fiquei calado, na minha.
Outra vez, eu havia sido nomeado pelo Conselho Federal da OAB para enfrentar os fazendeiros e grileiros de Rio Maria, no Pará. À época, com algum perigo. O padre da paróquia promoveu um grande show no Circo Voador, no Rio de Janeiro, para homenagear o Márcio Thomaz Bastos e a mim, que trabalhava na linha de frente, entre outros advogados. Todos os grandes da música brasileira estavam lá. Quando soube que o Chico iria cantar, eu, claro, fui. Para minha surpresa, no camarim, ele me agradeceu e disse que a gente fazia um trabalho relevante, por isso ele estava cantando para ajudar a “pagar os advogados”.
O padre havia mentido dizendo que a gente tinha cobrado honorários. Até nossas passagens a gente havia pago. Fiquei na dúvida entre ficar calado e apoiar a igreja, ou desmascará-lo em nome do Deus do meu culto que estava ali, ao vivo. Claro, desmascarei o padre e ainda subi no palco com o Chico. Perdi um amigo, mas ele deveria ter me perdoado. Afinal, eu só disse a verdade. Tem umas histórias engraçadas. Eu gosto de cantar imitando a voz dele. Para mim, a mais bonita e característica do meio artístico. Já cantei, atrevidamente, “Todo Sentimento“ com o maestro João Carlos Martins ao piano.
Certa vez, estava em um trem na Itália, numa cabine aberta, cantando na janela, imprudentemente, aberta. Cantando Chico, claro. Entra um norte-americano, com roupa de texano, e pergunta se eu era o Chico. Era uma época sem Google, internet, inteligência artificial ou telefone móvel. O cara achou que eu fosse o Chico! Ele disse que tinha todos os discos e que era apaixonado. Achei que seria uma mentira boa, do bem. Disse que sim. A alegria dele foi comovente. Imagino ele em casa, no Texas, depois de revelar as fotos e notar que meus olhos não são cor de ardósia.
Poderia contar um monte enorme de histórias, até porque serão tantos artigos em sua homenagem que será impossível ler todos. Mas termino com uma que demonstra o carinho que nós todos temos com o Chico. Quando me separei da mãe dos meus primeiros filhos, ainda hoje minha grande amiga, todo o meu patrimônio era o equivalente a US$ 10.000. Ao sair de casa, um divórcio amigável, queria levar comigo apenas uma coisa: uma foto linda do Chico com seu pai. Como queria aquela foto. Mas a minha então mulher gostava tanto dela que, se eu insistisse, poderia surgir um desentendimento. Fiquei sem a foto e mantive a boa relação. Essa é a força que o Chico exerce em nós.
Agora, aos 80 anos, ele ainda se reinventa compondo, escrevendo e participando da vida política. Quando foi receber o prêmio Camões, em 25 de abril do ano passado, em Lisboa, foi uma festa da democracia. Ele se posicionou ao não aceitar receber o prêmio à época de um governo fascista e lavou nossa alma ao recebê-lo com a presença de Lula. Eu estava lá, feliz da vida. Hoje, aos 80, tem o Chico da Carol. Ele merece por tudo que fez por nós. Obrigado, Chico!
Hoje, aos 80, tem o Chico da Carol.
Ele merece por tudo que fez por nós.
Obrigado, Chico! Da letra que mais amo,
“Todo Sentimento”:
“Te encontro, com certeza
“Talvez num tempo da delicadeza “Onde não diremos nada