Considerações sobre laudêmios e foros

Por Padre João Medeiros Filho

A presente abordagem não se reveste da pretensão de cunho jurídico e técnico. Trata-se de uma experiência sobre o assunto, quando éramos pároco e chanceler do bispado, em Caicó (RN). Laudêmio e foro datam dos tempos coloniais, remontando às capitanias hereditárias, quando a Coroa Portuguesa outorgava aos donatários direitos sobre determinadas porções de seu domínio no Brasil. Consistia num repasse de glebas a pessoas físicas e entidades. Esse costume foi sendo seguido, disseminado e adaptado. Assim, no passado, em decorrência de promessas aos santos, tornou-se usual entre os católicos, como símbolo de gratidão, doar terras à Igreja (nela incluindo-se irmandades, congregações e associações religiosas, padroeiros, paróquias etc.). Era muito comum casas residenciais e comerciais edificadas sobre os terrenos “do santo ou da santa”. Muitas terras doadas aos santos padroeiros, antes da expansão das cidades, estão situadas hoje em zonas urbanas.

Infelizmente, muitos bens vinculados à Igreja, têm sido dilapidados, alienados levianamente e espoliados, por incúria de gestores. É uma afronta a seus doadores, à história e à memória daqueles que de boa-fé fizeram os legados, por vezes gravando cláusulas de inalienabilidade. Seguiram o preceito bíblico: “Ninguém comparecerá diante do Senhor, de mãos vazias. Cada um trará uma oferta, conforme as bênçãos que o Senhor houver concedido” (Dt 16, 17). Convém lembrar que parcela considerável do patrimônio dos bispados de Caicó e Natal tem sido preservada, graças ao zelo e dedicação de Dr. Vital Bezerra de Oliveira.

Além dos terrenos da Igreja, sobre os quais incidem laudêmio e foro, há também os da família imperial brasileira e os que pertencem à Marinha (União). Estes últimos estão localizados na zona litorânea, inclusive nas ilhas. Em 1831, tal faixa de terra foi delimitada a trinta e três metros da maré mais alta, em relação à linha de preamar. A União possui mais de trinta por cento dessas terras, sendo o restante dos demais proprietários.

A Igreja, considerando as suas necessidades e as dos cidadãos, foi disponibilizando parte de seu domínio para o usufruto de terceiros, sem a perda da propriedade. Disto, origina-se o laudêmio: uma taxa pecuniária compensatória paga ao legítimo dono, quando da transmissão do terreno, havendo ou não edificações. Consiste numa pequena parcela participativa no lucro auferido, proporcionado também pelo uso do terreno. Há ainda a contribuição anual pela ocupação do solo, denominada foro, isto é, uma compensação monetária pela utilização de um espaço pertencente à Igreja ou a outros proprietários.

Laudêmio é uma taxa devida pelo beneficiário do domínio útil ao seu legítimo proprietário. Não é um tributo, mas contraprestação financeira. A cobrança é legal e legitima. Há assentada jurídica para a base dos cálculos, incidindo sobre o valor venal do terreno, onde eventualmente são edificados prédios. Caso a transmissão se dê por herança, o valor não é cobrado. Aos foreiros pertencem as construções e benfeitorias, não os terrenos sobre os quais se edificam, sendo eles patrimônio da União, Igreja, família imperial brasileira etc. Eis a origem das taxas, obedecendo à tradição do ordenamento jurídico brasileiro. Cabe informar que há amparo legal para a sua cobrança, previsto pelo Código Civil Brasileiro (atualizado pela Lei nº 10.406/2002), no Artigo 2038. Hoje, o laudêmio dos terrenos da Marinha (União) é regido pela Lei 14.011/2020. Entretanto, tramitam no Senado Federal e na Câmara dos Deputados projetos de lei (por exemplo, o PL 1855/2024), propondo a extinção de cobrança do laudêmio e foro pela ocupação de terras da União (Marinha). Tais projetos não incluem terrenos pertencentes a outros proprietários. Há quem defenda estender para estes a isenção.

O direito dos legítimos donos deve ser respeitado. É uma questão de justiça e honestidade. As taxas recebidas visam a ajudar na manutenção das obras da Igreja com sua visão amplamente social, assistencial e educativa. Para os cristãos, do ponto de vista teológico-canônico, a obrigatoriedade das taxas laudemiais e foreiras inclui-se no dever religioso do dízimo. Para tanto, recomenda o apóstolo Paulo: “Que cada um dê sem pesar nem constrangimento, pois Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9, 7).

Os mistérios de Shakespeare

Marcelo Alves Dias de Souza

É quase uma convenção dizer: “o que se sabe, com segurança, acerca da vida de Shakespeare, é muito pouco”. Até a sua própria existência, embora isso seja um evidente exagero, é às vezes conspiratoriamente contestada. De fato, em William Shakespeare (1564-1616), há alguns mistérios para que ousemos imaginar na nossa vã filosofia.

Há lapsos factuais na “biografia” de Shakespeare. Pouco se sabe da sua juventude. “Mas por que deveríamos saber?”, indagam Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), para depois responder: “Ninguém a sua época imaginava que ele ia ficar famoso ou mesmo havia uma tradição de anotar fatos biográficos”. E há sobretudo os ditos “anos perdidos”. Sabe-se que Shakespeare casou com Anne Hathaway quando tinha 18 anos. Tiveram a filha Susana seis meses após. Quando ele estava com 20 anos, vieram os gêmeos Hamet e Judith. Mas o próximo registro sobre Shakespeare já o mostra com 28 anos, em Londres, atuando e escrevendo peças. Nada se sabe do paradeiro do Bardo durante esses “lost years”? Bom, isso é realmente um mistério.

Indo além, há diversas teses sobre quem teria sido Shakespeare ou, melhor dizendo, quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhas que atribuímos a um tal William Shakespeare. Como explica François Laroque, em “Shakespeare: Court, Crowd and Playhouse” (Thames & Hudson, 2002), determinados críticos – alguns sérios, outros nem tanto –, sobretudo a partir do século XVIII, têm tentado provar que não poderia ser o ator William Shakespeare o autor das obras-primas compendiadas no “First Folio”, o primeiro cânone Shakespeariano, de 1623. Eles, um tanto quanto preconceituosamente, não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como um homem de origem simples poderia adquirir todo esse conhecimento?

Isso e outras circunstâncias – como os já referidos “lost years” e a ausência de manuscritos autênticos – têm contribuído para a controvérsia existencial e, sobretudo, autoral. Outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Otelo”, de “Macbeth”, de “Hamlet”, do “Rei Lear” e de outras tantas maravilhas. Francis Bacon, Christopher Marlowe, Bem Jonson, Walter Raleigh, John Donne, os Earls de Derby, Oxford, Essex, Salisbury e Southhampton, o cardeal Wolsey, esses são alguns dos “suspeitos de sempre”. Mas há também alguns “acusados insuspeitos” – um tanto quanto bizarros –, segundo anotam os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, como Mary, Rainha da Escócia, a Rainha Elizabeth I, um grupo de jesuítas ou mesmo uma anônima freira irlandesa. Nesse ponto, eu até recomendo um bom filme, intitulado “Anonymuos”, de 2011, que propagandeia, embora equivocadamente, haver dado um ponto final ao mistério.

Na verdade, como consta do “Everyman’s Companion to Shakespeare”, guardadas as circunstâncias de tempo e lugar: “(a) Nós sabemos mais sobre a vida de Shakespeare, tanto em termos de fatos quanto acerca das conclusões racionais deles advindas, do que de qualquer outro dramaturgo elisabetano. (b) A cronologia de eventos conhecidos (certidão batismal, registros de morte e enterro, de compra e venda de mercadorias e imóveis, datas de suas publicações e produções) indica uma grande quantidade de material factual existente sobre ele e sua família. Quantos céticos poderiam juntar tantas evidências acerca de um membro de suas próprias famílias, mesmo numa época em que a documentação tem se tornado comum? (c) Documentos relacionados às atividades de Shakespeare, incluindo cartas para ele e material relacionado à sua família, são abundantes no Shakespeare Center Records Office em Stratford-upon-Avon. Poucos poderiam razoavelmente permanecer céticos se examinassem esses materiais”.

Seguidor da Navalha de Ockham, vou nessa mesma linha, a da explicação mais simples. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I, em 1564, em Stratford-upon-Avon, na casa da Henley Street. Foi trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge na capital do Reino. Voltou à sua terra natal, em 1611, já rico e famoso. E foi viver em New Place até a sua morte em 1616. O resto são estórias, dele e sobre ele.  

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O Brasil maniqueísta

Padre João Medeiros Filho

É bem conhecida a frase bíblica, tirada do Livro Eclesiastes: “Nada de novo debaixo do sol” (Ecl 1, 10). Poderia ser aplicada ao momento atual da sociedade brasileira. Imperam as polarizações, reinam os confrontos. Os brasileiros estão divididos entre bons (os do meu lado) e maus (os do outro lado). Essa divisão remonta a uma filosofia antiga. Percebe-se que as radicalizações não são novidade. Como as ondas do mar que vão e vêm, ideias e comportamentos humanos se repetem, ao longo dos séculos. O quadro sócio-político do Brasil de hoje reveste-se de um novo estilo de dualismo social. O país cindiu-se em duas vertentes intransigentes. Para os adeptos de fulano, tudo que vem de beltrano é ruim, inaceitável. Para eles aquilo que provém de sicrano é nocivo, desprezível, devendo ser extirpado.

A sociedade vive um dilema, próprio do maniqueísmo. Este se fundamenta numa concepção filosófico-religiosa, oriunda na antiga Pérsia, amplamente difundida no Império Romano, nos séculos III a V. Consiste basicamente em afirmar a existência de um conflito intransponível entre os reinos da luz e das trevas. Aos seres humanos caberia o dever de ajudar a vitória do Bem, por meio de práticas ascéticas. O propagador de tal doutrina foi Mani ou Manes, nascido em 216 d. C. Defendia um dualismo antagônico. Segundo ele, há uma oposição permanente entre claridade e sombras. Suas ideias tiveram profunda influência em sua época, a tal ponto de Santo Agostinho, antes de sua conversão, tê-las adotado. Posteriormente, o Bispo de Hipona opôs-se a tal pensamento. No século XII, essa teoria persa voltou à tona. Desta vez, na França. Os novos maniqueus pertenciam à seita dos cátaros (ou albigenses).

Periodicamente, tal teoria emerge aqui e ali, como concepção e estilo de vida ou prática social. Atualmente, ressurge em partidos políticos, alimentados por uma ideologia intolerante. O Brasil divide-se em dois grupos semelhantes ao óleo e à água. Encontram-se, mas não se misturam. O oponente político é visto não como adversário, mas como um inimigo perigoso, que deve ser eliminado a qualquer custo. Quem está do lado contrário só tem defeitos, representa perigo e por isso necessita ser exterminado sem hesitação. O outro é um demônio. “O inferno são os outros”, afirmava Sartre. Para os maniqueus do Brasil atual, apenas a sua maneira de pensar é correta, mesmo que muitas vezes apresente uma pletora de sofismas, contradições, narrativas e inverdades. Apenas, os seus partidários são infalíveis e intocáveis. A sociedade fica, então, dividida. E o pior: quanto mais o outro (o inimigo a ser aniquilado) fracassar, melhor, pois será a prova e o triunfo de “sua verdade”. O amor à pátria e o bem-estar social tornam-se algo diluído e distante, relegado a um plano inferior.

Muitos são contraditórios e ilógicos, pondo nos lábios um pseudodiscurso democrático. A intransigência e intolerância são negações da democracia. Há dificuldade e ingente aversão em aceitar e conviver com quem pensa de modo diverso. Isto ocorre nos parlamentos, em colegiados do judiciário, nos círculos acadêmicos, religiosos e demais instituições. Inconscientemente, almeja-se uma sociedade em que todos deveriam pertencer ao mesmo partido político, professar idêntica religião, ser do único time de futebol e ter igual modo de pensar. Os sistemas totalitários, tanto de direita, quanto de esquerda, alimentam-se dessa utopia. Desconhecem o ensinamento cristão, contido na Epístola aos Romanos: “Como num só corpo temos muitos membros, cada qual com uma função diferente” (Rm 12, 4).

Viver exige saber conviver. “Homem algum é uma ilha”, escreveu Thomas Merton. O diferente amplia a visão, levando as pessoas a um melhor autoconhecimento. Conviver é respeitar, ter a capacidade de ouvir para se enriquecer com outras maneiras de pensar e ver o mundo. Quão monótona e deprimente seria uma sociedade formada de robôs! Os dias atuais estão mostrando que o maniqueísmo continua vivo e atuante. E, como todo “ismo”, tende a ser ideológico e empobrecedor. O Brasil, que se diz cristão, parece ignorar as palavras do apóstolo Paulo: “De fato, o corpo é um, embora tenha muitos membros” (1Cor, 12, 12).

O Supremo Tribunal sob ataque

O Supremo Tribunal sob ataque

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay *

“Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?”

Fernando Pessoa no Poema em linha reta

Existe um golpe em andamento para impedir o julgamento da tentativa de golpe de Estado. Esse movimento da extrema direita, dos bolsonaristas, do centro e que agora tem adesão de democratas até dentro do Governo Lula é, em parte, legítimo. Eu o vejo como integrante de uma estratégia ampla de defesa. O problema – um dos problemas – é que a estratégia passa pela desmoralização do Supremo Tribunal Federal. Aí é que reside o risco de simplesmente considerar que, na ampla defesa, vale tudo.

A prudência por parte do Ministério Público e a demora na investigação do 8 de janeiro, são naturais, em parte, em razão da complexidade dos fatos. Afinal, não é simples denunciar criminalmente um ex-presidente e vários auxiliares, inclusive, generais; tudo, de alguma maneira, contribuiu para que esse movimento se fortalecesse.

São várias as frentes. A ultradireita busca apoio internacional e a vitória do Trump deu um falso fôlego aos extremistas tupiniquins. A direita radical tem estratégia e dinheiro. Tem o apoio declarado de boa parte da mídia e envergonhado de outros tantos. Muito dinheiro e poder envolvidos. Organizaram diversas teses: o tal golpe não tinha um líder; não estavam armados; as forças armadas não se empenharam; o então Presidente Bolsonaro estava fora do Brasil; por fim, não havia apoio internacional. Tudo que era discutido tinha roupagem teórica, sem efeito real. Ou seja, a incompetência dos golpistas serve como tese de defesa.

Depois da reação, especialmente do Supremo Tribunal Federal, que salvou as instituições democráticas, o leque de teses ampliou e apareceram adesões inesperadas de democratas. Críticas contundentes ou veladas ao STF viraram a regra. Afirmam que as penas são desproporcionais, que os crimes foram cometidos por pessoas sem poder, sem capacidade, que são pais de família, que as condenações são injustas e que a saída seria uma estranha anistia até para quem não foi sequer denunciado.

O Lula ficou preso 580 dias de maneira ilegal, imoral e inconstitucional. Nunca ouvimos da boca dele um choro desesperado. Deve ter chorado muito de raiva e de indignação nas noites solitárias do cárcere. É humano. Contudo, sua percepção política e humanista fez com que ele tivesse a dimensão do que era aquela prisão. E ele se portou como um verdadeiro líder. Também por isso ele hoje está de novo na Presidência, enquanto Bolsonaro se arrasta como um verme, praguejando e chorando.

Na estratégia golpista contra o processo da tentativa de impor uma ditadura no Brasil, ouvi de várias partes que dois eram os alvos: pressionar o procurador-geral, que é o dono da ação penal, para impedir uma denúncia formal no Supremo Tribunal. Denúncia é a peça que, se recebida pela Corte, dá início ao processo penal. Esse primeiro objetivo fez água. A denúncia contra Bolsonaro e seu bando mais próximo sairá nesta semana. Certamente, técnica e precisa. Quando o dr. Paulo Gonet, que é sério e preparado, pediu a prisão do general Braga Netto, não restou nenhuma dúvida para quem acompanha o desenrolar dos fatos de que a formalização da acusação era só uma questão de tempo.

Agora, a estratégia é desmoralizar o STF para conseguir a absolvição. O plano é apontar, até irresponsavelmente, teses esdrúxulas que tenham eco nas pessoas desavisadas e desinformadas. A regra é dizer: as penas foram altas demais. Desconhecimento puro do processo. Os golpistas condenados foram acusados de 5 crimes. O Poder Judiciário é inerte, só age se provocado. As denúncias que acabaram condenando 381 golpistas, por enquanto, imputaram crimes graves. Ao Supremo Tribunal só existiam duas hipóteses: absolver ou condenar. Absolver seria compactuar com o golpe e negar a democracia. Comprovadas a materialidade e a autoria, a condenação era inevitável.

E este ponto é essencial: no Brasil, há uma previsão de penas mínima e máxima para cada crime. O ministro não pode simplesmente dar uma determinada pena que considera justa. E com a fixação do concurso material quando da condenação, as penas mínimas somadas alcançam 13 anos!! Altíssima, mas é o que prevê a lei. O Supremo não tinha alternativa. As penas verdadeiramente altas – de 25 a 28 anos – estão previstas para o próximo processo, no qual os líderes terão, aí sim, penas de acordo com as responsabilidades de cada um.

Não cabe a nós, democratas, ficarmos afirmando que as penas foram altas e que existem inocentes presos. Ora, que os advogados entrem com Revisão Criminal para a Corte Suprema analisar caso a caso. É um desserviço à democracia o ataque indiscriminado ao STF. Acerca da anistia, é claro que o Congresso Nacional tem o direito de discuti-la. Esse direito está necessariamente atrelado à responsabilidade com a estabilidade democrática. É uma bazófia afirmar que a anistia pacificaria o país. Absolutamente falso. O que vai pacificar o país é a submissão dos fatos criminosos a um julgamento. Com evidente respeito à ampla defesa, ao devido processo legal e à presunção de inocência, mas com a condenação daqueles que comprovadamente fizeram parte da trama golpista, que incluía, registre-se, o assassinato do Lula, do Alckmin e do Ministro Alexandre de Moraes. Esses fatos sensibilizaram até parte da direita civilizada. Tivessem vingado, muitos de nós não estaríamos aqui hoje. É mais do que necessário virar esta página. E, em respeito aos princípios democráticos que basearam toda a reação por parte do TSE e do STF, fazer um julgamento rápido, técnico e que leve, aí sim, à pacificação que o Brasil merece.

Sempre carregando conosco a Cecília Meireles: “Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.”

www.iclnoticias.com.br

As rupturas de Shakespeare

Marcelo Alves Dias de Souza

Na semana passada, tratei aqui dos “roubos” de Shakespeare (1564-1616), no sentido de que o Bardo, com poucas exceções, não teria inventado os enredos de suas peças. Ele tinha suas “fontes”. Shakespeare reescreveu histórias antigas ou lendárias; trabalhou a partir de obras de escritores italianos relativamente próximos de seu tempo; adaptou ficções populares de seus compatriotas contemporâneos. Ele apreendeu e compreendeu essas ideias; reinterpretou-as para diferentes universos e épocas; disse o não dito a partir do já dito. Com seu gênio, roubou/transformou o que já era muito em muito mais do que muito.

Mas o que fez ser Shakespeare – e sua obra dramática – muito mais do que muito?

O Bardo foi, entre outras coisas, um disruptor, dando a este vocábulo um sentido não só negativo de destruição, mas também de consequente e positiva reconstrução.

Shakespeare marca uma clara ruptura com a tragédia grega. Ele lia os clássicos gregos para fins de elaboração de suas peças, é vero. Ao escrever suas peças “romanas”, ele baseou-se amplamente nos escritos de Plutarco (46-120). Ele estava também familiarizado com a sabedoria Bíblica. Mas, se a Grécia é o berço do teatro ocidental, da tragédia clássica com a sua lei das três unidades – tempo, lugar e ação – segundo Aristóteles (384-322a.C.), Shakespeare rompeu com isso em direção ao teatro/cena moderna. O seu tempo é mais longo (e não um só dia como na tragédia clássica), seus cenários são múltiplos e tanto os seus protagonistas como as suas personagens secundárias determinam o rumo da trama.

Se Shakespeare foi um revolucionário mestre das tragédias, ele também o foi das comédias. Com um adendo importantíssimo: misturando-as sublimemente adocicadas com romance. Se, em especial no teatro grego, a tragédia e a comédia eram tratadas separadamente, Shakespeare, no seu palco, imita a vida, essa nossa “tragicomédia” de paixões, de idas e vindas, real e cotidiana.

Sob o ponto de vista linguístico, ele foi um inigualável inventor de palavras. Dotado de uma mente perceptiva, que respondia célere e inventivamente às inspirações da linguagem literária e falada, é imensurável a influência de Shakespeare para o desenvolvimento do vocabulário, da língua e da cultura inglesas dentro do seu país e mundo afora. Como anotam Leslie Dunton-Downer e Alan Riding, em “Essential Shakespeare Handbook” (Dorling Kindersley, 2004), “nenhum outro poeta possui uma criatividade vocabular tão plena quanto Shakespeare, que introduziu no inglês cerca de mil e quinhentas novas palavras entre as vinte mil utilizadas em suas obras. Muitas das mais conhecidas frases ainda hoje em uso na língua inglesa apareceram pela primeira vez nas suas peças e na sua poesia”.

A partir das suas “fontes” históricas/literárias ou desenvolvendo-as inteiramente do zero, Shakespeare foi o criador de personagens humanizadas, que, embora vivendo suas estórias fantásticas, parecem muito próximas de nós em suas qualidades e, sobretudo, em seus defeitos. Conforme registra Caroline Cunha, no texto “As inspirações do teatro de Shakespeare”, no blog Letras in.verso e re.verso, “a dramaturgia shakespeariana é conhecida por sua extensa galeria de personagens emblemáticos como Hamlet, Ofélia, Otelo, Iago, Cleópatra, Rei Lear, Macbeth, Desdêmona, Rosalinda, entre outros. Shakespeare criou mais de mil personagens, muitos são dotados de uma dimensão interior nunca vista antes nas histórias. Da pena do autor saíram diálogos que discutem temas da filosofia, da teologia, da metafísica. Seus personagens vão do desespero à felicidade, em tramas que falam de amor, loucura, guerra, disputa pelo poder, política e liberdade. Shakespeare criou alguns dos primeiros anti-heróis da literatura, protagonistas que não possuem vocação heroica, têm um quê de malvados, podendo realizar a justiça por motivações egoístas”. E, citando o professor de literatura inglesa da USP John Milton, arremata a autora: “‘Todos os grandes heróis trágicos dele têm falhas com as quais podemos nos associar, como o ciúme de Otelo, a ambição de Macbeth, a atração pelo poder de Ricardo III, a procrastinação de Hamlet e, na tragédia de Cleópatra, Marco Antônio é um homem poderoso que larga tudo por amor. Todos os personagens têm essas características muito humanas’”.

Talvez por isso tudo seja Shakespeare hoje reconhecido como o inventor do “moderno” e, como quer Harold Bloom (1930-2019), do “humano”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A arte fura a bolha do silêncio

A arte fura a bolha do silêncio
Arte: Paulo Márcio

Brasil é um país sem memória. Ainda hoje, pessoas públicas das mais diversas matizes ousam desprezar o óbvio e afirmam que não existiu o golpe militar e que sustentar que houve Ditadura no país é um excesso. Certamente esse foi um dos motivos que fez com que bolsonaristas, desinformados, obtusos e, em regra, de extrema direita, fossem às ruas pedir a intervenção e a volta dos militares. Um povo que não conhece a sua história tende a repetir os seus erros. Mesmo quando esses significam evocar a morte, a tortura, o estupro de mulheres grávidas e o desaparecimento de pessoas.

Foi preciso uma mulher de esquerda, que foi barbaramente torturada, assumir a Presidência da República para ser instalada a Comissão da Verdade, que jogou luzes no período sangrento e nebuloso da Ditadura militar. O Brasil não fez um museu, ou um memorial, para mostrar ao seu povo os horrores dos porões da barbárie. Agora, em 15 de fevereiro, haverá um debate sobre a construção de um museu-memorial no lugar do antigo DOI-CODI do II Exército, no bairro Paraíso em São Paulo. O local era chamado de “sucursal do inferno” pelo seu comandante, o torturador Brilhante Ustra, ídolo do fascista Bolsonaro. Estima-se que mais de 7000 pessoas foram barbarizadas naquele espaço. Quase todas torturadas e com o registro de 78 mortos por agentes do Estado. O Brasil merece que essa história seja contada, até para que não se repita. Com a lembrança do Mário Quintana: “O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente…”.

A esquerda brasileira é, em boa parte, ranzinza e mal-humorada. Ouvi críticas ao emocionante filme  “Ainda Estou Aqui” de pessoas que o consideraram romanceado demais e sem o foco na denúncia mais explícita da Ditadura e da tortura. Uma crítica exatamente ao grande mérito do filme, conduzido com maestria pelo genial diretor  Walter Salles, que soube tirar do excelente livro do Marcelo Paivauma comovente história conduzida com magia por  Fernanda Torres e Selton Mello. A participação da  Fernanda Montenegro é um momento de grande impacto e reflexão.

O filme, dentre outros méritos, teve a inteligência de conduzir a história por caminhos que, mesmo os que se negam a encarar de frente o período da Ditadura, querem ver e, certamente, serão tocados de alguma forma. Por isso, é emocionante constatar que não só o filme está sendo visto por milhões de espectadores ao redor do mundo, como a lembrança dos tempos da Ditadura é reforçada por cada matéria sobre o filme, em cada debate, em toda menção à história e ao enredo,a qual tem que ser explicada. Na entrega do prêmio GOYA, no discurso de agradecimento, a citação expressa à Ditadura militar no Brasil, com o mundo inteiro acompanhando, valeu milhões de vezes mais do que se o filme fosse panfletário e mais contundente, como reclama parte da nossa esquerda.

Não dou muito valor a essa história de  OSCAR, mas vai ser genial se a estatueta for para o filme. Os políticos e a elite brasileira, que esconderam a tortura, as mortes, os estupros e os desaparecimentos, vão ver o valor da arte do cinema, de magia que comove. Foi preciso reunir um grupo talentoso de artistas, um grande escritor e um diretor sensível para que, através da arte, a bolha do silêncio fosse furada.Mais uma vez, a arte salva.

Remeto-me, novamente, ao grande Mário Quintana, em Esconderijos do Tempo:

Publicidade

“é quando as portas são fechadas e abertas ao mesmo tempo, é quando estamos metade na luz e a outra metade na escuridão, é quando o mundo real chama e preferimos outro…”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

www.ultimosegundo.ig.com.br

A Barragem de Oiticica

Padre João Medeiros Filho

Anuncia-se para breve a inauguração da Barragem de Oiticica, localizada no município de Jucurutu (RN). Há os que reclamam a autoria do projeto, ignorando a real origem da ideia. Aliás, poucos conhecem o relato dos acontecimentos. Há três anos, publiquei um artigo neste jornal, abordando o assunto. Os verdadeiros protagonistas de uma história nem sempre são lembrados. Por vezes, outros recebem os louros da vitória. Em 1951, o Nordeste brasileiro viveu uma de suas inclementes secas. À época, era bispo de Caicó Dom José de Medeiros Delgado, tendo como vigário geral Monsenhor Walfredo Dantas Gurgel. O deputado Stoessel de Brito – proprietário da Fazenda Baixio e amicíssimo do bispo – representava Jucurutu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.

Em abril de 1951, deflagrada a seca e diante do sofrimento da população, Dom Delgado convocou uma reunião naquela fazenda com as lideranças do Seridó para encontrar meios de amenizar as consequências do flagelo. Participou dessa reunião meu pai, então vice-prefeito de Jucurutu, levando-me consigo, vez que os anfitriões eram os meus padrinhos de batismo. Deveria acompanhá-lo para lhes pedir a benção e ao senhor bispo. Tempos depois, ouvi deles o relato completo da reunião. Em setembro desse ano, o prelado foi promovido por Pio XII a arcebispo de São Luís (MA) e seu vigário geral assumiu o segundo mandato de deputado federal.

Em geral, nos períodos de seca, o poder público organizava frentes de trabalho para os agricultores, impedidos de cultivar a terra. Tais ações eram coordenadas pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas – DNOCS. Na reunião, acatando a sugestão do bispo diocesano, os participantes decidiram à unanimidade propor ao governo federal um empreendimento duradouro e não mero paliativo. Optou-se por indicar a construção de uma barragem, perto de Barra de Santana, sobre o Rio Piranhas-Açu, para ser um reservatório hídrico, destinado também à pesca e irrigação. O prelado caicoense conhecia bem o potencial do rio, pois quando jovem residiu perto de sua nascente.

Dom Delgado viajou ao Rio de Janeiro para tratar do assunto junto ao governo federal. Encontrou-se primeiramente com o Ministro da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida. Este era sobrinho de Monsenhor Walfredo Leal, ex-governador da Paraíba (pelo lado materno) e Monsenhor Odilon Benvindo de Almeida (pelo lado paterno). Tios e sobrinho tinham profunda estima pelo bispo de Caicó, anteriormente pároco de Campina Grande (PB). Na capital da República, Dom Delgado foi recebido em audiência pelo Vice-Presidente Café Filho, estando acompanhado de Monsenhor Walfredo Gurgel e também de seu compadre Tristão de Athayde. Das tratativas nos encontros resultou o ato federal, autorizando o início da construção da Barragem de Oiticica. O engenheiro Clóvis Gonçalves dos Santos fora escolhido para dirigir as obras.

O Ministro José Américo alocou recursos para a barragem e enviou gêneros alimentícios destinados aos flagelados do estado do RN, cuja distribuição ficaria a cargo das dioceses para evitar a exploração das vítimas pelos “barracões” (armazéns), integrantes da “indústria das secas”. O referido ministro chegou a ser indicado pelo Presidente Vargas embaixador do Brasil junto ao Vaticano. Entretanto, declinou da honrosa escolha.

O bispado de Caicó pensou na assistência religiosa aos operários. O pároco de Jucurutu, Padre Deoclides de Brito Diniz, dedicava especial atenção aos trabalhadores. No início das atividades, o inesquecível sacerdote abençoou o canteiro de obras e leu uma mensagem profética de Dom Delgado: “O suor de tantos, aqui derramado, um dia converter-se-á em água abundante para matar a sede e fome de nosso povo.” Anos depois, não concluída, a barragem recebeu o nome de “Governador Iberê Ferreira”. Oiticica tem a Igreja como sua inspiradora. Deste modo e num ato de justiça e gratidão, sem detrimento à homenagem prestada a nosso ex-governador, dever-se-ia denominar todo o conjunto da obra de “Complexo Hídrico Dom Delgado”. Um dos primeiros operários da construção da barragem foi o jovem Raimundo Sérvulo da Silva, hoje pároco emérito de Acari, carregando no corpo a marca de um acidente de trabalho, ali ocorrido. Não se deve esquecer o alerta de Cristo: “Dai a Cesar, o que é de Cesar; e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22, 21).