Santa Dulce dos Pobres

Padre João Medeiros Filho

A notícia de sua canonização divulgada, no dia 01 de julho passado, trouxe alegria aos brasileiros, em especial aos católicos baianos. Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes era o seu nome civil. Nasceu em Salvador, aos 26 de maio de 1914, ali faleceu, em 13 de março de 1992. No entanto, é mais conhecida como Irmã Dulce ou Bem-aventurada Dulce dos Pobres, denominada, também, de forma grata e carinhosa pelos soteropolitanos, o Anjo bom da Bahia”. Foi beatificada em 2011 e, no próximo dia 13, será canonizada pelo Papa Francisco. Trata-se daprimeira brasileira nata (não mártir) a ser declarada santapelo catolicismo. Sabe-se que entre as vítimas dos massacres de Cunhaú e Uruaçu, havia mulheres. Irmã Dulce era de saúde frágil, sofria de problemas respiratórios e dormia sentada.

O Papa Francisco afirma frequentemente quea santidade é a face mais bela da Igreja”. O testemunho de vida dos santos é o seu maior patrimônio. Como diz a Carta aos Hebreus, estamosenvolvidos por uma nuvem de testemunhas [exemplos]” (Hb 12,1), servindo de estímulo para trilhar o caminho da justiça e do amor. O processo canônico para a Igreja reconhecer oficialmente a santidade de um cristão consta de três momentos: Vox Populi, Vox Ecclesiae e Vox Dei” (a voz do povo, a da Igreja e a de Deus). De fato, a santidade é vivida no cotidiano da existência humana, na maioria das vezes, na simplicidade de uma vida de seguimento a Cristo e ao Evangelho (normalmente, de forma discreta e sem notoriedade). O primeiro passo é o reconhecimento de uma vida humana e cristã exemplar, ou seja, a fama de santidade verificada pelo povo (Vox Populi). Isto já era corrente, quando Irmã Dulce vivia aqui na terra. Desde jovem, foi movida pela misericórdia e ternura com os pobres e desvalidos. Com o consentimento da família,ainda jovem, foi transformando sua residência num centro de atendimento aos necessitados. Sua casa era conhecida como “a portaria de São Francisco”. Dentre tantas outras iniciativas, destaca-se a fundação, em 1959, das Obras Sociais Irmã Dulce.

A voz do povo, confirmada pelo testemunho de sua vida, é o núcleo da santidade. O reconhecimento da Igreja(Vox Ecclesiae) passa pela aceitação de dois milagres(Vox Dei) que são atribuídos pela sua intercessão. O ato miraculoso para a canonização de Irmã Dulce aconteceu com José Maurício Bragança Moreira, músico, natural de Salvador. Estava cego de ambos os olhos. Em meio a uma crise inflamatória ocular, tomou a imagem da Beata Dulce e a levou até os olhos, suplicando com muita fé que ela aliviasse o seu sofrimento. Algumas horas depois, voltou a enxergar. Recebera mais do que havia pedido. Rezou apenas pelo alívio das dores. Mas, a generosidade da santao fez voltar a ver. O  milagre atesta a voz de Deus, testemunhando que a santidade é, acima de tudo, fruto dagraça divina. É assim que a Igreja proclama solenemente asantidade de um cristão.

No prefácio da missa da festa de um santo, rezam-seestas palavras: “Nos vossos santos ofereceis um exemplo para a nossa vida, a comunhão que nos une, a intercessão que nos ajuda”. São estes elementos fundamentais da presença dos eleitos de Deus em nossa vida de fé. Quando a Igreja eleva aos altares um batizado é para que sirva de testemunho de vida, pois pelo caminho por ele trilhado, deixa sinais, incentivando-nos a buscar também a santidade. Pela canonização, a Igreja manifesta igualmente a comunhão da fé que nos torna uma única família, em Cristo Jesus. Aqueles que aqui peregrinam, estão unidos aos que já vivem na glória da Eternidade e continuarão a fazer o bem, intercedendo por nós, confirmando a comunhão em Cristo, nosso verdadeiro mediador junto do Pai. É importante que nossa devoção a um santo, seja sempre fundamentada no seu testemunho de vida. A vontade de Deus é que sejais santos” (1Ts 4, 3). Ou ainda, como diz o apóstolo Pedro: “Como aquele que vos chamou, tornai-vos santos, em todo o vosso proceder” (1Pd 1, 15).

O silêncio nas igrejas

Padre João Medeiros Filho

Tudo tem seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa, debaixo do céu. Tempo de falar e tempo de calar” (Ecl 3, 1-7). Essa máxima bíblica deveria ser mais lembrada, ao adentrar as igrejas, lugares sagrados, em sinal de reverência à presença de Cristo Eucarístico. Não raro, dentro dos templos, observa-se um clima de entretenimento, iniciado lá fora. As conversas, mesmo a meia voz, servem de passatempo, enquanto se aguarda o ato litúrgico. A casa de oração transforma-se em lugar de comentários, críticas etc. O mais grave é isto ocorrer durante as celebrações religiosas. Nos cinemas e teatros, pairam a atenção e o silêncio, durante as exibições e apresentações. Importa valorizá-los mais. Calar significa também nossa condição de pecador. Assim fala o apóstolo Paulo: “Toda a boca se cale. Todos se sintam culpados diante de Deus” (Rm 3,19).

O Senhor, no sacrário das igrejas, pede o recolhimento pessoal e o da comunidade. Ali, o relacionamento é com Deus. O evangelho de Lucas conta que, ao ser revelada a divindade de Jesus na transfiguração no Monte Tabor, “os discípulos ficaram calados” (Lc 9, 36). O profeta Habacuc nos adverte: “Mas, o Senhor está no seu templo santo. Silêncio diante de sua face, toda terra” (Hab 2, 20). Sofonias insiste, no mesmo sentido: “Silêncio, diante do Senhor” (Sf 1, 7). Santo Ambrósio já advertia, no século IV: “O demônio busca o barulho, Cristo, o silêncio”.

Essas considerações levam-nos a especificar algumas circunstâncias para melhor compreensão. Na missa, o deslocamento na ocasião do abraço da paz, por vezes quebra o silêncio e a piedade exigidos para esse momento. Isso prejudica o recolhimento espiritual, antes da comunhão. Pelas diretrizes litúrgicas, essa saudação deve ser feita aos mais próximos. Certos cânticos – mesmo de cunho religioso – podem ser apropriados a outros locais e circunstâncias, que não o templo sagrado e as celebrações litúrgicas. A missa não deve ser usada para protestos político-ideológicos, através de “homilias”, cânticos etc. As preces da comunidade tampouco podem ser aproveitadas para se inserir críticas ou externar determinadas posições, à margem da sacralidade do ato que se celebra. Algumas cerimônias de casamento não condizem com a liturgia da Igreja. As pessoas devem sempre ter em mente a sacralidade do local em que se encontram, assumindo uma atitude respeitosa. Ninguém é obrigado a comparecer a tais cerimônias, mas se livremente ali está, subentende-se que acate uma postura de reverência.

Esses exemplos e outras circunstâncias sugerem a necessidade de consubstanciar a importância do sagrado, numa sociedade que se afasta cada vez mais dos valores religiosos. Como proceder para preservar um ambiente verdadeiramente adequado à santidade de nossos templos? Primeiramente, dever-se-á fortalecer o espírito de fé. A crença bem viva na infinita grandeza de Deus leva-nos a um profundo respeito. E o silêncio é uma das expressões desses sentimentos. Ao penetrar nos umbrais da casa do Senhor, por mais humilde que seja, deve-se ter presente a dignidade espiritual do lugar. É preciso aprender e exclamar como o salmista, em atitude de prece: “pois o zelo de tua casa me devorou” (Sl 69/68, 10).

É necessário ter bem viva a responsabilidade de dar exemplo cristão ao próximo, especialmente às pessoas afastadas da fé. Esse trabalho educativo pode ser dinamizado pelos que se acham vinculados à Igreja. Exemplos, por vezes, são mais eloquentes do que uma exortação ou apelo. Muitos poderiam perguntar por que tratar desse assunto, quando há outros, aparentemente de maior importância? A resposta é muito simples: tudo o que se refere a Deus é prioritário, valioso e oportuno. Além disso, o cuidado com as necessidades materiais do nosso próximo será mais eficaz quando elas estão vinculadas ao divino. Este é um alicerce sólido sobre o qual se possibilita a edificação da espiritualidade. Louvemos ao Senhor com os lábios e também com o coração na Casa de Deus, lembrando-nos das palavras do Evangelho: “O Mestre está aqui e te chama” (Jo 11, 28). “Este [Jesus Cristo] é o meu Filho muito amado, escutai-o(Mc 9, 7

Ai, as palavras…

Padre João Medeiros Filho

As palavras passeiam, frequentam palácios e tugúrios, dançam, viajam, andam de chinelos ou sapatos. Conta-se que Gabriel García Márquez ao escrever, espalhava sobre a mesa de trabalho vários dicionários, de modo que as palavras disputassem umas com as outras. O poeta de Itabira, em seu poema “O Lutador”, já se expressava: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos, mal rompe a manhã… Palavra, palavra (digo exasperado). Se me desafias, aceito o combate”. A palavra tem uma força surpreendente: pode ferir ou confortar; unir ou separar; despertar amor ou ódio; humilhar ou enaltecer; compreender ou condenar; incitar à guerra ou trazer a paz. Pode ser amarga ou terna, desumana ou divina. Tem a capacidade de gerar sentimentos paradoxais no ser humano. Consegue provocar danos mais graves que a arma convencional, que atinge o corpo. Ela, porém, fere a alma, causando estragos irreversíveis.

Há palavras chiques e banais, não por conta da semântica, mas por causa da pressão social. Nos aeroportos, quando a viagem é de classe econômica, a indicação da fila está em vernáculo. Porém, no embarque em classe executiva, as palavras mudam para “business” ou “first class”, mesmo se a viagem é apenas de lazer, sem propósito de negócios. Quando se toma uma xícara de café com uma fatia de bolo ou tapioca em casa, diz-se merenda. Se acontecer numa empresa ou escritório, vira “coffee break”. Adquire mais charme, embora não necessariamente mais sabor. Saudades de Ariano Suassuna, que não se curvava diante de estrangeirismos desnecessários e pernósticos.

A linguística vem mostrando que os idiomas vão se desgastando, não só pelo uso, mas também pela submissão colonialista, assimilando palavras e expressões de outras línguas. Assim aconteceu com o latim, que foi se misturando às línguas dos povos colonizados. Parece adquirir um tom mais refinado, quando o autóctone emprega termos insólitos ou estrangeiros. A moda hoje é o inglês, como foi o francês no passado e o grego na Antiguidade. Quem sabe, será o mandarim no futuro? Assim, há quem diga que trabalha “full time” ou “part time”. O povo simples – apesar de já se comunicar pelo “whatsapp” – não usa tais expressões. Dirá apenas que trabalha o dia todo, inclusive sem se preocupar com o que significam os termos ingleses.

O anglicismo pega forte, como dizem os jovens. Prefere-se “sale” à liquidação. E isto pode ser verificado desde lojas sofisticadas – que vendem produtos de marca nos “shoppings” – até aquelas de rua. Um amigo falou que já encontrou tal expressão em barracas de vendedores ambulantes (“camelôs”, o galicismo dá ares de elegância). Na verdade, os brasileiros são mais afeitos a absorver a cultura estrangeira, diferentes de outros povos, que são mais resistentes.

Antes, dizia-se que fulano era diretor de vendas ou gerente comercial. Agora está em moda qualificá-lo de diretor de “marketing”, assim como a operadora de “telemarketing” era telefonista. Se isso aumenta o volume de vendas, não se sabe. Mas, alimenta, sem dúvida, o colonialismo cultural. Os assessores e redatores de autoridades são comumente chamados de “ghost writers”. A atenção dos leitores volta-se para os “best sellers”. Ao se hospedar em um hotel de algumas estrelas, certamente alguém haverá de encontrar nos aposentos um “kit” de higiene, “wi-fi” e outras realidades rotuladas de nomes ingleses. Ao se hospedar em hotéis mais luxuosos, faz-se primeiro o “check-in” (expressão também usada nos aeroportos) e na saída o “check-out”. Nos estádios, teatros etc., costuma haver uma sala “VIP”. Às vezes, quem tem direito ao acesso, não é tão importante quanto pensa, mas o dinheiro ou o cargo fala mais alto. De fato, seria mais democrático não haver tais discriminações.

A informática sofre de um anglicismo crônico e agudo. Parece menos repulsivo manipular um “mouse” do que um rato. Muito se poderia escrever sobre o assunto, mas como o jornal impõe um “deadline” (prazo de entrega), melhor é parar por aqui e enviar o texto por “e-mail” ao redator. É bom pedir a proteção de Ariano para que interceda junto à Compadecida pelos brasileiros, mergulhados em muitos barbarismos, libertando-os de tantos termos pedantes e sem precisão! “E cada um ouvia falar em sua própria língua” (At 2, 6).

Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil”!

Padre João Medeiros Filho

As comemorações da Semana da Pátria reacendem nos brasileiros o desejo de expressar o amor por ela, suas origens e cultura. Todos são convidados a buscar o Bem e a Justiça para o Brasil, que carece de ser mais amado. As festividades – outrora vividas com ufanismo nas escolas – devem inspirar o compromisso de encontrar novas dinâmicas e respostas para que o povo não continue a sofrer as consequências dos privilégios intocáveis, das inadmissíveis práticas de certas instâncias dos poderes “republicanos”. É preciso ter determinação para vencer os cenários de exclusão e o clima de radicalização e ódio que estão fragmentando a sociedade, criando um contexto desfavorável à participação altruísta nos processos cotidianos e levando os cidadãos ao pessimismo.

Para reverter esse quadro é necessário romper com inadequadas formas de exercício do poder e a sede egoísta do proveito próprio, desrespeitando o povo. A cooperação entre todos e a clareza sobre a necessidade de se procurar a paz e o bem-estar social devem ser prioritárias. A pátria é mãe de todos e não apenas de alguns, que tentam impor obstinadamente suas vontades, em detrimento da nação. Não é mais possível viver, de forma radical, como se o país estivesse numa contínua e acirrada campanha eleitoral. Hoje, fala-se mais em esquerda, direita e centro do que sobre o Brasil.

A sociedade precisa estabelecer prioridades e apontar soluções eficazes e patrióticas para alcançar uma mudança civilizatória. Todo cuidado é pouco para não se deixar aprisionar por disputas insanas e escolhas de siglas descomprometidas com os sérios problemas nacionais, e sim voltadas para interesses hegemônicos e oligárquicos. Assiste-se a embates orientados por conveniências de pessoas e grupos, contaminados pela vaidade, comprometendo a necessária lucidez, neste período difícil de nossa história. As atuais disputas inadequadas, inconsequentes e infrutíferas retardam o progresso, impedindo o Brasil de atingir um patamar, condizente com sua história e riquezas. Deve haver desapego, a partir de uma nova dinâmica cultural, capaz de nortear as instituições comprometidas com as dimensões políticas, sociais e éticas. Basta observar o que ocorre em altas esferas dos três poderes, desorientando os rumos do país. E o que dizer das alarmantes cifras destinadas à manutenção da máquina pública? O pior: isso vem resultando num tipo de burocracia nociva ao desenvolvimento do Brasil. Muitas direções escolhidas são letais, impondo processos que produzem morte lenta e perversa de pessoas, segmentos sociais e instituições.

É o momento de “abrir mão” e “abrir a mão”. O alcance simbólico destas duas expressões evidencia especial desafio aos homens públicos, autoridades e líderes, Considera-se o exercício da solidariedade indispensável à construção de um mundo melhor. Há grande resistência para se abrir mão de privilégios, mordomias preconceitos e partidarismos. Não é menor a dificuldade para se abrir a mão, numa postura sincera de acolhimento e doação. Quase sempre, quando é proposto um gesto que signifique “abrir mão”, acontece do mais forte impor o sacrifício ao fraco; o rico ao pobre; o político às camadas populares. Não raro, a “justiça” é exercida em favor dos que dominam e os prejuízos socializados entre os indefesos e inocentes. A atitude de não querer “abrir mão” contribui decisivamente para que várias instituições afundem, como um barco náufrago, sem que os ocupantes percebam o perigo. Poucos aceitam mudanças, que possam ser desfavoráveis à situação na qual se encontram, em prol do bem coletivo. Renunciar a “benesses” é algo inaceitável para muitos. Em tais casos, a resposta é imediata e negativa. Votações do parlamento têm comprovado. É preciso reavaliar o tecido cultural, subjacente nos processos aos quais as instituições são submetidas, ao longo de décadas. Na maioria dos casos, a irresponsabilidade e os interesses cartoriais configuram procedimentos gerando prejuízos, impedindo avanços e o enfrentamento das crises. Vale lembrar as palavras do apóstolo Paulo: “Enquanto temos tempo, façamos bem a todos” (Gl 6, 10). Neste 197º aniversário da Independência, rezemos (como na Bênção do Santíssimo Sacramento): “Dai ao povo brasileiro paz constante e prosperidade completa”!

Doação de órgãos: um serviço a Deus

Padre João Medeiros Filho

Dom Helder Câmara, em seu programa “Um olhar sobre a cidade”, levado ao ar pela Rádio Olinda, costumava citar esta frase adaptada de um pensamento de Esopo: “Ninguém é tão pobre que não possa dar, nem tão rico que não possa receber”. Realmente, mesmo após a morte, quando nada mais nos resta como sopro de existência, nossos órgãos poderão salvar vidas ou melhorar o cotidiano de nossos irmãos.

Repercutiu a decisão de Dom Agnelo Rufino, bispo auxiliar de Bombaim, doando seus órgãos, após sua morte. Um dia, do púlpito da catedral, proclamara: “Quero ajudar meus irmãos. Se alguém puder ver através de meus olhos ou utilizar meu rim para viver mais, creio que será um serviço a Deus”. Dom Agnelo promoveu intensa campanha entre seus diocesanos em prol da doação, escrevendo artigos e fazendo palestras sobre o assunto. Aumentou o número de doadores na Índia, mais frequente nas comunidades cristãs. De acordo com as palavras daquele prelado, é importante a conscientização de “que mesmo, após a morte, podem servir a Deus e à humanidade”.

Em outubro de 2014, o Papa Francisco denominou o gesto de doar como: “peculiar forma de testemunho do amor”. O Evangelho declara: “não existe prova maior de amor do que dar a sua vida pelos irmãos” (Jo 15, 13). Os teólogos afirmam que, ao permitir sobrevida com qualidade, vive-se esse princípio evangélico. Em 2018, Padre Gerônimo Dantas Pereira, da arquidiocese de Natal, doou seu corpo para estudo dos alunos do Centro de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

No Brasil, o número de cirurgias de transplantes perdeu um pouco o fôlego com a crise econômica, repercutindo sobre a captação de órgãos. A Coordenação do Sistema Nacional de Transplantes explicou que, nesse contexto, a queda era esperada. Atividades assistenciais acabam sofrendo algum revés. O transplante é, às vezes, um procedimento de alta complexidade e custo elevado. Intervenções que demandam tecnologia mais avançada, encontram dificuldades de realização por falta de leitos, material, centros cirúrgicos equipados, medicamentos, transporte imediato dos órgãos etc. Desta forma, os hospitais de ponta acabam sobrecarregados e têm de replanejar as atividades.

Graças à sensibilidade dos brasileiros, nosso país possui um razoável sistema público de transplantes. O renal é o mais procurado. A Igreja católica aprova a doação e o transplante de órgãos, tecendo elogios a esse ato humanitário (cfr. Catecismo Católico, nº 2296). João Paulo II manifestou-se favoravelmente, em agosto de 2000: “É preciso suscitar no coração de todos profunda consideração da necessidade da caridade fraterna, de um amor que se possa exprimir na decisão de se tornar doador de órgãos.” Ainda como simples sacerdote, Bento XVI tornou-se doador. Em novembro de 2008, dirigindo-se aos participantes do Congresso Internacional sobre Doação de Órgãos, declarou: “A doação é um ato de solidariedade, que oferece ao próximo a esperança para recomeçar”. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, aos 25 de setembro de 2008, afirmou: “Vemos na doação voluntária um gesto de amor fraterno em favor da vida e da saúde do próximo. É uma prova de solidariedade, grandeza de espírito e nobreza humana”. A sociedade brasileira sentir-se-á grata, se a CNBB dedicar uma campanha da fraternidade, versando sobre esse tema.

Há quase dois anos aguardo um transplante de córnea, que deverá ser realizado brevemente. Avalio o sofrimento de quem necessita de um rim, um coração, um fígado etc. para sobreviver. Tenho vivido apenas com um olho, parcialmente obnubilado pela catarata. Isso me tem causado alguns transtornos, como, vez por outra, derramar vinho e água sobre a toalha do altar, colocar comida no prato emborcado e ter que digitar no computador com caracteres grandes. Ora, isso não é o mais grave. Posso me locomover e tenho certa autonomia. Penso nos irmãos que necessitam de um órgão vital. Peço que rezem, agradecendo a Deus pelo meu doador (ou doadora) e pela equipe médica, que realizará o procedimento oftalmológico. Cabe-me dizer: “In manus tuas, Domine” (Lc 23, 46). Em tuas mãos, Senhor, eu me entrego!

A cultura da impontualidade

Padre João Medeiros Filho

Artigos especializados apontam o estresse como um dos grandes males atuais. Pessoas adoecem, sofrem, podendo ir a óbito, em consequência dessa morbidade. Isso leva parte da população ao uso de ansiolíticos, pois tal estado psíquico também causa depressão. Abordam-se suas diversas causas, dentre elas, o comportamento alheio e o ambiente de tensão, como sendo motivos da irritação e de descontrole interno e externo. Estudiosos indicam ainda a impontualidade como um de seus fatores.

Muitos brasileiros, quando visitam outros países pela primeira vez, especialmente europeus e asiáticos, surpreendem-se com os hábitos de seus habitantes. Ser pontual, por exemplo, é uma condição inseparável e normativa no seu cotidiano. Coincidentemente, são países que possuem indicadores sociais elevados. No Brasil, terra tão pródiga de belezas e riquezas naturais, essa característica parece ser escassa no DNA de seu povo. Não é verificada com frequência. E não está à venda, tampouco encontrada em forma de medicamento. Sendo assim, este predicado deve ser despertado na infância. No entanto, como o fazer, se os próprios pais, por vezes, são carentes dessa qualidade? Requer disciplina do comportamento humano. E enquanto não for incutida nas famílias brasileiras, continuar-se-á sofrendo com a predominância de cidadãos desprovidos de pontualidade e, consequentemente, do respeito ao tempo dos outros.  

O termo compromisso vem do particípio passado do verbo latino “compromittere”, que significa prometer, garantir. Portanto, compromisso é a garantia de uma palavra dada. Do ponto de vista semântico, o descompromisso é sua negação ou desabono. Não se refere apenas às pessoas isoladamente, mas também à sociedade. Os impontuais perdem credibilidade, no tocante à observância de horário. Realmente, poucas pessoas costumam chegar antes da hora aprazada. É comum usar gerúndios e expressões, como: “estou chegando, indo, saindo, estou no trânsito” etc. São termos imprecisos para tentar justificar a impontualidade. Indubitavelmente, encontram-se praticantes e defensores por todos os lados, de diferentes idades e camadas sociais. Em casa, é frequente ter pessoas que não se dispõem a realizar as tarefas de sua competência ou responsabilidade. Em vão, procrastinam e prometem que o farão mais tarde. Crianças e jovens caminham na mesma direção. Parece que seu tempo livre é ilimitado diante das telinhas dos aparelhos eletrônicos, brincando ou trocando mensagens com os amigos, também descompromissados. Em geral, ficam assistindo filmes, quando deveriam fazer os deveres escolares. Ao crescerem, talvez não assumam suas responsabilidades. E, muitas vezes, os pais se questionam: “Onde foi que erramos?” Eis algumas características da geração atual. Lembra-nos o Livro do Eclesiastes (ou Coélet): “Tudo tem o seu tempo. Há um momento oportuno para cada coisa debaixo do céu” (Ecl 3, 1).

Fora de casa, o descompromisso também grassa como uma erva daninha. Não é raro encontrar profissionais autônomos ou prestadores de serviços, que deixam as pessoas desassistidas. “Dão cano”, como se diz na gíria. Quantos já não sofreram ou sofrem com a impontualidade irresponsável? Fazem um trato, sabendo que não conseguirão cumprir. Porém, cabe eximir os profissionais, cuja natureza de suas atividades acaba interferindo em seus horários e não logram êxito em atender na hora marcada. No entanto, vários compensam essa lacuna com dedicação e eficiência em seu atendimento. É preciso ter em mente que a impontualidade, além de desrespeito ao tempo de outrem, gera transtornos em cascata. “A impontualidade é uma das manifestações do egoísmo”, dizia o escritor Orígenes Lessa. Mas, existem muitos brasileiros, modelos de pontualidade, como o Cardeal Eugênio Sales, que nunca se atrasava nas suas aulas, eventos ou cerimônias.

Na vida pública, um exemplo negativo é o de autoridades que, ignorando o tempo dos outros, costumam chegar atrasadas nas solenidades. E o fazem, às vezes, por conveniência. Equivocadamente, para certas pessoas, não observar horários é demonstração de status e poder. Dão a impressão de que são donos do tempo do próximo. É necessário mudar esse hábito, transmitindo e consolidando a cultura da pontualidade. Já aconselhava o apóstolo Paulo: Tudo, porém, seja feito como convém, na hora certa e em boa ordem” (1Cor 14, 40).

A nossa vulnerabilidade cotidiana

Padre João Medeiros Filho

Em tempos idos, as portas de nossas casas ficavamsempre abertas. As visitas, ao chegarem, batiam palmas e gritavam: “Ô de casa”! Nosso patrimônio era respeitado.Os anos vão passando, as entradas das residências foramsendo fechadas. Muros começaram a ser construídos. Anossa defesa vai se tornando cada vez mais frágil. Nada era o bastante para afastar os invasores do alheio. Chegoua época das grades e da cerca elétrica. Porém, não se conseguiu afastar a sensação de medo e insegurança.Passaram a instalar câmeras, equipamentos de alarme.Surgiram as empresas de vigilância. Tudo na tentativa de nos proteger. Mas, os que furtam e roubam não se contentam somente com as coisas materiais. Iniciou-se a fase de ataque a outros bens, inclusive à privacidade dos cidadãos. Invasão, vazamentos, hackers, criptografia, instagram, whatsapp, telegrama, aplicativos de mensagens etc. são palavras comuns dos noticiários, as quais assustammuita gente. Antes, ouvia-se falar em vírus, imaginadoscomo agentes microscópicos, contaminando os computadores. Agora o problema está em outrospredadores cibernéticos. Entre seus alvos prediletos estão os celulares, esses aparelhinhos tecnológicos que viraram “pets” digitais, carregados para todos os lugares, na mão, na bolsa, no bolso traseiro, com capinhas originais echamativas. Por vezes, revelam-se voluntariosos com os seus donos. Parecem saber que nossa vida e valores estão ali. Lembram-nos a frase do Evangelho: “Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6, 21).

Atualmente, esse assunto fervilha na mente de várias pessoas. Não é preciso ser autoridade ou celebridade para sofrer invasão. Há gente que se diverte, procurandoenganar os outros. Os celulares são uma ferramenta importante, no entanto, uma ingente dor de cabeça. Até motivo de divórcio têm sido. Sempre mais sofisticados, deixaram de ser apenas telefones e se transformam em banco, arquivo, agenda, filmadora etc. O leitor já tentou folhear algum dos manuais multilíngues dos smartphones?As orientações para nós, pobres mortais (exceto para os que mexem com isso), assemelham-se a hieróglifos. É uma luta para entender os comandos e termos técnicos. Trata-se de uma nova língua aborígene ou extraterrestre para os leigos, especialmente aqueles que já ultrapassaram meio século de existência. É complicado e angustiante, quando osexpertstentam nos ensinar o que se tem de fazer. Dizem ser extremamente fácil e ficam irritados com a nossa lentidão frente aos seus dedos ágeis, manuseando os dispositivos dos aparelhos. Vem a ser mesmo humilhante, quando uma criança de cinco ou seis anos achega-se a nós e sentencia: “Vovô, titio, não é assim não. Essa semana nosso celular travou e ficamos quaseuma hora tentando pôr novamente o bicho para funcionar.

Hoje, o pesadelo maior gira em torno dos hackers:clonagem de cartões de crédito ou débito, invasão deaplicativos bancários e dados profissionais, pessoais, alguns reservados. Os larápios e corsários atuais são apátridas, estão disseminados justamente para não serem localizados. Há quem seja contratado para o serviço sujo de enganar os incautos com páginas falsas, ofertas mirabolantes, e-mails maldosos, que se abertos, captamdados e senhas dos smartphones e computadores. quem vendaa peso de ouro – os frutos de sua rapinagem. E assim vem crescendo, de forma maciça, a divulgação de “fake news”, o massacre ou a defesa ardorosa de pessoas e poderes nas redes sociais.

Tudo virou território de ninguém. Está cada dia mais difícil e não se sabe a quem recorrer. Faz-nos relembrarpriscas eras, quando se dizia: “Vá se queixar ao bispo”. Sobre a nossa vulnerabilidade começam a surgir leis, que só funcionam, depois do leite derramado e das vidas e conversas espalhadas pelo vento virtual, que ninguém consegue ensacar. Uma mensagem ingênua pode ser entendida, de qualquer forma, por alguém inescrupuloso,contaminado pelo desejo de vingança ou ódio e sedento de chantagem. Quando haverá uma blindagem realmenteinvulnerável e efetiva para os nossos celulares? É preciso rezar bastante e ter muita fé, como o salmista: “Confio em meu Deus. Não temerei. O que fará contra mim um ser de carne” (Sl 56/55, 5).