Também com os infantis

Estes dias, lendo um artigo no caderno BBC Culture – “Roald Dahl: the fierce debate over rewriting children’s classics”, por Neil Armstrong –, topei com mais um caso, seguindo a moda dos últimos tempos, de revisão da linguagem de clássicos da literatura para suas novas edições. Desta feita, a coisa atingiu a obra do britânico Roald Dahl (1916-1990), que, para quem não sabe, é autor de clássicos infantis como “Gremlins” (“The Gremlins”, 1943), “A fantástica fábrica de chocolate” (“Charlie and the Chocolate Factory”, 1964), “As bruxas” (“The Witches”, 1983), “Matilda” (“Mathilda”, 1988) e por aí vai. Não preciso dizer que a obra de Dahl foi bater no teatro, no cinema, na TV, com enorme sucesso. Vocês reconhecerão pelos títulos.
O “caso” Dahl tem causado forte debate, como esperado, alguns afirmando tratar-se de mais um episódio de infame censura. Segundo o autor de “Roald Dahl: the fierce debate over rewriting children’s classics”, “Sir Salman Rushdie falou sobre a coisa. O Primeiro-Ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, idem. The New York Times publicou um artigo debatendo os prós e os contras. Steven Spielberg deu sua opinião. Até a Rainha pareceu se referir a isso [espero que ainda em vida]. Quando The Telegraph revelou, no início do ano, que centenas de mudanças foram feitas no texto original dos romances infantis de Roald Dahl para as suas últimas edições, a notícia causou grande rebuliço. O jornal descobriu que Charlie and the Chocolate Factory, The Witches, Mathilda e mais de uma dúzia de outros títulos tiveram palavras relacionadas a peso, altura, saúde mental, sexo e cor da pele removidas. Algumas das mudanças pareceram desconcertantes”.
Caso bem interessante é o de “O BGA: o bom gigante amigo” (“The BFG”, 1982). Segundo o artigo da BBC Culture, “Você ficou branco como um lençol!” virou “Você ficou imóvel como uma estátua!” e o BGA não pode mais usar uma capa “preta”. Já os “Homens-Nuvem”, de “James e o pêssego gigante” (“James and the Giant Peach”, 1961), viraram “Pessoas-Nuvem”. “Tia Esponja, a gorda, tropeçou em uma caixa”, nesse mesmo romance, passou a ser “Tia Esponja tropeçou em uma caixa”. Na verdade, a palavra “gordo” foi expurgada de todos os livros. O pior: até trechos não escritos por Dahl foram inseridos nos romances. Em “As bruxas”, uma referência ao fato de que as bruxas são carecas e usam perucas foi acompanhada pela seguinte observação: “Existem muitas outras razões pelas quais as mulheres podem usar perucas e certamente não há nada de errado com isso”.
O grande Salman Rushdie, já citado acima, descreveu as mudanças como “absurda censura”. Já um porta-voz do Primeiro-Ministro do Reino Unido disse: “É importante que as obras de literatura, obras de ficção, sejam preservadas e não retocadas”. Rushdie tem dado a vida, literalmente, pela liberdade de expressão na literatura. Portanto, tem “lugar de fala” no tema, como gostam de dizer os politicamente queridinhos de hoje.
Essas coisas estão se sucedendo, essas “harmonizações”, para usar de outra palavra da moda. Outro dia foi com Bond, James Bond. O mesmo se deu com as investigações de Hercule Poirot e Miss Marple, os detetives da minha amiga Agatha Christie. Trata-se de um tema polêmico, é verdade. Já dei minha opinião em outras oportunidades. E o meu elogio aqui a Salman Rushdie dá bem a entender o que penso.
No mais, embora essa “harmonização” da linguagem de clássicos da literatura seja moda agora, fui alertado, pelo artigo da BBC Culture, de que “a reescrita de livros não é novidade”. Diz-se que Charles Dickens ficou tão atingido pelas repreensões magoadas de um leitor judeu sobre sua representação do vilão Fagin, que interrompeu já na metade a reimpressão de “Oliver Twist” e removeu muitas das referências a Fagin como “o judeu”. Justo, o próprio autor Dickens pode rescrever (em vida, suponho) o que ele bem entender. Mas fui também alertado de algo deveras grave: um tal Thomas Bowdler – mui sensível e zeloso leitor do século XIX, cujo sobrenome até virou, em inglês, verbo significando “expurgar ou modificar partes de um livro consideradas ofensivas” – chegou a rescrever Shakespeare, para remover, entre outras coisas, quaisquer “insinuações sexuais” nas peças deste. “Ganhamos” um Shakespeare “família”.
Aqui entre nós, rescrever Shakespeare não é apenas absurda censura, é sacrilégio mesmo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Da Rússia, com terror

Marcelo Alves Dias de Souza

O título desta crônica é uma corruptela do título em inglês de um romance do britânico Ian Fleming (1908-1964), “From Russia, with Love” (1957), protagonizado pelo mui famoso agente secreto 007, o Bond, James Bond. Todavia, a inspiração para este riscado vem da história de um outro escritor e de um outro espião ficcional – Yulian Semyonov (1931-1993) e Stierlitz, respectivamente –, russos/soviéticos, dos quais, confesso, nunca tinha ouvido falar, até ler um texto no The Sunday Times Culture (de 9 de julho de 2023), de Mikhail Zygar, intitulado “The Soviet James Bond Who Shaped Putin” (algo como “O James Bond soviético que inspirou/formou Putin”).

A história de Semyonov e de seu espião Stierlitz é realmente curiosíssima.

Se durante a Guerra Fria, nós do Ocidente tínhamos os britânicos Ian Fleming, Graham Greene (1904-1991) e John le Carré (1931-2020), pelas bandas da então União Soviética eles tinham o tal Yulian Semyonov, cujos livros ali vendiam horrores (e desculpem o trocadilho). O seu Max Otto von Stierlitz, com esse nome alemão pomposo, era, não coincidentemente, um espião soviético infiltrado nas hostes nazistas. O seu livro/thriller de maior sucesso foi “Seventeen Moments of Spring” (“Семнадцать мгновений весны”, no original russo), de 1969. Em 1973, esse título virou série de TV de maior sucesso ainda. A vida parava para assisti-la, mulheres e homens, velhos e jovens, tipo derradeiro capítulo das antigas novelas da Globo. Outras adaptações vieram. Semyonov e sobretudo o espião Stierlitz, desde então, viraram mitos na Mãe Rússia.   

“Mas por que os livros de Semyonov exerceram uma influência tão poderosa nas mentes influenciáveis?”, indaga o autor de “The Soviet James Bond Who Shaped Putin”. Para além da qualidade literária em si, “embora os enredos sejam fictícios, eles são repletos de pessoas reais e ambientados em cenários históricos. Isso deu um toque autêntico a Stierlitz e suas aventuras, deixando os leitores tão seduzidos que se lembravam de passagens da história assim como contada por Semyonov”. Ademais, Semyonov colaborou com a KGB ao longo dos anos. Foi um chamado “agente de influência”. Seus textos eram muito populares no meio do serviço secreto soviético, sobretudo no tempo de Yuri Andropov (1914-1984), chefe da KGB por 15 anos e, em seguida, o líder da União Soviética, como Secretário-geral do Partido Comunista. Andropov sugeriu enredos para Semyonov e deu carta branca para muitas coisas. E mais recentemente, já na era Boris Yeltsin (1931-2007), o espião Stierlitz venceu uma pesquisa sobre quem o público gostaria, dentre as personagens do cinema, de ver como presidente da Rússia. Isso é muito mais do que muito.

É nesse contexto que entra Vladimir Putin (1952-). Segundo o autor de “The Soviet James Bond Who Shaped Putin”, o autocrata russo, quando estudante, tinha um herói, o espião soviético Stierlitz: “as aventuras de guerra do espião fictício Stierlitz encantaram uma nação na era da Guerra Fria – incluindo o jovem que subiria na hierarquia da KGB para governar a Rússia. Stierlitz inspirou Vladimir Putin a ingressar na KGB”. E mais: as aventuras de Semyonov/Stierlitz “plantaram ideias na mente de Putin que se transformaram nos mitos históricos que o líder russo usa para justificar sua guerra contra a Ucrânia”. Um romance em especial deve ser referido, “Third Card” (“Третья карта”), de 1973: “A ação se dá em 1941, Stierlitz lutando contra nacionalistas ucranianos que colaboram com Hitler. Foi a partir desse romance que Putin soube de Stepan Bandera [1909-1959], o divisivo e controverso líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) durante a Segunda Guerra Mundial”. De fato, Bandera liderou uma campanha por uma Ucrânia independente da URSS e viu os nazistas como aliados nessa luta. Mas Hitler não apoiava uma Ucrânia independente e Bandera acabou em um campo de concentração. Todavia, esses anos de guerra são contados em “Third Card” de forma diversa: “Bandera é retratado como um sádico criminoso, um agente pago por seus mestres nazistas. (…). Hoje a propaganda russa ainda se refere a ‘banderitas’, usando o termo de forma intercambiável com ‘fascista’. É usado repetidamente por Putin e seus apoiadores, que pretendem pintar o governo da Ucrânia como um bando ilegal de usurpadores fascistas. O mito de Bandera sustentou a justificativa de Putin para a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 como ‘desnazificação’”.

Curioso, se não fosse imensamente trágico.

Bom, andei catucando a Internet, mas não consegui achar edições de Semyonov em português (por isso a citação dos títulos em inglês). Vou continuar procurando, para ver se leio algo no nosso idioma. Sem correr o risco de compartilhar as ideias de Putin ou de autocratas assemelhados, acredito. Ainda sei diferenciar a realidade da ficção.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A solução de Antígona

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República – Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Como dito no nosso último encontro, quando já tratamos de Sófocles (497-406 a.C.) e da sua “Antígona” (441 a.C.), nesta peça, em meio à guerra entre Tebas e Argos, a personagem-título, filha do incesto entre Édipo e Jocasta, opõe-se à proibição do rei de Tebas, Creonte, de enterrar o seu irmão Polinices, considerado um traidor da pólis tebana. Alegando um direito natural, ela dá exéquias ao irmão. E é condenada à morte, “enterrada” viva em uma caverna/túmulo. A partir daí, justa ou injustamente, mil tragédias se sucedem, até que se cumpram os “destinos” de todos.

Segundo registra Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto, no texto “O teatro e a história do direito: a experiência da tragédia grega”, constante do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas” (Livraria do Advogado Editora, 2008): “Não é de se surpreender que a decisão em torno do que é justo ou injusto esteja no centro da trama – e, principalmente, constitua o maior problema a ser resolvido no palco, conforme as opções adotadas pelos personagens”. O citado autor chama atenção para “o diálogo entre Antígona e Creonte acerca do sepultamento conforme os ritos da religião da pólis tebana. Creonte afirma que Polinices atentou contra a cidade, portanto não pode ser sepultado conforme o ritual praticado na pólis. Antígona replica, lembrando que o poder do soberano – rei da cidade – encontra limites. O diálogo se inicia com o debate em torno dessa questão, pois Antígona desobedecera ao comando de Creonte. A longa digressão de Antígona acerca da Justiça é uma das passagens mais marcantes da literatura antiga”. Bela página, é vero.

Vejamos esse e outros trechos da peça, na tradução de Millôr Fernandes (Editora Paz e Terra, 1996), que militam em favor da solução de Antígona para o dilema entre o direito natural e o direito positivo: “Dizem que a justiça é lenta, mas não existe nada mais veloz do que a injustiça”; “A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram”; “Sábio é quem não se envergonha de aceitar uma verdade nova e mais sábio é o que a aceita sem hesitação. (…). Domina a tua cólera e cede no que é justo”; “Nenhum Estado pertence a um homem só. A cidade então não é de quem governa? Pensando assim serias um bom governante, mas de um deserto”; “Não deixem que meu coração fraqueje vendo a destruição que causei por não reconhecer que havia leis antes de mim”.

É verdade que a poesia de “Antígona” nos faz simpatizar com a personagem-título, aquela sobre quem, por ser filha de Édipo, Zeus não poupou desgraça alguma. Invoco novamente as palavras de Cristiano Pinto: “Esses versos assumiram uma dimensão simbólica única na história da civilização. Escritores e filósofos como Goethe, Hölderin, Hegel, Brecht, Heidegger, Lacan e Derrida retomaram, em diferentes épocas e contextos, o conflito entre Antígona e Creonte como exemplo vívido do dilema que norteia a busca pela justiça e pela vida em sociedade. A trama foi ainda reconfigurada e adaptada em certos períodos históricos. Consoante explicação de Carpeaux, Antígona ‘anda pelos séculos, sombra comovente, e em tempos de tirania volta ao palco para consolar-nos, fortalecer-nos pelo exemplo’”.

Todavia, vou fazer um ligeiro contraponto à solução de Antígona. Faço com base em John Finnis, autor do livro “Natural Law and Natural Rights” (1980), a quem devemos a revitalização do jusnaturalismo no mundo anglo-saxão. Um dos aspectos mais intrigantes na filosofia de Finnis trata das condutas que devem ter as autoridades e os cidadãos em relação às leis consideradas “imorais” ou “injustas”. As autoridades, segundo Finnis, devem corrigir ou mesmo invalidar tais normas. Mas, com os cidadãos, é diferente. Em regra, eles devem cumprir as normais legais, mesmo que supostamente “injustas”, sob pena de descumprimento da própria rule of law e do enfraquecimento/deterioração do sistema legal como um todo. Só em “circunstâncias extremas”, quando a própria autoridade pública age injusta e propositalmente em desfavor do cidadão, uma desobediência civil seria permitida e mesmo recomendada. Saber que circunstâncias extremas são essas, de que lado da linha estamos pisando, eis o problema, aqui e na Tebas de “Antígona”.

Bom, se hoje cometemos erros na aplicação do direito, na Tebas de então, idem. “Um erro traz um erro”. Tragédias se sucedem. Tebas morre. Afinal, “desafiado o destino, tudo é destino”.  

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

O dilema de Antígona

Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Sófocles (497-406 a.C.) compõe – ao lado de Ésquilo e Eurípedes – a tríade dos famosos dramaturgos gregos, cujas tragédias (no sentido de gênero teatral/dramático, deixo claro), pelo menos parte delas, chegaram até nós. “Antígona” (441 a.C.) é, provavelmente, a sua peça mais famosa. Para os estudiosos do direito, ela possui aspectos interessantíssimos.

Eis o contexto e parte da trama de “Antígona” (buscando não fazer spoiler, claro): a coisa se passa em Tebas, então em guerra com Argos. Antígona, a personagem-título, é filha da relação incestuosa entre Édipo e Jocasta, assim como o são seus irmãos Etéocles e Polinices, mortos na guerra. Creonte, então o rei de Tebas, proíbe o enterro de Polinices, por considerá-lo um traidor. A isso, Antígona opõe a lei divina ou natural de que todo homem merece sepultamento. A que lei se deve obedecer? Antígona viola a lei positiva, determinada pelo rei de Tebas, e dá exéquias ao irmão Polinices. Por isso, é condenada à morte “enterrada” viva em uma caverna/túmulo. A partir daí, mais mil tragédias recaem sobre todos. Afinal, como dito no meu pequenino exemplar de “Antígona” (Editora Paz e Terra, 1996), com tradução de Millôr Fernandes, “um erro traz um erro. Desafiado o destino, depois tudo é destino”.

A tragédia grega – e a força metafórica que ela carrega em si – é palco para encenação das mais variadas contradições e dilemas humanos: sobre a nossa própria natureza, sobre o amor e a amizade, sobre a religião e a moral, sobre a política e o poder. E, no caso de “Antígona”, mais especificamente, é cenário para se debater uma milenar dicotomia/dilema do direito, entre a “lei positiva”, representada pelos editos do rei Creonte, e a “lei natural”, defendida pela trágica heroína da trama. Uma dicotomia entre o jusnaturalismo e a face mais visível do positivismo, sobre onde repousa a legitimidade do direito.

Na verdade, a concepção de direito natural é antiquíssima e, através dos tempos, é representada, entre outros, por pensadores como Aristóteles, Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Hugo Grotius, John Locke e Rousseau; recentemente, no século XX, podem ser lembrados os nomes de Del Vecchio, Lon Fuller, Ronald Dworkin e John Finnis. Ela quer significar, em linhas gerais e respeitadas as muitas variantes, a existência de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado. Assim como a maioria das escolas filosóficas, o jusnaturalismo tem seguidores que vão desde ardorosos apóstolos, como São Tomás de Aquino, que desenvolveu uma verdadeira tipologia de direitos baseada na relação entre os seres humanos e o criador, a moderados defensores, como Leon Fuller, que apenas afirma haver princípios preexistentes ao direito positivo e que devem ser considerados em qualquer sistema jurídico.

Já o positivismo jurídico aqui deve ser entendido como uma contraposição à ideia de direito natural. O direito é positivo no sentido de que é criação do homem. Algo como “o comando do soberano apoiado por uma sanção”, como certa vez definiu John Austin. E se os partidários do jusnaturalismo se ocupam do fundamento e da legitimação do direito positivo, baseando sua validade no respeito a princípios e valores absolutos, aos positivistas interessa tão só a averiguação dos pressupostos lógico-formais de sua vigência. Os ideais positivistas, seguindo a lição de H. L. A. Hart, podem ser assim sintetizados: a) o direito identifica-se com mandatos; b) não há, necessariamente, um nexo entre as esferas da moral e do direito; c) a análise do direito deve ser isolada das reflexões de ordem sociológica, ética, econômica e teleológica; d) o caráter lógico do sistema jurídico faz com que as decisões judiciais possam ser alcançadas independentemente de apoio em outros valores como, por exemplo, éticos ou políticos; e) os juízos morais não se assemelham aos juízos a respeito de fatos.

E como esse dilema é enfrentado poeticamente em “Antígona”? Vejamos alguns trechos da peça, claro. Mas apenas na nossa próxima conversa… Paciência. Isso não é uma tragédia.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Das pessoas de bem

Galeria de Membros — MPF 5ª Região

O conto/novela “Bola de Sebo” (“Boule de Suif”, 1880), do francês Guy de Maupassant (1850-1893), é considerado uma verdadeira obra-prima. Para alguns, o melhor conto já escrito. Está entre os melhores, seguramente. E o seu autor é, na companhia de Edgar Allan Poe (1809-1849), Anton Tchekhov (1860-1904), O. Henry (1862-1910) e Jorge Luis Borges (1899-1986), para citar os mais badalados, um dos maiores contistas de todos os tempos.

“Bola de Sebo” foi originalmente publicado em 1880, como parte da coleção “Les Soirées de Médan”, uma publicação de estilo literário naturalista, versando especialmente sobre a Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871. A trama se passa no ano de 1870. Em resumo, um pequeno grupo – formado de pequenos e grandes burgueses, de nobres, de religiosos etc. – decide abandonar a cidade de Rouen, recém-ocupada pelo exército prussiano. Mas em meio à turma de “virtuosos” está Bola de Sebo, a prostituta de bom coração Elisabeth Rousset. O grupo, como um todo, é um microcosmo da sociedade francesa da época. Na penosa viagem, em princípio, Bola de Sebo é esnobada, para não dizer humilhada, pelos “representantes da virtude”. Mas todos têm fome, sendo que apenas Bola de Sebo trouxe alimento, que ela compartilha com os demais passageiros. Eles aceitam, para depois novamente rejeitar a benfeitora. A caravana é detida pelo exército inimigo. Um dos oficiais prussianos apaixona-se por Bola de Sebo. Os virtuosos passam a implorar a Bola de Sebo para que durma com o oficial apaixonado. Após a inicial recusa de Bola de Sebo, ela é convencida pelos companheiros de viagem a ceder às investidas do oficial. Bola de Sebo é uma heroína, e a caravana é liberada. Mas tão logo eles continuam a viagem, os “representantes da virtude”, que haviam implorado a ajuda da boa prostituta, voltam a ignorar e humilhar Bola de Sebo – até mesmo comem novas provisões, recém-adquiridas, sem de volta compartilhar com a outrora benfeitora –, que soluça lágrimas de desespero.

“Bola de Sebo”, por seus próprios méritos, ganhou o mundo. Inspirou parcialmente, segundo reconhece o seu diretor, John Ford (1894-1973), o faroeste “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”, 1939), obra-prima do cinema. E é ainda hoje cantada entre nós na composição “Geni e o Zepelim”, do nosso Chico Buarque (1944-). Da Geni, acredito, todos vão se lembrar.

O conto/novela denuncia a ingratidão e a hipocrisia do ser humano. Mas, dia desses, encontrei uma definição quase perfeita, que corta a nossa própria carne, para “Bola de Sebo”. Consta de bela página do livro “A biblioteca e seus habitantes” (Achiamé/Fundação José Augusto, 1982), do mais que nosso Américo de Oliveira Costa (1910-1996): “De Boule de Suif, aliás, se assinalará que são ‘mil e quinhentas linhas sobre a canalhice das pessoas de bem’”.

Sempre desconfiei dos homens (e das mulheres, por que não?) que se dizem “de bem”. Muitas vezes arrotam virtudes que não possuem ou não praticam. Exigem dos outros padrões de comportamento, quando eles mesmos, às escondidas, não os adotam ou os extrapolam. E, se admitem a prática de alguns “pecados”, são os seus pecados, que eles acham naturais ou, ao menos, veniais; já os pecados dos outros são imperdoáveis, capitais. Se fôssemos falar aqui da hipocrisia direta ou indireta quanto ao comportamento sexual das “pessoas de bem”, “mil e quinhentas linhas” não seriam suficientes, a não ser para alguém com o talento de síntese de um Guy de Maupassant.

Todos nós cometemos pecados, mas esses moralistas…

Na verdade, o que temos é uma multidão de falsos moralistas. E aqui solto uma outra frase cortante, que até hoje não sei se é de H. L. Mencken (1880-1956), do nosso Millôr Fernandes (1923-2012) ou minha mesmo: “a única diferença entre um moralista e um falso moralista é que o primeiro ainda não foi desmascarado”. As tais “pessoas de bem” são capazes de escrever – e deveras – milhares de linhas, até de páginas, de própria e pura canalhice.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Categorizando

 

Sigamos na trilha aberta na semana passada para usufruir mais um pouco das sugestões do Goodreads – aquele que se intitula “o maior site do mundo para leitores e recomendações de livros” – sobre os queridíssimos romances de suspense e mistério.

Desta feita, façamos uso de uma outra publicação do Goodreads, que também me chegou via e-mail: “96 Mystery and Thriller Recommendations by Mood and Setting”. Nessa publicação talvez o mais legal seja a categorização dos títulos de uma forma muito curiosa, fugindo do “lugar-comum” (aqui já vai um trocadilho). Afinal, “uma das coisas divertidas” que os criadores do site afirmam haver descoberto ao longo dos anos “é que existem muitas, muitas, muitas maneiras de embaralhar e categorizar livros”. As categorizações tradicionais são úteis, mas se você se enfronha um pouco mais nelas, novas “conexões interessantes naturalmente vão se apresentando”.

O Goodreads nos mostra algumas dessas conexões, a partir de uma curiosa classificação dos livros em binômios – aliás, um tipo de sistematização muito comum na ciência jurídica, com coisas como direito objetivo v. direito subjetivo, direito público v. direito privado, direito penal v. direito civil etc. Dos binômios apresentados pelo site, eis os que eu achei mais interessantes: mistérios/suspense no trabalho (work) v. no lazer (play); mistérios históricos (historical) v. no futuro (future); e mistérios em igrejas (church) v. mistérios no governo (state).

Vou citar/recomendar alguns desses títulos, seja porque já os li, seja porque já assisti a adaptações deles para o cinema/TV, ou, melhor ainda, porque irão entrar na minha lista de mistérios a ser desvendados num futuro mais do que próximo.

Na categoria mistérios no trabalho, seleciono “The Firm” (1991), de John Grisham (1955-), que foi o primeiro best-seller do autor. Foi bater no cinema em 1993, dirigido por Sydney Pollack, com um elenco do balacobaco: Tom Cruise, a belezinha Jeanne Tripplehorn, Gene Hackman, Ed Harris, Holly Hunter e por aí vai. E sugiro também “Murder Must Advertise” (1955), um romance detetivesco inglês clássico, de Dorothy L. Sayers (1893-1957), talvez obra-prima da autora, que é considerada uma das rivais de Agatha Christie (e isso basta para mostrar sua grandeza). Doutra banda, como suspense no lazer, vou citar “The Talented Mr. Ripley” (1955), de outra mui talentosa “dama do crime”, Patricia Highsmith (1921-1995). E aqui temos também uma adaptação famosa, de 1999, com Matt Damon, Jude Law, Philip Seymour Hoffman e as belíssimas Gwyneth Paltrow e Cate Blanchett. Acho que foi desse filme que surgiu minha paixão pela Gwyneth.

Já na categoria de mistérios históricos, vou de “The Bangalore Detectives Club” (2022), de Harini Nagendra (1972-). Este livro faz “o relógio voltar um século e é um deleite para os amantes de mistérios históricos que procuram uma nova série para saborear (ou devorar)”, é afirmado no The New York Times Book Review. Aqui se misturam a história e o exotismo da Índia. E quem não gosta dessa mistura? Já quanto a crimes no futuro – sim, é possível misturar romance policial com ficção científica –, seleciono “The Paradox Hotel” (2022), de Rob Hart (1982-). O Goodreads resume o livro: “Um crime impossível. Um detetive à beira da loucura. O futuro da viagem no tempo em jogo”. Bom, gosto de hotéis, gosto de desvelar paradoxos e, sobretudo, tenho fé de um dia voltar ao tempo em que “festejavam o dia dos meus anos”.

Agora eu chego na minha praia (ficcional, que fique claro): crimes em igrejas. Esse cenário é sensacional. E, da lista do Goodreads – pondo de lado “Il nome della rosa” (1980), de Umberto Eco (1932-2006), que é hors-concours –, cito “Father Brown: The Complete Collection” (1935), do enorme G.K. Chesterton (1874-1936) e “A Morbid Taste for Bones” (1977), de Ellis Peters, pseudônimo de Edith Pargeter (1913-1995), a primeira estória/investigação do Brother Cadfael. Essas estórias de padre são sinistras. Já como mistério no “governo”, vou de “Tinker, Tailor, Soldier, Spy” (1974), de John le Carré (1931-2000). Quem não gosta de uma boa espionagem? Ainda mais se imaginada por um espião, o próprio le Carré, que sabia escrever muito bem.

Embora a categorização do Goodreads seja sui generis, ela tem de tudo, como vocês podem ver. Clássicos do gênero e títulos recentes. Autores novos, ainda pouco conhecidos, mas também os suspeitos habituais – Chesterton, Sayers, le Carré, Highsmith, Grisham. Por mim, parodiando as demais classificações da Goodreads, afirmo que vocês podem ler os livros sugeridos tanto num quarto fechado como ao ar livre, no frio ou no calor, numa cidadezinha pitoresca ou numa grande metrópole, no ar ou no mar, embora eu recomende mesmo ler em terra redonda, boa e firme.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Sorte minha

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Fazia algum tempo que não recebia uma mensagem do Goodreads. Para quem não conhece o dito cujo, criado em 2007, ele se intitula “o maior site do mundo para leitores e recomendações de livros”, com a missão específica de “ajudar as pessoas a encontrar e compartilhar os livros que amam”. Segundo seu fundador, o Goodreads “é um lugar onde você pode ver o que seus amigos estão lendo e vice-versa. Você pode criar ‘estantes’ para organizar o que leu (ou quer ler). Você pode reciprocamente comentar as avaliações dos demais usuários. Você pode encontrar seu próximo livro favorito. E nessa jornada com seus amigos você pode explorar novos territórios, reunir informações e expandir sua mente”. Um pouco autoajuda esse final, mas tá joia.

            Fiquei felicíssimo com a mensagem, sobretudo porque ela trazia consigo uma lista de 80 recentes “romances de mistério”, com as devidas recomendações, para que o usuário/leitor possa se enfronhar em novas aventuras do tipo: “você está procurando os romances de mistério mais populares dos últimos três anos? Oitenta deles? Em ordem? Temos uma coincidência extraordinária a relatar. Reunimos abaixo os novos mistérios e thrillers mais populares em circulação recente, conforme determinado pelo que seus colegas Goodreads recomendaram e adicionaram às suas prateleiras. Os livros aqui são classificados como os mais populares e cada um tem uma classificação média geral de 3,5 estrelas ou melhor. Normalmente melhor”.

Realmente, a proposta era/é instigante. E caí para dentro da lista.

Todavia, qual foi a minha surpresa ao descobrir que, dessa lista de mistérios do Goodreads, tidos como os mais badalados dos últimos três anos, pouquíssimos eu conhecia ou mesmo tinha ouvido falar. E olhem que a lista era/é bem diversificada: os tradicionais whodunits, cozy mysteries da moda, thrillers, cold cases, com títulos de escritores do momento e dos famosos ases da turma (tipo Stephen King, James Patterson, Harlan Coben). Conhecia talvez uma meia dúzia: “The Thursday Murder Club” (por Richard Osman), “The Cartographers” (Peng Shepherd), “The Guest List” (Lucy Foley), “The Woman in the Library” (Sulari Gentill), “The Boy from the Woods” (Harlan Coben) e “State of Terror” (Louise Penny e Hillary Rodham Clinton, a outrora primeira-dama e Secretária de Estado dos EUA). Dois deles porque tinham me chamado a atenção título e enredo, que associei à minha amiga Agatha Christie, um deles em razão da autora estadista famosa e os outros porque havia topado com eles (até nas traduções em português) em livrarias daqui e d’alhures.

Por falar em Agatha Christie, devo reconhecer, resignado, que a minha praia são mesmo os clássicos – além da minha amiga, Conan Doyle, C.K. Chesterton, Ian Fleming, Georges Simenon, Raymond Chandler, Dashiell Hammett e por aí vai –, que, graças às venturas da vida, já tive a oportunidade de ler e apreciar.  

Fiquei decepcionado comigo mesmo por essa falta de familiaridade com “contemporâneos”. Quase triste. Até que me lembrei de um “slide” do nosso Américo de Oliveira Costa no seu maravilhoso “A biblioteca e seus habitantes” (Achiamé/Fundação José Augusto, 1982): “‘Homem feliz que ainda tem alguma coisa de Eça para ler’, disse, um dia, Afonso Arinos a Tristão de Athayde, ante a informação negativa deste à pergunta se lera certo volume do autor de Os Maias. Carta de Claudel a Gide (1910): ‘Você é feliz por não haver ainda lido as Mémoires d’Outre-Tombe, tendo por isso, em reserva, uma grande satisfação’. O que é uma paralela à pergunta de Eduardo Prado a Batista Pereira: ‘Já leu as Mémoires d’Outre-Tombe?’. E como a resposta não fosse afirmativa, Prado exclamaria como Arinos e Claudel: ‘Que homem feliz! Ainda pode ter esse prazer de ler pela primeira vez!’”.

Pensando bem, tudo sorte minha. Ainda tenho todos esses mistérios para desvendar, todas essas aventuras para sonhar. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL