Ética jurídica e literatura: uma boa mistura

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República – Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

              Havendo proposto, na semana passada, o estudo interdisciplinar da ética jurídica com a literatura/cinema, venho hoje fazer uma defesa dessa curiosa mistura. Especificamente, pretendo responder à dúvida básica que deve estar na cabeça de vocês: por que os profissionais do direito devem estudar ética jurídica através da literatura/cinema? Há alguma utilidade nisso?

Sem titubear, minha resposta é sim. E por vários motivos.

            Antes de mais nada, o contato com a boa literatura é fundamental para o aprimoramento do discurso jurídico, sobretudo a capacidade de escrever dos profissionais do direito, incluindo aqui bacharelandos, advogados, promotores, juízes, legisladores e por aí vai. Para escrever bem, é preciso, ou pelo menos muito recomendável, ler bem. Isso sem falar que ler boa literatura é algo muito – muitíssimo mesmo – gostoso (certamente bem mais que os enfadonhos tratados jurídicos). Aqui já ganhamos duplamente.   

            Ademais, já sendo mais específico, a literatura/cinema testemunha a visão sobre o mundo jurídico existente em determinada sociedade em certa época (embora marcada, em boa medida, pela ótica particular do autor da obra estudada). Esse testemunho é bem mais acessível/compreensível aos leitores (com ou sem formação jurídica), para fins de reconstrução da imagem que a sociedade tem de seus atores/profissionais do direito, do que os áridos estudos jurídico-sociológicos de caráter estritamente científico. Mesmo em se tratando de obras estrangeiras, podemos nos valer da análise comparativa para conhecer melhor a imagem que a literatura e a sociedade brasileiras fazem da nossa atividade jurídica e dos seus profissionais. E vale a pena estudar ética jurídica através da literatura/cinema porque a (re)construção ficcional dos operadores jurídicos pode ser um incentivo para que os estudantes e os profissionais do direito reais (juízes, promotores, advogados, policiais etc.) repensem – e, por consequência, reconstruam com aprimoramento – os seus papéis e as suas imagens na sociedade.

            Doutra banda, na literatura/cinema, há inúmeras estórias que enfrentam e resolvem eticamente problemas jurídicos. Os grandes autores/diretores relatando a casuística da vida forense, dos escritórios de advocacia ou das prisões, em linguagem mais elegante e acessível do que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente excelentes professores de direito. Aliás, vale a pena estudar o direito/ética jurídica através da literatura/cinema porque, na medida em que haja uma correspondência entre a obra estudada e a realidade do mundo jurídico (o que nem sempre se dá, já que estamos falando de obras de ficção), o estudo do direito, partindo da casuística narrada, torna-se menos abstrato.

            Outrossim, a ficção, ao mesmo tempo em que reproduz (além da concepção particular de seu autor) o direito posto e o imaginário popular acerca das diversas temáticas ético-jurídicas, também influencia, em graus variados, a construção desse direito e, sobretudo, desse imaginário. Nesse ponto, como se dá com outras interfaces da literatura (com a religião, com os costumes, com a moda etc.), a literatura e o cinema são subversivos, tanto para a filosofia do direito como para o direito positivo. Não é de causar espanto que esses “críticos” tenham antecipado muito das modernas teorias e tendências do direito (tais como a ética jurídica, o ambientalismo, o biodireito, o feminismo, a transexualidade etc.). De fato, muitas das ideias inovadoras no direito, assim como boa parte das críticas à mentalidade jurídica consolidada, historicamente encontraram sua mais vívida expressão nesse popular e imaginativo meio de expressão, denominado por nós de romance, mas que, poeticamente, o mesmo William P. MacNeil chamou certa vez de “lex populi” (na obra “Lex Populi: The Jurisprudence of Popular Culture”, Stanford University Press, 2007).

            Por fim, concluo afirmando que, com os grandes autores, com suas belas estórias, aprendemos que o direito não é um fim em si mesmo, isolado do mundo; ao contrário, ele faz parte da vida cotidiana, que é carregada de dramas bem reais. Alguns até acreditam ser essa a principal razão pela qual a literatura – e a arte em geral – interessa ao direito.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Direito, ética e literatura

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Na edição 2023 do “Encontro Nacional de Corregedorias, Controles Internos e Ouvidorias dos Tribunais de Contas”, fui convidado a falar sobre o tema “Ética, direito e literatura”. E quedei-me pensando em como abordar, de maneira interessante, essa mistura interdisciplinar. Afinal, não seria “ético” de minha parte cansar, com uma “xaropada jurídica”, a distinta plateia ali presente.

Fiz-me algumas perguntas: como relacionar a ética, no caso a ética jurídica, com a literatura (e a ficção de um modo geral, para também incluir o popular cinema)? Como fazer isso de forma sistematizada? Como exemplificar, de uma maneira lúdica, essa mistura? E, sobretudo, como incutir na plateia a ideia de que essa mistura vale a pena? Acreditando haver respondido a essas perguntas na minha exposição, mostro, doravante, o resultado/respostas por aqui.

            De logo, anoto que interagir os saberes jurídicos com a literatura faz parte de uma onda, cuja origem remonta aos anos 1960, mas que se faz muito visível no mundo acadêmico contemporâneo, que é dos “estudos interdisciplinares”, visando à mais ampla compreensão e ao aperfeiçoamento da realidade que nos cerca. E, para fins de estudo sistematizado, os enlaces direito/literatura são classificados em três vertentes: o direito da literatura (“the law of literature”, “le droit de la littérature”); o direito como literatura (“law as literature”, “le droit comme littérature”); e o direito na literatura (“law in literature”, “le droit dans la littérature”).

Desses enlaces, acho o mais interessante aquele denominado “o direito na literatura”, que é vocacionado à análise de trabalhos literários, em especial de ficção, que, de alguma forma, abordam “questões jurídicas”, variando essa abordagem, consideravelmente, a depender da obra analisada, em termos de intensidade e de estilo. Recordemos, como o faz William P. MacNeil (em “Novel Judgements: Legal Theory as Fiction”, Editora Routledge, 2012), que a literatura tem tomado emprestado do direito muitos dos seus temas, das suas personagens e da sua dramaticidade. Há uma infinidade de temas jurídicos de que a literatura faz uso: justiça, sistema judicial, prisões, crimes não explicados, homicídios, sequestros, fraudes, corrupção, heranças contestadas, disputas por terras e por aí vai. Há as personagens, a saber, os policiais, advogados, promotores, juízes, partes, criminosos e testemunhas, em torno das quais gira a estória contada. E há a dramaticidade que o mundo do direito, sobretudo o que se passa teatralmente em um tribunal, empresta à literatura. Com grande apelo na Europa e nos EUA, o direito na literatura investiga uma das relações mais fecundas para a arte ocidental, bastando lembrar, para exemplificar essa relação, clássicos da literatura, algumas maravilhas do cinema, que serão mais à frente abordados aqui: “Antígona” (441 a.C.), “Medida por Medida” (1603), “O julgamento de Nuremberg” (1961), “A interdição” (1839), “Um caso tenebroso” (1841), “O Casamento do Senhor Mississippi” (1952), “Jornada nas estrelas” (a série), “Anatomia de um Crime” (1959), “O Sol é para Todos” (1962), “Doze Homens e uma Sentença” (1957), “Medéia” (431 a.C.), “O processo” (1925), “Testemunha de Acusação” (1957), “Recordações da casa dos mortos” (1862), “A balada do cárcere de Reading” (1898), “O último dia de um condenado” (1829), “Dom Quixote” (1605), “Édipo Rei” (429 a.C.), entre outros.

Doutra banda, é fundamental aqui estabelecer como abordar a ética jurídica, por si só uma temática relacionada tanto ao direito como à filosofia, cuja amplitude, se não formos bastante específicos, vai muitíssimo além dos limites de uma exposição de menos de uma hora. Meu critério, declaradamente restritivo, em parte tomado emprestado de Eduardo C. B. Bittar e do seu “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, foi sistematizar a abordagem da ética jurídica a partir da ética das profissões ou das personagens (já derivando aqui para a literatura/cinema) do direito, uma ética aplicada, que se destaca “como um [sub]ramo específico relacionado aos mandamentos basilares das relações laborais”. No caso das profissões/personagens do direito – governante, legislador, juiz, promotor, advogado, professor e por aí vai –, mandamentos fundamentais, porquanto “o que define o estatuto ético de uma determinada profissão é a responsabilidade que dela decorre, pois, quanto maior sua importância, maior a responsabilidade que dela provém em face dos outros”. E o profissional do direito “tem de estar consciente de que o instrumental que manipula é aquele capaz de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e a corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”.

Feito esse introito, prometo avançar um pouco mais na semana que vem. Já misturando ética jurídica e literatura. E bastante.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Independência de si mesmo

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Na semana passada, tratei aqui da contaminação do discurso jurídico, no seu próprio ambiente – grosso modo, nos autos –, por um tipo disfarçado de ficção, um “direito contado”. Falei dos discursos dos profissionais do direito em seus métiers, sobretudo aqueles produzidos por personagens membros do Ministério Público e juízes. Sugeri que eles entronizaram a famosa assertiva de Ost, de que “do relato é que advém o direito”, para fazer um uso deveras errado dela.

            A partir desse texto, nos grupos de WhatsApp da Academia de Letras e da Academia de Letras Jurídicas norte-rio-grandenses, recebi uma provocação do meu professor de introdução ao estudo do direito, Ivan Maciel de Andrade, com o seguinte teor: “e o fenômeno chamado ‘bias’ – em que medida interfere no ‘livre convencimento’ ou na ‘persuasão racional’ do julgador?”.

            A resposta é: numa grande medida. Sabemos disso desde os tempos do realismo jurídico americano, sobretudo na sua segunda fase, quando seus líderes, entre eles Jerome Frank (1889-1957) e Karl Llewelyn (1893-1962), desmascararam a doutrina tradicional, segundo a qual os juízes decidiam apenas aplicando as normas/regras mencionadas nos seus pronunciamentos, para também colocar na ribalta, como razão determinante da tomada de decisões, as preferências políticas ou morais do julgador. A norma jurídica formalmente escolhida/apresentada seria apenas a racionalização de uma decisão já “preconceituosamente” tomada.

            Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, reconheço que tomamos decisões baseados numa miríade de razões/fundamentos, somente alguns dos quais são racionais ou mesmo conscientes. Os passos na elaboração de uma decisão são complexos e não óbvios. Acho que é impossível nos vermos totalmente livres dos nossos preconceitos, bias ou mesmo ideologias ao tomarmos qualquer decisão. Na vida cotidiana, certamente. E na atividade ministerial/judicante também.

            Phillip J. Cooper (em “Public Law and Public Administration”, F. E. Peacock Publishers, 2000), com base nas ideias do legal realism, dá um resumo: “O Direito consiste em um conjunto de decisões tomadas por pessoas no poder. Essas decisões não são necessariamente racionais. Os juízes têm preferências e valores, e suas decisões, bem ou mal, são afetadas por características herdadas ou adquiridas que eles trazem para a magistratura. O comportamento dos juízes também é afetado, especialmente em tribunais, pelo fato de que tais cortes são órgãos colegiados que operam com toda a força e todas as fraquezas impostas pela dinâmica de pequenos grupos”.

            De toda sorte, acredito que podemos – e, mais do que isso, devemos –, como profissionais do direito, minorar a influência dos nossos preconceitos, bias ou ideologias nas nossas decisões. Devemos tentar ser independentes de nós mesmos, quero dizer. Aliás, diferentemente do homem comum, o juiz/promotor deve ser treinado para isso. Julgar é o métier deles. E há instrumentos para minorar essa “influência de si mesmo”. A lei serve para isso. Os precedentes também.

            Nesse ponto, nunca deixo de mencionar a lição de Andrés Ollero Tassara (em “Igualdad en la aplicación de la ley y precedente judicial”, Centro de Estudios Constitucionales, 1989): “Dentro de uma apresentação estritamente técnica da função de aplicação das normas, a ‘independência’ indicava a subtração a qualquer imperativo ou fonte de pressão, alheios ao processo técnico (‘políticos’, para reduzir o tópico). O juiz não deve depender de ninguém, e só se reconhecer submetido ao texto legal. O problema surge quando se torna evidente que não há tal aplicação técnica sem prévia interpretação valorativa; nela os juízos encadeiam-se inevitavelmente com juízos prévios, que marcam uma dependência peculiar do juiz: de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo, pessoal e dificilmente transferível. Esta dependência do juiz do seu próprio entorno, juntamente com o caráter mais ou menos aberto, mas sempre histórico do sentido do texto legal, explica a pluralidade interpretativa que os diversos órgãos acabam produzindo. A hierarquização processual ajudará a reduzir essa dependência judicial, suavizando-a. Prescindindo dessa e de outras instâncias de controle, entre as quais o respeito ao precedente (exigido pela igualdade) ocupa lugar destacado, não se faria homenagem alguma à independência de uma subjetividade cuja eliminação é tão utópica como indesejável, dado que, sem tais juízos prévios, nunca haveria juízo algum. Vincular o juiz ao precedente [à lei parece mais que óbvio] é obrigá-lo a controlar seus próprios juízos prévios em diálogos com juízos próprios e alheios. Assim se tornará mais dono de si mesmo e aumentará também a dimensão de sua independência; porque nada corrói mais a confiança na Justiça do que as aparências de arbitrariedade (‘independência’ sem controle) nos responsáveis por realizá-la”.

            Por fim, admitindo como uma realidade a impossibilidade de uma decisão pura, livre de quaisquer preconceitos/bias, o que vejo hoje é uma hiperinflação das ideologias. Para um lado e para o outro, a todo redor, diga-se de passagem. E isso é péssimo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A competência de cada um

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Estes dias, foi bastante comentada pela comunidade jurídica, sobretudo em grupos de WhatsApp (neles se comenta tudo), a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 1.447.939-SP, relatora ministra Cármen Lúcia, que, reformando anterior decisão do Superior Tribunal de Justiça, com base no Tema 280 de repercussão geral, considerou não evidenciada a afronta à inviolabilidade de domicílio (art. 5º, inciso XI, da CF), para busca e apreensão domiciliar, mesmo sem mandado, em caso de crime permanente.

Basicamente, afirmou o STF que: (i) parecia “incontroverso que, na espécie vertente, os policiais teriam ingressado na residência somente após fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas e com autorização do recorrido X e da esposa do recorrido Y”; (ii) que o Tribunal de Justiça de SP (que fixou a compreensão dos fatos do caso) “ressaltou que os policiais entraram na residência por terem visualizado um dos recorridos fugir ao perceber os policiais, que passaram a persegui-lo, e por suspeitarem da presença de drogas em duas residências da vila, nas quais ingressaram com a autorização dos respectivos moradores”; (iii) “sendo permanente o crime de tráfico, a busca domiciliar no imóvel, na espécie, não é comprovada como contrária ao disposto no inc. XI do art. 5º da Constituição da República”; (iv) em processos semelhantes, o próprio STF tem afastado a alegação de ilicitude de provas nos casos de crime permanente quando há justa causa para o ingresso na residência”.

Lembremos que o STJ in casu, em decisão também bastante comentada à época (Agravo Regimental no Habeas Corpus 596.705-SP), tinha considerado nula a prova derivada de conduta por ele (STJ) afirmada ilícita (“pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a invasão de domicílio permeada de ilicitude e a apreensão das referidas substâncias”), que dera origem à ação penal no estado de São Paulo. Foi essa, então, a decisão cassada pela novel decisão do STF. 

Não vou entrar no mérito das decisões, que têm muitas nuances, embora tenda, por formação e por uma questão de política criminal, a concordar com a recente decisão do STF.

Não desejo desmerecer o papel do STJ no nosso arcabouço (palavra da moda) jurisdicional. É fundamental. Ele é o grande intérprete e harmonizador da legislação federal, entre outras coisas. Mas quanto ao exercício do respectivo papel por cada um dos nossos órgãos jurisdicionais, sempre me vem à mente uma famosa decisão da House of Lords (outrora mais alta corte do Reino Unido), em Davis v Johnson [1978] 2 WLR 553, sobre o papel da Court of Appeal (que podemos, para fins deste texto, tratar como o STJ deles) na estrutura judicial do seu país. Na ocasião, afirmou o Lord Diplock (já reproduzindo as palavras do Lord Scarman em Tivertkon Estates Ltd v Wearwell Ltd [1975] Ch 172): “A Court of Appeal ocupa uma posição central, mas, salvo em poucas exceções, uma posição intermediária em nosso sistema jurídico. Em grande parte, a consistência e a certeza do direito dependem dela. (…). [Mas] o fórum apropriado para a correção dos erros da Court of Appeal é a House of Lords”.

Meu desejo aqui é sobretudo explicitar o papel do STF como guardião da Constituição Federal. Afinal, não resta dúvida, basta apenas ler o seu texto, afirma o art. 102, caput, da CF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”. É ele, o STF, quem definitivamente interpreta a tal Constituição. Não outrem. Nem mesmo o STJ. E muito menos os pitaqueiros de zap zap (desculpem o desabafo).

No caso que ora comentamos, embora misturada com o direito penal e o processual penal, a questão especificamente debatida é majoritariamente constitucional. A própria decisão do STJ expressa isso. E, em matéria constitucional, como afirmava o ministro Moreira Alves, “a decisão do Supremo não é definitiva porque é certa, mas é certa porque é definitiva”. Seja ela “garantista” ou “punitivista” (como sempre querem, mesmo sem sentido, as hordas do WhatsApp).

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Aproximando e aprendendo

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República – Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Na semana passada, afirmei aqui que, apesar das origens diversas e do desenvolvimento até certo ponto paralelo, países filiados à tradição do civil law (ou romano-germânica) e países filiados à tradição do common law tiveram uns com os outros, no passar dos séculos, inúmeros contatos. E se, no passado, instituições do common law foram absorvidas pelo civil law (e vice-versa), esses contatos, recentemente, vêm, cada vez mais, se estreitando. Hoje, por exemplo, com a facilidade das comunicações e do intercâmbio cultural, um jurista ou operador do direito inglês pode estar conectado com um congênere brasileiro em tempo real. Isso faz com que os sistemas e os seus atores se aproximem e reciprocamente se aprimorem cada vez mais.

            O fato é que hoje estou ainda mais certo dessa afirmação.

Por uma dessas coincidências da vida, praticamente no mesmo dia em que o texto acima era publicado, eu assistia a uma maravilhosa palestra do professor Fredie Didier Júnior sobre a importantíssima temática dos precedentes judiciais.

            O pano de fundo da palestra do professor Didier foi incrivelmente coincidente com isso que tenho defendido, aliás já de algum tempo: que as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos dos países filiados a um dos modelos, quando comparados com os sistemas dos países filiados ao outro modelo, têm sido supervalorizadas pelos operadores do direito. E no que toca ao Brasil, o nosso país, apesar de filiado à tradição do civil law, historicamente não permaneceu estranho à influência do precedente vinculante. Motivado por diversos fatores (entre eles, o de alcançar a uniformidade de entendimento sobre as questões jurídicas e o de garantir maior celeridade na prestação jurisdicional), sempre existiram tipos de decisões ou conjunto de decisões, fruto de variados institutos processuais, de seguimento obrigatório para os demais órgãos do Judiciário (às vezes para todos, outras só para alguns) e para a Administração como um todo. E a coisa vem só evoluindo: partimos dos antigos assentos portugueses, criamos um bocado de decisões de caráter vinculante (tipo a badalada súmula do STF) e chegamos ao CPC de 2015.

            Essa aproximação, aliás, deve ser estendida a todo o processo civil e mais além. Como advertia, há mais de dois decênios, o professor Cândido Rangel Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros, 2002), uma das tendências mais visíveis na América Latina é “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas. O interesse pela cultura processualista dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.

Estou de acordo também com o professor Dinamarco. Ainda temos muito o que reciprocamente aprender com as outras culturas. Aprender é muito bom! Em especial se “audaciosamente indo aonde ninguém jamais esteve”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Vale mesmo a pena

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República – Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Dia desses, uma colega de trabalho, projetando seus estudos no exterior, me perguntou se valia mesmo a pena estudar no Reino Unido (onde fiz meu PhD), no caso dela para fazer um mestrado e, quem sabe, já em seguida, engatar num doutorado/PhD. Ela tinha dúvidas gerais do tipo: onde morar? Em Londres? Qual o custo da aventura financeiramente falando? Qual o custo em termos de tempo e de sacrifício para a família? E dúvidas acadêmicas: qual universidade? E o direito inglês, incluindo a sua metodologia de ensino, não seria muito diferente do nosso, já que fazem parte de duas famílias jurídicas diversas, o common law e o civil law? E por aí vai.

Respondi na medida do meu conhecimento. Dei notícias boas, claro. Londres, onde morei, é fantástica. As universidades são excelentes. Muitas estão entre as tops do mundo. E dei notícias, digamos, não tão animadoras, a exemplo do custo de vida, que, com a nossa desfavorável conversão da moeda, parece estar bem mais caro do que no meu tempo.

Mas, feito um balanço de tudo, minha resposta foi deveras positiva.

Na verdade, eu sempre enxerguei um mestrado/doutorado no exterior como uma oportunidade não apenas acadêmica, mas também linguística e, sobretudo, cultural.

Quanto à língua – e aqui anoto, por experiência própria no doutorado, a dificuldade com um idioma que não era o meu –, um período de estudos no Reino Unido deve melhorar exponencialmente o inglês do cidadão, inclusive o jurídico. E “os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo”, acrescento, usando aqui livremente a famosa assertiva de Ludwig Wittgenstein (1889-1951). O português também. Textos mais elaborados. Mais concisos (à moda inglesa). Mais distantes do enfadonho “juridiquês”. Até mais fáceis e gostosos de ler, posso dizer.

E a oportunidade cultural justifica a opção por estudar em Londres, em lugar das mais “provincianas” Oxford e Cambridge. Sempre acreditei na assertiva de Samuel Johnson (1709-1784): “Quem está cansado de Londres, está cansado da vida”. Culturalmente, Londres está entre as cidades mais interessantes do mundo. Muita história e muita arte. Abundam museus de todos os tipos (morei pertíssimo do Museu Britânico). Música de altíssima qualidade. Teatro (e mil vivas para os musicais de West End) e cinema dos melhores. E, sobretudo, pelo menos para mim, tem a literatura. A imersão na cultura e na literatura inglesas torna o aprendizado do direito mais suave e lúdico. Para além das “filosofias” na relação de Shakespeare (1564-1616) com o direito, é possível travar contato com outro gigante da literatura inglesa, Charles Dickens (1812-1870) e a sua notadamente jurídica “A casa sombria” (1853). É possível se tornar íntimo da minha amiga Agatha Christie (1890-1976) ou mesmo ler/sonhar com as aventuras do detetive Sherlock Holmes nos locais onde as cenas se passam. É divertidíssimo.

E para não dizer que não falei de direito, especialmente sobre as idiossincrasias dos sistemas jurídicos brasileiro e inglês, aduzi que, apesar das origens diversas e do desenvolvimento até certo ponto paralelo, países filiados à tradição do civil law (ou romano-germânica) e países filiados à tradição do common law tiveram uns com os outros, no passar dos séculos, inúmeros contatos. No passado, instituições do common law foram absorvidas pelo civil law, e vice-versa. Esses contatos, recentemente, vêm, cada vez mais, se estreitando. Hoje, com a facilidade das comunicações e do intercâmbio cultural, um jurista inglês pode estar conectado com um jurista brasileiro em tempo real. Isso faz com que os sistemas se aproximem cada vez mais. E nunca esqueçamos que, em ambas as tradições, o direito sofreu forte influência da moral cristã. As doutrinas filosóficas coincidentemente em voga puseram em primeiro plano, desde a época da Renascença, o individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A própria substância do direito – e aqui se está falando da concepção de justiça que, em ambos os casos, é a mesma – impõe semelhantes soluções para as questões jurídicas em ambas as famílias.

E, assim, intimei: escolha sua linha de pesquisa, faça suas malas e vá para a outrora Terra da Rainha. Quem sabe você não se torna amiga do Rei?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Literariamente gótico

Marcelo Alves Dias de Souza / Procurador Regional da República /Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

“O Castelo de Otranto” (“The Castle of Otranto”), de 1764, é convencionalmente considerado como o título fundador da denominada ficção gótica. O seu autor é Horace Walpole (1717-1797), escritor, político e aristocrata inglês, filho de Robert Walpole (1676-1745), 1º Conde de Oxford, considerado, também convencionalmente, como o primeiro Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha. Curiosa família de “primeiros”.

É certo que “O Castelo de Otranto” possui as características que costumam ser apontadas como marcantes no gênero (literário) gótico. Segundo consta da minha edição do dito cujo (Oxford World’s Classics, Oxford University Press, 2008): “Primeiramente publicado pseudonimamente em 1764, The Castle of Otranto alegava ser uma tradução de uma estória italiana do tempo das cruzadas. Nele, Wolpole buscou, como ele declarou no prefácio da segunda edição, ‘misturar dois tipos de romance: o antigo e o moderno’. Ele nos dá uma série de catástrofes, intervenções sobrenaturais, revelações de identidades e intrigas excitantes. Repleto de invenção, entretenimento, terror e sofrimento, o romance foi um imediato sucesso e tornou-se o favorito do próprio autor entre os seus numerosos trabalhos. Seu amigo, o poeta Thomas Gray, escreveu que ele e sua família, tendo lido Otranto, restaram doravante com medo, todas as noites, de ir para a cama”.

Hoje difícil de se ler, “O Castelo de Otranto” ganhou status de cult, sendo objeto de referências em outras paragens, como no caso do mui querido “O nome da rosa” (“Il nome della rosa”, 1980), de Umberto Eco (1932-2016), um romance que, embora perpassando outros gêneros da ficção (romance histórico, medieval, policial, sobre livros e por aí vai), é uma obra marcadamente “gótica”: a personagem Adelmo de Otranto, o primeiro frade morto na trama de Eco, é uma referência ao livro seminal de Walpole. E é fato: inseminado por “O Castelo de Otranto”, o romance gótico, com sua “sedutora mistura de bizarro e macabro”, com seus “castelos, caixões e claustrofobia”, com seus “segredos e vinganças”, ganhou o mundo, sendo adorado por muitíssimos leitores. Eu adoro! Registro.

Surfando na onda, dia desses até dei de cara com um artigo/lista da BBC Culture, intitulado “The eight best gothic books of all time”, por Freya Berry, que achei deveras interessante. E antes que vocês me indaguem o porquê desse número de “oito” melhores (confesso que achei bizarro), da lista vou destacar dois títulos: “Frankenstein” (1818), de Mary Shelley (1797-1851) e “A Sombra do Vento” (“La sombra del viento”, 2001), do espanhol Carlos Ruiz Zafón (1964-2020). 

“Frankenstein” é provavelmente o clássico dos clássicos dos livros góticos. Nele, Victor Frankenstein cria um ser vivo em seu laboratório. Mas as coisas não saem como ele imaginava. E ele tem de lidar com as consequências. “Frankenstein” é tido também como pioneiro na ficção científica. Mas ele é muito mais do que isso. É sobretudo uma profunda discussão filosófica sobre ambição, criatividade, ciência, educação, paternidade, natureza, humanidade, vida e morte.

Já acerca de “A Sombra do Vento”, repito um trecho do artigo da BBC Culture: “Stephen King [e aqui temos um craque do jogo] disse sobre esta obra espanhola que, ‘se você pensou que o verdadeiro romance gótico morreu com o século 19, ela vai mudar sua opinião’. O best-seller mundial de Zafón de 2001 é de fato quase matematicamente gótico – segredos, castelos, belezas etéreas, bibliotecas perdidas e amor proibido – embora isso ainda não faça justiça a esta fantasia encantadora. Se você quer uma obra-prima na criação de uma atmosfera sombria, leia este livro, de preferência à luz de velas enquanto a noite tudo domina”. No mais, “A Sombra do Vento”, com o seu “Cemitério dos Livros Esquecidos”, é marcadamente um romance sobre livros. E isso é mais que uma maravilha!

De minha parte, acho difícil qualquer romance superar “O Nome da Rosa”, que é também uma estória sobre livros e o poder infinito, muitas vezes macabro, das palavras. O livro de Eco é ainda o meu romance preferido, o número 1 mesmo. Mas vou em busca da “Sombra do Vento”, cair para dentro dele, enterrar-me ali, no seu “Cemitério dos Livros Esquecidos”, já nos próximos dias. Quem sabe algo de ainda mais bizarro e maravilhoso não me acontece?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL