Direito, séries e seriados: uma paixão

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Parodiando uma constatação do jurista belga Bruno Dayez (autor de “Justice & cinéma”, editora Anthemis, 2007), de que o direito “é um dos temas favoritos do cinema”, posso afirmar que o direito é também um maravilhoso tema para as séries e os seriados de TV.

As razões para tanto são muitas. As questões judiciais muitas vezes envolvem dinheiro, violência, sexo, o que, sabemos, é sempre algo interessante de se explorar na TV. O crime em si, do mais banal ao mais grave, normalmente chama a nossa atenção. Muitas vezes, a própria perversidade do crime praticado ou o envolvimento de pessoas ilustres no fato, por exemplo, já são o suficiente para, sem o acréscimo de qualquer recurso dramático, emprestar qualidade e interesse a uma série ou seriado. A personalidade do criminoso, assim como a sua conduta antes e depois do crime, constitui-se geralmente em excelente matéria-prima para a ficção. A competência e a teatralidade dos operadores do direito – policiais, juízes, jurados, promotores e, sobretudo, advogados – é fascinante. A atmosfera de uma corte de justiça em pleno funcionamento é tensa e ao mesmo tempo encantadora. A mise en scène do processo penal, em alguns casos, assemelha-se a uma tragédia grega. A busca pela justiça, que é uma busca pela verdade, sempre envolve um suspense. Até mesmo a execução da pena, na trágica realidade carcerária existente mundo afora, é marcadamente perversa para invariavelmente prender nossa atenção. E por aí vai.

Aqui entra até uma questão mais ampla: o gênero ou temática a ser adaptada/roteirizada para as séries/seriados de TV. Estes parecem ser muito mais exitosos, qualitativa ou financeiramente falando, quando adaptam/roteirizam a literatura/ficção de gênero, em especial as estórias de suspense/mistério, para as suas maravilhas de imagem e som. Aliás, certa vez li no site literário Goodreads um belo artigo sobre o tema, de autoria de Adrienne Johnson, intitulado “Mystery Solved: Why Hollywood Is Obsessed with the Whodunit [leia-se ‘quem fez isso’]?”. E tudo fez sentido. E não são só os canais de TV e as plataformas de streaming que estão obcecadas por mistérios. Nós também estamos. Não conseguimos parar de assisti-los, mesmo com mil coisas a fazer ou necessitando dormir. Pode ser coisa do enredo forte, típico dos whodunit, dos thrillers e por aí vai. Quem fez isso? Por que fez? Como fez? Isso sem falar nas reviravoltas a cada instante, capítulo ou episódio. Perfeitas para os chamados “cortes” cinematográficos/televisivos. Tudo isso deixará você grudado ali se perguntando: O que houve? O que vai acontecer? Os filmes/séries de mistério nos tornam mais do que espectadores da estória. Em meio ao suspense, quase participamos da trama. Sentimos medo, raiva e alegria. E, claro, há os dilemas éticos e morais. O que faríamos no lugar da personagem X? Aliás, hoje há uma tendência nas séries/seriados “jurídicos” de contar sua estória com um toque de humanismo, mesmo quanto ao seu anti-herói. Um grande sofrimento ou injustiça prévia explica/justifica o seu comportamento. Além disso, também abordam, mesmo que lateralmente, questões atualíssimas, tais como igualdade e justiça social, gênero, classe, raça e por aí vai.

Mas se seriados como “Law & Order”, “Murder One”, “Arrested Development”, “Suits”, “Ray Donovan”, “How to Get Away with Murder” e “Better Call Saul”, apenas para citar algumas produções mais recentes, são ludicamente apreciados por aqueles que possuem formação jurídica – as suas enormes audiências e o número cada vez maior de seriados do tipo em exibição hoje mostram bem isso –, elas também se prestam a propósitos que vão além do divertimento? São instrutivos sob o ponto de vista do conhecimento jurídico? Sendo mais específico: as séries e os seriados de TV são realmente meios adequados para o tratamento sério do direito? É minimamente seguro embarcar nessa tendência ou moda (diriam alguns mais críticos) da interdisciplinaridade, aqui entendida como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em sentido estrito e transdisciplinaridade), entre o direito e as séries/seriados de TV, visando à compreensão (e até mesmo ao aperfeiçoamento) daquele através da linguagem destes?

Nossa resposta virá, se o destino permitir, na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Direito, séries e seriados: uma introdução

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Interagir o direito com a arte, interdisciplinarmente, faz parte de uma tendência cada vez mais popular no mundo jurídico contemporâneo. Na Europa, nos Estados Unidos da América e, promissoramente, no nosso Brasil, os estudos de “law and literature” (direito e literatura) e “law and cinema” (direito e cinema) vêm ganhando, paulatinamente, cada vez mais destaque na teia dos “movimentos” interdisciplinares, com a publicação de livros e artigos voltados à temática e mesmo com sua inclusão nos currículos dos cursos de direito.

É dentro desse contexto promissor que gostaria de falar um pouco sobre a presença do direito – e o seu consequente estudo – em “séries” e “seriados” produzidos pela/para TV tradicional ou mesmo pelas/para plataformas de streaming (Netflix, Amazon Prime, Apple TV etc.). Aliás, considero “séries” e “seriados” de TV categorias sutilmente distintas, basicamente porque, no segundo caso, cada um dos seus episódios possui uma trama quase completamente autônoma.

No mundo “líquido” de hoje, as séries e os seriados para a tela pequena (a TV, grosso modo) viraram uma paixão. E a razão disso está, para além da qualidade da obra em si, na flexibilidade dos formatos e do tempo de execução. Uma série/seriado poderá ter inúmeros episódios e ser dividida em várias temporadas. A duração de cada episódio, algo em torno de trinta ou quarenta minutos, bem menor que a dos filmes, é o suficiente para gostarmos da estória sem cansar. Some-se a isso que cada episódio, via de regra, certamente nos seriados, é um mundo em miniatura para se viver, com começo, meio e fim. Com a explosão dos serviços de streaming, pululando nas TVs, isso é uma mão na roda, para a indústria e para a audiência.

Para aqueles com formação em direito, essa paixão muitas vezes se direciona para aquilo que vou chamar de séries ou seriados “jurídicos”, produções cujos enredos têm uma considerável ou mesmo uma fortíssima ligação com o mundo e as profissões do direito. Nessas séries e seriados, as histórias/estórias se passam, pelo menos em parte, perante uma corte de justiça em funcionamento ou em torno de algum escritório de advocacia, com as personagens realizando suas performáticas peripécias jurídicas. Os enredos da série e/ou de cada episódio do seriado costumam focar a vítima, o réu/criminoso, o advogado brilhante, o promotor que busca incessantemente a Justiça, o juiz justo, o controverso júri, o procedimento judicial em si, o crime praticado, a questão civil tratada e por aí vai. Quase sempre temos uma tensão entre a falibilidade do sistema ou da “justiça humana” e a noção do que é a verdadeira Justiça. Sem prejuízo de termos também alguns dramas pessoais misturados (uma pitada romântica, por exemplo, quase sempre vai bem, claro).

Especificamente quanto aos seriados, com graus de pertencimento “jurídico” variados, a depender da centralidade do direito na coisa, os exemplos são muitíssimos, conforme se pode constatar de uma breve consulta a publicações do tipo “1001 TV Shows You Must Watch Before You Die” (editado por Paul Condon, Universe Publishing, 2015). Vão desde o pioneiro “Perry Mason”, o seriado, “TV show” (como gostam de chamar os ianques) que, originalmente apresentado pela rede de TV americana CBS de 1957 a 1966 em 271 episódios, definiu o formato dos seriados jurídicos (“courtroom dramas”, “legal dramas”) como ainda conhecemos hoje; passando por “Rumpole of the Bailey” (Reino Unido, 1978-1992), “Night Court” (EUA, 1984-1992 e 2023-), “L. A. Law” (EUA, 1986-1994), “Law & Order” (EUA, 1990-2010 e 2022-), “Murder One” (EUA, 1995-1997), “Arrested Development” (2003-2006, 2013 e 2018-2019), “Boston Legal” (EUA, 2004-2008), “Mandrake” (Brasil, 2005-2007 e 2012), “Garrow’s Law” (Reino Unido, 2009-2012), “Accused” (Reino Unido, 2010-2012), “Vampire Prosecutor” (Coreia do Sul, 2011-2012), “Silk” (Reino Unido, 2011-2014), “Suits” (EUA, 2011-2019), “Ray Donovan” (EUA, 2013-2020), “How to Get Away with Murder” (EUA, 2014-2020), entre outros; e chegam a produções do tipo “Better Call Saul” (EUA, 2015-2022), que, não por mera coincidência, entre outras coisas, ganhou três troféus no Critics Choice Awards 2023 (Melhor Série de Drama, Melhor Ator e Melhor Ator Coadjuvante em Série de Drama).

Mas o que explica essa novel paixão “jurídica”? Isso veremos na nossa próxima conversa.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Trágicas misturas

Nas últimas semanas, tenho aqui tratado da “ética das profissões/personagens jurídicas”, propositadamente de maneira interdisciplinar, misturando o direito com a literatura e o cinema. Uma maneira lúdica – afinal, poucas coisas são tão gostosas como a literatura e o cinema – de abordar a ética de profissões hoje tão incompreendidas, mas fundamentais, que, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar (no seu “Curso de ética jurídica: ética geral e profissional”, Editora Saraiva, 2016), são capazes “de cercear a liberdade, de alterar fatores econômicos e prejudicar populações inteiras, de causar a desunião de uma sociedade e a corrosão de um grande foco de empregos e serviços, desestruturar uma família e a saúde psíquica dos filhos dela oriundos, de intervir sobre a felicidade e o bem-estar das pessoas…”. E acho que o fiz também de uma forma sistematizada, já que, seguidamente, tratei de profissionais/personagens como o governante, o legislador, o juiz, o promotor, o advogado, o professor/jurista, o jurado, o réu, a testemunha e por aí vai.

Dito isso, usarei como mote, para um arremate da temática, a mistura de todas essas profissões no teatro clássico grego. Se há semanas comecei a análise das profissões jurídicas com a “Antígona” (441 a.C.), de Sófocles (497-406 a.C.), desta feita, para finalizar, volto à Grécia antiga com o “Édipo Rei” (429 a.C.), do mesmo autor. Um retorno ao nosso eterno berço.

O enredo – ou o mito – de Édipo é conhecidíssimo (e notadamente desenvolvido na psicanálise de Sigmund Freud). Filho do rei tebano Laio, Édipo, ainda bebê, foi deixado para morrer, pois o seu destino era, segundo o Oráculo de Delfos, matar o próprio pai e desposar a mãe. Mas é salvo por um pastor. Já adulto, entre Corinto e Tebas, mata um velho homem. Chega a Tebas. Responde a um enigma proposto pela Esfinge. Salva a cidade. É feito rei, casando com Jocasta, sua mãe e viúva de Laio, assassinado misteriosamente. Anos após a realização da profecia, e Édipo sendo rei de Tebas, uma peste castiga a cidade. O Oráculo de Delfos, segundo consultado por Creonte (que sucederá como rei), vaticina que, para salvar Tebas do sofrimento, é necessário descobrir e punir o assassino de Laio. Édipo promete aos cidadãos da pólis encontrar e punir o homicida. Édipo sai em sua “caçada”. Mas quando consegue chegar à verdade, ele constata a existência de um só inesperado responsável – ele próprio.

Já tratei de “Édipo Rei” em outra oportunidade para frisar duas coisas: (i) nela, o leitor verá a origem, como um precursor, da dita ficção policial ou detetivesca, gênero literário mais que popularíssimo; e (ii) que podemos também traçar, a partir de “Édipo Rei”, a origem ou o conceito de um mui específico subgênero da literatura (e do cinema), a “ficção de tribunal” (“courtroom drama”), cujas estórias se passam perante uma corte de justiça em funcionamento, com seus atores (advogados, promotores, juízes etc.) realizando suas peripécias jurídicas.

Mas hoje quero ir além na análise de “Édipo Rei”, para dela tirar uma lição ou “moral”.

Na trama, em busca do assassino de Laio, Édipo procura a verdade dos fatos, ouve testemunhas, envia mensageiros para coleta de informações e provas, analisa os relatos, pondera hipóteses, tudo reunindo para formar uma convicção acerca da identidade do responsável pelo hediondo crime. Proativamente agindo, é um policial, um detetive, um investigador. Mas há também inúmeras cenas, como os diálogos/confrontos entre Édipo e Tirésias e entre Édipo e Creonte, que deveras se assemelham ao que se dá em uma sala de audiência/tribunal. Um “courtroom drama” no qual Édipo é promotor e é juiz. E Édipo, claro, nunca deixou de ser Rei, muito embora se veja ao final também culpado.

A mistura de papéis – detetive/promotor/juiz/rei/culpado – não dá certo. Sabedor da verdade, desesperado, Édipo se autocondena, arranca os próprios olhos, para não ser testemunha da própria desgraça e dos próprios crimes. Jocasta, sua mãe, esposa e rainha, outra mistura fatal, comete suicídio. Os destinos são cumpridos. E são só tragédias.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Juristas e bacharelas

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Não apenas de homens “práticos” é feito o direito. Há também os juristas, numa acepção peculiar do termo, para designar os pesquisadores, doutrinadores, professores e estudantes dessa ciência. E eles têm também o seu devido espaço na literatura universal.

O enorme Honoré de Balzac (1799-1850), o “Napoleão das letras”, por exemplo, se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade e, por que não, de seus juristas. “A comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas. Aqueles imaginados pelo autor, claro. Mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da “Comédia”, como teria certificado Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996). E, mais curiosamente,  juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances.

Assim também o fez o gigante Miguel de Cervantes (1547-1616), o pai do “Dom Quixote de la Mancha” (1605). Grandes jurisconsultos são citados nas obras de Cervantes, anota Luis E. Rodríguez-San Pedro Bezares, em “Atmósfera universitaria em Cervantes” (Ediciones Universidad Salamanca, 2006). Por exemplo, “o nome de Justiniano é referido pela boca da personagem Redondo na comédia Pedro de Urdemalas, ainda que de forma grosseira. O mesmo se dá com os importantes juristas medievais Bartolo ou Baldo”. Em “La elección de los Alcaldes de Daganzo”, uma farsa, “num coro de músicos e ciganos, faz-se referência a Bartolo”. Há também “uma menção aos juristas Bartolo e Baldo em La tía fingida, atribuída por um tempo a Cervantes”.

De verdade ou fictícios, estudiosos e estudantes do direito também têm lugar, para além da literatura, no cinema. E aqui, no momento em que se discute o papel da mulher no sistema judicial brasileiro, com a controversa questão da inclusão do gênero como critério de promoções por antiguidade e merecimento na magistratura e no Ministério Público, faço referência ao popular filme “Legalmente loira” (“Legally Blonde”, 2001), adaptado do romance homônimo de Amanda Brown e estrelado pela engraçadíssima Reese Witherspoon.

Basicamente, quanto ao seu enredo, segundo o site em português do IMDb (Internet Movie Database), a patricinha Elle Woods, “uma rainha da irmandade da moda, é abandonada pelo namorado. Ela decide segui-lo para a faculdade de direito [no filme, a Harvard Law School]. Enquanto está lá, ela percebe que há mais nela do que apenas aparência”. “Legally Blonde” é um filme divertidíssimo. Foi sucesso de crítica e público. Ganhou uma sequência (“Legally Blonde 2: Red, White & Blonde”). Virou um musical, que, aliás, assisti em Londres. Adorei. Mas ele é também, sob a aparência de “bobinho”, bem mais do que isso.

Legally Blonde”, à sua maneira, representa um final rompimento com a tradição secular, no cinema, de os advogados (e outros operadores do direito) serem sempre personagens masculinos. Levando em consideração a completa ausência de mulheres advogadas em “I Am The Law” (1938), passando pelas personagens femininas de “Suspect” (1987), “The Accused” (1988), “Class Action” (1991) e “The Client” (1994), a onipresença feminina da personagem Elle Woods (interpretada por Reese Witherspoon) é um marco notável. Bem construído, por detrás da máscara de bobinho, “Legally Blonde”, com a vitória profissional da protagonista e a demonstração da hipocrisia e preconceito masculinos (e de Harvard), tem um forte apelo em favor da mulher. Representa, em certa medida, o espaço que o “sexo frágil” vem ganhando no mundo do direito. “Mesmo de salto alto e vaidosas, as mulheres terão sempre mais espaço daqui para frente”, foi o que me disse certa feita uma amiga querida.

Têm alguma ou bastante razão, o filme e a minha amiga.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A ética do preso

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República – Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A ética do preso

Nunca esqueci a observação de Nilo Batista, em prefácio ao livro “Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das leis” (de Eliane Botelho Junqueira, Letra Capital, 1998): “o relato literário, muitas vezes integrado pela experiência do autor, quando não explicitamente autobiográfico, não é menos elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato, processo ou instituição; através de Dostoiévski (Recordações da Casa dos Mortos) aprende-se sobre a penitenciária não menos que através de John Howard (O Estado das Prisões) e sua descendência. Um diretor de presídio brasileiro que tenha lido, por exemplo, representantes da nossa literatura como Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), Plínio Marcos (Barrela) e Assis Brasil (Os que Bebem como os Cães) compreenderá melhor o que está fazendo”.

Peguemos o exemplo de Dostoiévski (1821-1881), que, acusado de conspirar contra o Czar Nicolau I, foi, em 1849, condenado à morte. Apenas momentos antes da ordem de fuzilamento, a pena foi anunciada como comutada para prisão com trabalhos forçados (o próprio Czar exigira a encenação da falsa execução). Dostoiévski, então, foi levado à Sibéria. Quatro anos de prisão e dez anos de exílio nesse fim de mundo. Esse padecimento – a partir da sua experiência numa prisão decadente, suja e intransponível – foi narrado pelo autor em “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, talvez como ninguém mais na literatura universal. De 1862, “Recordações da Casa dos Mortos”, construído a partir de uma coleção de fatos e eventos relacionados à vida nas prisões da Sibéria, é um romance, é vero. Mas só um gênio que passou por esse “sofrimento inenarrável”, que ali esteve “sepultado vivo”, para usar de expressões do próprio Dostoiévski, seria capaz de descrever as condições de vida e a personalidade daqueles que são condenados, culpados ou não, a viver ou morrer nessas condições. O momento da prisão em si, a solidão do cárcere ou a promiscuidade com delinquentes perigosos, tudo isso é terrível, sobretudo para homens de caráter e de sentimento, como Dostoiévski.

Esse tipo de experiência e de posterior narrativa não é uma exclusividade do grande romancista russo. Oscar Wilde (1854-1900) também pôs a angústia e o sofrimento no papel, retratando a realidade nas masmorras. A partir das idas e vindas de uma acusação pelo “crime” de homossexualismo, Wilde foi bater na prisão de Reading, cidade no sudeste da Inglaterra, que se torna o cenário de sua “Balada do Cárcere de Reading” (1898). A “Ballad” tem como ponto de partida a execução de um tal Charles Wooldridge, acontecida em 1896, quando Wilde estava ali encarcerado. Wooldridge, um militar, foi condenado à morte por haver assassinado a própria mulher. O enforcado tinha 30 anos quando cumprida a sentença. Para além do testemunho, Wilde amplia o sentido da sua narrativa, para simbolizar a situação de todos os prisioneiros, mas não para criticar a justiça das decisões que os condenaram, e sim para mostrar, como “advogado” de uma reforma penal, a brutalização da punição do condenado à morte e de todos aqueles ali aprisionados e esquecidos. O verso autoaplicável “cada homem mata as coisas que ama” restou célebre. Aliás, ainda em Reading Gaol, Wilde escreveu uma longuíssima carta ao seu amante, o Bosie. Nela, ele relembra o caso de amor e suas experiências de condenado. O tom é de lamento e ataque. Em 1905, foi publicada uma versão reduzida dessa carta. Em 1949, uma versão com partes inéditas. E, em 1962, a versão original revisada. A missiva restou conhecida com o título “De Profundis”.

Mas talvez tenha sido Victor Hugo (1802-1885) quem mais tenha feito em prol daqueles que eram – ainda o são – tratados como bestas humanas. Em “O último dia de um condenado” (1829), Hugo, sob os pontos de vista filosófico, sociológico, psicológico e jurídico, nos apresenta o diário de um condenado à morte, anônimo, que não é herói nem vilão, nas 24 horas anteriores a sua execução. Mas como se julga o ato do homem (ou do seu agrupamento em forma de Estado) que decide e impõe a morte a um outro homem? É o que procura fazer o autor. É o que os franceses chamam de “roman à thèse”. Libelo contra a pena de morte, tema tão importante para o direito (e aqui já deixo minha assertiva oposição à pena capital imposta pelo Estado). É verdade que a pena de morte, depois de muita luta, está hoje abolida na grande maioria dos países ditos “civilizados”. Mas, com Hugo e seu livro, na França e por onde a sua literatura se irradia, a luta pela abolição atingiu consciências e sensibilidades. Poucos fizeram tanto para abolir a “maldita” como o reformista/ativista Victor Hugo. Agradecemos!

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A ética da testemunha

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

Reformulação de um conto publicado em 1933, a peça “Testemunha de Acusação” (“Witness for the Prosecution”) é um dos maiores sucessos teatrais de Agatha Christie (1890-1976), dita a “Rainha do Crime”. Foi encenada, pela primeira vez, na Londres pós-guerra de 1953. Foi produzida nos EUA já no ano seguinte (1954). E ganhou os palcos do mundo. Todavia, embora seja uma das mais lidas e encenadas peças de Christie, a estória de “Testemunha de Acusação” alcança de fato o grande público com a sua adaptação para o cinema. Sob a direção de Billy Wilder (1906-2002), em 1957 é lançada a película de mesmo nome (“Witness for the Prosecution”), a meu ver um dos melhores filmes de tribunal ou “courtroom dramas” até hoje produzidos. No filme estão Charles Laughton, Tyrone Power, Elsa Lanchester e Marlene Dietrich, a esposa do réu e “testemunha de acusação”.

Apesar dos traços cômicos, que dão um tom único ao filme, “Testemunha de Acusação” é, antes de tudo, uma reverência ao que o direito – no caso, o direito inglês – tem de melhor e de pior. A sala de audiência na “Old Bailey” é um lugar que transpira tradição, frequentado por grandes homens. Charles Laughton/Sir Wilfrid Robarts, o advogado “velha raposa”, consegue absolver o réu Leonard Vole apenas para descobrir, imediatamente após o veredicto, que o acusado era realmente culpado. A “testemunha de acusação” laborou maliciosamente para absolver o réu (que estará protegido daí em diante pela regra do ne bis in idem). A reação do velho advogado é: “Vole, você brincou com a lei inglesa”, um pecado mais “grave” que o próprio homicídio. Leonard Vole, que revela estar de caso com uma mulher mais nova, é, em seguida, fatalmente esfaqueado por sua esposa, a “testemunha de acusação”. E o filme termina com Charles Laughton/Sir Wilfrid Robarts prometendo defender a esposa/testemunha maritalmente traída, mostrando sua crença na Justiça e no sistema legal inglês.

De estilo mais sério, baseado em romance homônimo de Robert Traver, pseudônimo do juiz John D. Voelker (1903-1991), o filme “Anatomia de um Crime” (“Anatomy of a Murder”, 1959), protagonizado por Jimmy Stewart (1908-1997), é outro clássico do cinema que tem como tema recorrente a falibilidade da prova testemunhal. Nele, uma testemunha, por lealdade à vítima (seu antigo patrão) e por amor à filha deste, “interpreta” os fatos do caso, mesmo que de “boa-fé” (ou seja, acreditando ser a verdade), em detrimento da defesa do réu da estória. Outra testemunha, um dos companheiros de cela do réu, dolosamente depõe contra ele, orientada pelos promotores, em troca de um acordo suave para o seu próprio crime, segundo o contexto dá a entender.

Esses dois filmes retratam uma realidade que nós, operadores do direito, bem conhecemos. Sabemos que a prova testemunhal é provavelmente o meio de prova mais utilizado no direito processual brasileiro, sobretudo no processo penal. Mas ele também é, sabemos, o meio mais manipulável, o menos confiável. É por demais sujeito a imprecisões, seja dolosamente, “seja pela falibilidade da memória humana, seja porque, talvez até sem malícia, pode a testemunha deturpar os fatos com o fito de favorecer a parte”, como diz Luiz Rodrigues Wambier (em seu “Curso avançado de processo civil”, vol. 1, RT, 2007).

A prova testemunhal é por isso entre nós conhecida pela alcunha de “a prostituta das provas” (e aqui já afirmo que longe de mim querer ofender “as profissionais do amor”), apelido cuja autoria já vi atribuída a vários juristas de renome. Sem testemunhos de ciência própria sobre a criação, darei meu veredicto: tenho a designação como de “autor desconhecido”.

A alcunha de “prostituta das provas” é pejorativa e talvez exagerada, é vero. Mas que os causos de “Testemunha de Acusação” e “Anatomia de um Crime” nos fazem lembrar da “mais antiga profissão”, isso é vero também.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

A ética do jurado

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O tribunal do júri é um dos institutos mais encantadores do direito, sobretudo para o leigo nas lides jurídicas. É a forma de julgamento, cuja ancestralidade remonta aos primórdios da civilização, que, com toda a sua teatralidade, os debates entre acusação e defesa, a presença do réu, a majestade do juiz presidente e a reunião dos jurados em sala secreta, mais apelo tem no imaginário popular. No mundo anglofônico – onde está a origem moderna do instituto –, ele tem seu fundamento na cláusula 39 da Magna Carta, que fala em “processo legal por seus pares”. 

É um prato cheio para a ficção jurídica, sobretudo para o cinema e as séries de TV (tipo “Law & Order”). E o mais típico dos filmes de júri é “Doze Homens e uma Sentença” (“12 Angry Men”, 1957), direção de Sidney Lumet (1924-2011) e estrelado por Henry Fonda (1905-1982).

À primeira vista, o enredo de “Doze Homens e uma Sentença” é simples.  Um jovem porto-riquenho, pobre morador de um “slum” (algo próximo de um “pardieiro”), é acusado de haver assassinado o pai. “As provas circunstanciais” estão contra ele. Doze jurados se reúnem para chegar a uma decisão unânime. Não alcançada a unanimidade, o júri será dissolvido. Onze jurados, já na primeira votação, optam pela condenação do réu. Henry Fonda é o jurado número 8 que, menos por acreditar na inocência do réu e mais por não crer na consistência das provas, obsta essa unanimidade. E o jurado número 8, após muita discussão, consegue finalmente convencer os demais jurados para fins de absolvição do jovem réu.

Todavia, um olhar mais atento ao filme nos revela como as decisões judiciais (ou quaisquer decisões) são tomadas. No ambiente sufocante da sala secreta, com calorosos debates, as personalidades dos jurados (todos homens e identificados, salvo na cena final, apenas por números e pela profissão) se evidenciam, assim como são revelados os motivos de cada um deles – baseados em preconceitos e experiências bem pessoais – para a decisão açodada de condenação do réu.

O jurado nº 7 é um descompromissado que quer uma decisão rápida para poder ir ao jogo de baseball da noite. O jurado nº 2 é um pacato bancário que, num primeiro momento, por não ter uma personalidade forte, apenas segue a maioria. O jurado nº 5 tem uma origem humilde e, a partir de certo ponto da narrativa, tende – ou é acusado de – a simpatizar com o réu. As acusações partem, principalmente, do jurado nº 3, um raivoso homem de negócios com um histórico de sérios conflitos com o filho (que ele enxerga no réu). O jurado nº 4 é um consultor na bolsa de valores, frio e analítico. O jurado nº 10 é um preconceituoso. Seu preconceito se dirige, para além do réu, contra o bom jurado nº 11, um europeu do Leste naturalizado norte-americano. O filma mostra, assim, o pior da Justiça e do tribunal do júri, quando decisões sobre a vida, a liberdade ou o patrimônio de pessoas são tomadas com base em preconceitos ou por homens descompromissados. E não pensem que decisões assim fundadas são privilégio do tribunal do júri. Elas se dão também com juízes de carreira, embora em menor grau, já que esses juízes são ou deveriam ser treinados para minimizar tais influências. Os que tenham estudado como se dão os processos de decisão confirmarão o que eu digo.

Mas nem só de “bigots” (pessoas radicais ou intolerantes) é feito o heterogêneo júri de “Doze Homens e uma Sentença”. Além do já mencionado jurado nº 11, há o de nº 9, um velhinho que, pela idade, não é levado a sério por alguns dos jurados, mas que, ao final, se mostra observador e sábio. O próprio jurado nº 1, que preside os trabalhos na sala secreta, se mostra agregador e eficiente. Isso sem falar no onipresente jurado nº 8 (Henry Fonda). Ele é o cidadão que trabalha, dentro do sistema, para que a Justiça dos homens coincida com a “justiça ideal” e, ao final, consegue convencer os demais jurados, defendendo a presença da chamada “dúvida razoável” (“reasonable doubt”), para fins de absolvição do jovem réu. Na atuação do jurado nº 8, o filme apresenta o que o júri ou a Justiça tem de melhor. E mesmo a diversidade estereotipada dos doze jurados não deixa de ser uma homenagem ao pluralismo, à tolerância e ao consenso, pilares de um estado democrático de direito para a realização final da Justiça.

Por fim, vai uma observação sobre o Brasil. Segundo a nossa CF (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “d”), compete ao tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Na fase final, na sessão de julgamento propriamente dita, sete cidadãos comuns (sem necessária formação jurídica), que compõem o conselho de sentença, decidem, de acordo com as suas consciências e (supostamente) as provas dos autos, o destino do réu. Tenho dúvidas quanto à positividade do júri. Não conheço profissionalmente os modelos inglês ou norte-americano. Mas, quanto ao nosso, conheço coisas de patéticas a escabrosas. Na verdade, tenho um caminhão carregado de críticas.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL