Radicalismo e polarização

Padre João Medeiros Filho

O Brasil contemporâneo sofre de fortes manifestações de radicalismo. Talvez não tenha aprendido as lições do passado. A violência tem estado presente nas últimas décadas. As conquistas científicas e tecnológicas não impediram a disseminação de barbáries. Verifica-se o crescimento de irracionalidades, manifestadas em fanatismos, preconceitos raciais, sociopolíticos, econômicos, religiosos e culturais. Necessita-se de sólidos investimentos humanísticos para combater tal fenômeno. Sem isto, a pátria, apesar de tantos avanços técnicos, continuará padecendo de inconcebíveis retrocessos. Dentre os males que abrem feridas sociais está o extremismo, nutrindo insanidades ideológicas, absurdos partidários e provocando perdas irreparáveis. Problemas conjunturais agravam-se e o Brasil hodierno não consegue dar novos passos, indispensáveis à dignidade humana. Conta muito a formação das consciências para superar os descompassos alimentados na mente das pessoas. A busca por grupos com força destruidora é a opção de parcela da sociedade. Tais segmentos acreditam que seus juízos sobre a realidade são intocáveis e irrefutáveis. Trata-se de uma postura que faz propagar arrogância, opressão, injustiça e desigualdade pelos recantos do país. Cabe citar Exupéry: “Para alguém compreender melhor e tocar outrem, necessita de uma transformação interior.”

Há quem crie um ambiente propício a agressões e ataques demolidores, ao definir o próprio ponto de vista como o exclusivo critério de objetividade, realismo e verdade. Tomado por um espírito beligerante na defesa de suas convicções, perde o irrenunciável compromisso com o respeito ao semelhante. O postulado de muitos é destruir quem diverge e pensa diferente. Há cristãos que trocaram a espiritualidade pela ideologia, a prece pelas reuniões, a teologia pela sociologia, a fé pelo tecnicismo, a ética pela conveniência, a solidariedade pelo interesse grupal, a verdadeira caridade por atos demagógicos. Existe uma cegueira, impedindo de identificar corretamente perspectivas divergentes. Faltam ações que construam alicerces para o convívio humano. Os dissensos e discordâncias podem existir, mas nunca justificar agressões, violências e destruições. Cristo pregou abertura e compreensão: “A nós, portanto, cabe acolhê-los para sermos cooperadores com a verdade” (3Jo 1, 8). É necessário investir no respeito à vida, superando divergências e intolerâncias. Nesse caminho, importa cuidar para não eleger sua própria concepção como norma absoluta na interpretação da realidade. Apegar-se cegamente aos próprios conceitos, desconsiderando o semelhante, é pavimentar a estrada da polarização. Esta sói expressar-se de muitas formas, mormente no partidarismo intransigente, levando a movimentos agressivos e disputas fratricidas. É preciso edificar as bases da estima pelo outro.  

Sem o compromisso com a paz e o apreço ao próximo, simples divergências poderão agigantar-se, desencadeando ataques à integridade humana. O partidarismo aceita apenas o que endossa ou reforça a sua visão, negando outras perspectivas sobre os fatos. Percebe-se que para superar o extremismo é necessário exercitar a crítica das influências abscônditas nos porões do pensamento. Nesse exercício, deve-se cultivar o que gera a paz. Para isso é preciso estar vigilante para não se tornar hospedaria de ressentimentos motivados por opções ideológicas, inviabilizando a amizade social.  Assim é possível ver com mais nitidez. Mister se faz contribuir para transformar a própria casa num território de fraternidade. 

Não se derrota o mal com a maldade, que sempre conduz a combates violentos e desavenças homicidas. O bem é alcançado com a bondade, rompendo o círculo vicioso da mágoa e do ódio. As virulências do radicalismo, não raro promovidas por interesses econômicos e políticos, pela vaidade da fama, por uma busca pela manutenção das “zonas de conforto” e por desvios psicológicos, deverão ser enfrentadas com verdade e justiça. A procura pela promoção do autêntico humanismo apresenta-se como um importante caminho nesse desafio. A sociedade pode aproximar-se dessa visão humanista ao reconhecer a sacralidade de cada pessoa. Nisto consiste igualmente a espiritualidade cristã e a mensagem do Evangelho. Esses passos dependem do cuidado com os códigos que regem o coração humano, o qual não pode deixar-se contaminar por pessoas e movimentos, eivados de hostilidades. Necessita-se pautar a convivência pelo respeito às diferenças, contribuindo para consolidar no mundo a paz e a amizade social. Tenhamos sempre diante de nós a recomendação do apóstolo Paulo: “Suportar as fraquezas e não buscar em outrem apenas o que nos agrada” (Rm 15, 1).

Um altíssimo detetive

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Volto hoje a um assunto polêmico: a distinção entre a “alta” e a “baixa” literatura. Houve um tempo em que essa distinção era até propagada pelos entendidos do assunto. Como registra Miklós Szabolcsi (em “Literatura universal do século XX: principais correntes”, Editora Universidade de Brasília, 1990), era comum traçar “uma linha divisória entre as duas espécies de literatura, com base em diversos pontos de vista, sejam os da sociologia da literatura ou da estética, sejam os referentes às diferenças de função”. Dizia-se que “as narrativas reiterativas, de produção fácil e compostas por módulos já prontos, que têm o poder de emocionar e horrorizar com facilidade” são características da trivialidade do texto, assim como “a possibilidade de recepção rápida, a compreensão sem dificuldades e, finalmente, determinados procedimentos ligados à difusão e à produção”. Embora estes sejam critérios incertos e discutíveis, essa “divisão da literatura ‘alta’ e ‘baixa’ ou ‘trivial’ consolida-se no final do século XIX, simultaneamente com o fato que é sua causa: a ‘alta’ literatura vai se tornando excludente, em face das dificuldades que oferece para a compreensão”.

Alguns gêneros literários, como a autoajuda, o romance romântico ou “feminino”, o faroeste e a ficção policial ou detetivesca, para muitos eram/são considerados “baixa” literatura. O valor de “alta” literatura, anota Marina Pastore (no texto “Como um clássico se torna um clássico? A fronteira entre arte e entretenimento na literatura”, publicado na revista Anagrama, em 2012), seria “reservado ao domínio dos clássicos e da ‘literatura de proposta’, expressão sugerida por Umberto Eco para designar o tipo de literatura que não atende às expectativas do leitor, mas consegue formar um público próprio e cria novas expectativas para ele”.

É exatamente através de Umberto Eco (1932-2016), pelo seu exemplo, que manifesto e justifico minha indignação a esse preconceito para com a querida literatura policial/detetivesca, barrando-a de entrar no “baile” da “alta” literatura. E também discordo de Tzvetan Todorov (em “Poética da Prosa”, Martins Fontes, 2003), quando afirma, contornando a problemática, que, “quem quiser ‘embelezar’ o romance policial, faz ‘literatura’ e não romance policial”.

Eco faz os dois – “alta” literatura e romance policial –, sem dúvida. E logo em seu romance de estreia, “O nome da rosa” (“Il nome della rosa”), de 1980.

Em “O nome da rosa”, alegadamente, Eco reproduz um manuscrito de um frade chamado Adso de Melk, que, quando jovem, teria presenciado os terríveis acontecimentos narrados no livro. O manuscrito/enredo de “O nome da rosa”, ambientado numa antiquíssima abadia beneditina, está dividido em sete dias. Seguindo a veia dos romances policiais, o enredo gira em torno das mortes de sete monges nos sete dias seguidos, em circunstâncias extraordinárias. Mortes que, a pedido do Abade, o protagonista Guilherme de Baskerville, ajudado pelo seu pupilo Adso de Melk, nos moldes de Sherlock Holmes/Dr. Watson, busca desvendar.

Mas isso tudo coincide com um encontro para solução de intricadas questões teológicas, previamente acertado para se dar na abadia, entre frades franciscanos e uma legação papal, da qual faz parte um dos grandes inquisidores da Igreja, Bernardo Gui (1261-1331). De uma erudição ímpar, cheio de citações em latim, “O nome da rosa” não é simplesmente uma história de crimes. Ele é também um maravilhoso estudo do Medievo, sobretudo da vida religiosa no século XIV e das ideologias – heréticas ou não – no seio da Igreja de então.

Ademais, “O nome da rosa” é uma estória sobre livros e sobre o poder infinito das palavras. A “rosa” do livro, palco dos acontecimentos narrados, é a grande biblioteca da abadia, na qual estariam guardadas – ou escondidas – maravilhas da escrita e da arte das iluminuras, de origem grega e latina, heréticas ou não, numa época em que, antes da invenção da imprensa por Gutenberg (1400-1468), a Igreja detinha, no Ocidente, o monopólio do saber. A biblioteca é um labirinto, infinito e cheio de desvios, como se assim fosse – de fato o é – a sabedoria da humanidade simbolizada nos livros. Aliás, sendo Eco professor de semiótica, um simbolismo especial perpassa a obra, com referências e homenagens a inúmeras figuras da literatura.

Alguém vai me dizer que “O nome da rosa” (1980) não é altíssima literatura detetivesca?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A mistura constitucional brasileira

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Uma das principais funções do Poder Judiciário mundo afora, e o Brasil não foge à regra, é realizar o controle (jurisdicional) da constitucionalidade das leis. À luz do direito comparado, existem dois modelos ou formas para realização desse mister: o difuso, conhecido como o modelo americano; e o concentrado, modelo desenvolvido na Europa continental.

As principais diferenças entre os dois modelos são as seguintes: o modelo americano é descentralizado porque o controle é confiado a todos os tribunais do país, concreto e por via de exceção, porque exercido por ocasião da aplicação da lei a um caso particular e a posteriori porque o controle recai sobre uma lei já promulgada; o modelo europeu, na sua feição clássica, é concentrado porque o controle é exercido por um tribunal único e especial, abstrato porque o juiz decide por via de ação contra a lei a despeito de qualquer outro litígio, podendo ser a priori (quando recai sobre uma lei ainda não promulgada) ou mesmo a posteriori (recaindo sobre uma lei já promulgada).

Todavia, embora bastante distintos na maneira de intervenção e poderes, eles podem coexistir em determinado ordenamento jurídico, como no caso exemplar do nosso país.

O controle difuso no Brasil tem caracteres bem próprios: (i) qualquer juiz ou tribunal pode apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativo; (ii) a apreciação pode ser requerida em qualquer processo, por qualquer das partes, por via de exceção na discussão do caso concreto; (iii) como efeito direto, há a não aplicação da norma tida por inconstitucional no caso concreto discutido em juízo, com eficácia, portanto, inter partes; (iv) de toda sorte, reserva-se ao STF a prerrogativa de atribuir repercussão geral ao julgamento de temas trazidos em recursos extraordinários que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa; (v) há, também, a competência do Senado para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (CF, art. 52, X); (vi) e há a possibilidade, ainda, em conformidade com o art. 103-A da CF, de o STF, no controle difuso de constitucionalidade, depois de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar “súmula” com efeito vinculante.

Já o controle concentrado, entre nós, dá-se através de cinco ações diretas: (i) ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual (CF, art. 102, I, “a”, primeira parte) ou municipal (CF, art. 125, § 2º), perante o STF (quando em confronto com a Constituição Federal) ou Tribunal de Justiça (quando em confronto com a Constituição Estadual); (ii) ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (CF, art. 102, I, “a”, in fine), perante o STF; (iii) a arguição de descumprimento de preceito fundamental (CF, art. 102, § 1º), perante o STF, para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público ou quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; (iv) ação direta de inconstitucionalidade por omissão, pela qual, declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional pelo STF, será dada ciência ao poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias (CF, art. 103, § 2º) ou em prazo razoável, excepcionalmente; (v) e ação direta de inconstitucionalidade interventiva, visando, em virtude da existência de ato local que viole princípio sensível da Constituição, à intervenção federal em Estado ou no Distrito Federal, por proposta do PGR e de competência do STF (CF, arts. 36, III, 34, VII, 102, I “a” e 129, IV), e à intervenção estadual em Município, por proposta do PGJ e de competência do respectivo Tribunal de Justiça (CF, arts. 35, IV e 129, IV).

Embora bastante distintos na maneira de intervenção e poderes, como visto, os dois modelos têm há décadas coexistido e interagido no Brasil, com a prevalência – pelo menos deveria ser assim –, até porque produtor de decisões com eficácia erga omnes e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário e para o Poder Executivo, do controle concentrado.

Mas essa mistura tem funcionado bem? Bom, isso é assunto para uma outra conversa.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Literariamente, não!

O combate às drogas ilícitas é atualmente um dos maiores desafios da humanidade. O problema do uso e do tráfico de drogas perpassa as fronteiras dos países. E atinge, sob os pontos de vista político, econômico, social, jurídico e sanitário, de modo gravíssimo, sociedades inteiras, famílias de todas as classes sociais e muitos milhões de indivíduos mundo afora.

Praticamente todos os países, o Brasil entre eles, possuem seus sistemas de combate às drogas. Nós temos o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD), instituído pela Lei 11.343/2006, que “prescreve medidas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”.

Mas esse combate tem funcionado? Acho que nem preciso dizer que não.

Programas, planos e ações direcionados à prevenção e à repressão ao tráfico/uso de drogas ilícitas, por mais bem-intencionados e elaborados que sejam, têm falhado. Mundialmente, as políticas não têm produzido bons resultados. Por mais que se tente reprimi-lo, o tráfico só aumenta, e se vai, da noite para o dia, do crack para a K9, viciando e matando nossa juventude, sobretudo a mais pobre. A política atual tem talvez até “incentivado” a formação de organizações criminosas, o recrutamento dos mais vulneráveis (e pobres) para o tráfico e o vício, a violência nas grandes e médias cidades e, sobretudo, uma sensação de frouxidão da lei (problema especialmente grave no Brasil).

Nesse cenário sombrio, muitos atores políticos e especialistas reavaliam antigas posturas. Até defendem uma diferente e mais suave abordagem, propondo a discussão de medidas que vão da descriminalização à liberação de condutas hoje consideradas como delito. É assunto do momento. Estes dias, por exemplo, o nosso Supremo Tribunal Federal andou julgando um recurso, com repercussão geral, em que se discute se o porte de maconha para consumo próprio pode ou não ser considerado crime e qual quantidade da droga diferenciará o usuário do traficante. Interessante. Mas polêmico.

Acho que devemos ter uma “open mind” para as mais diversas sugestões/contribuições. E, para além dos esforços dos órgãos do Estado, qualquer solução para a conscientização e tratamento dos gravíssimos problemas trazidos pelo tráfico/consumo de drogas ilícitas passa por uma responsabilidade compartilhada com os outros atores da sociedade. A impressa tradicional, as redes sociais, as organizações não governamentais, as escolas, a família e por aí vai.

Por estes dias, caiu em minhas mãos, para fazer o seu prefácio, o livro “Não, e pronto! No mundo das drogas, só uma resposta te leva ao final feliz”, de Kalline Pondofe Santana, uma maravilhosa contribuição da literatura nessa guerra contra as drogas. Esse romance realista, que também pode ser lido como ficção policial, é um alerta/libelo nesse grave contexto. É direcionado à juventude, às famílias, é verdade. Mas, deveras bem escrito, encantará a todos. É forte. É sobretudo tocante, já que, no decorrer das páginas, cada leitor encontrará um personagem para chamar de seu. O meu é Davi.

Sem querer fazer spoiler das histórias/estórias de Luizinho, Raquel, Danilo, Pedro, Davi, Letícia, Mãe Maria, João, sargento Antunes e delegado Rubens, o fato é que “Não, e pronto!”, entre muitas sacadas, filosoficamente nos alerta para uma coisa que nos parece simples, mas que é às vezes dificílimo: dizer “não”! Para quem a gente gosta. Para as tentações da vida. Entretanto, é desse “não” que dependerá um pouco – ou muito – a felicidade das nossas vidas.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Compartilhamento de poderes

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Hoje, no Brasil, muito se reclama de uma invasão recíproca de atribuições entre os poderes do Estado. Ora num sentido, ora noutro, fala-se em “presidencialismo de coalizão”, em “parlamentarismo branco” e até numa “ditadura do Judiciário”. Há muito exagero nisso.

Formulada hodiernamente por Montesquieu (1689-1755), a teoria da separação dos poderes, apesar de fundamental para o poder político atuar, não merece, como disse o nosso Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1934-), a reverência quase religiosa que por vezes recebe. É uma receita de liberdade, cujos contornos dependem das circunstâncias políticas dadas. E a concepção contemporânea da teoria da separação não é tão rígida a ponto de impedir totalmente o exercício, por um dos poderes do Estado, de função, em regra, atribuída a outro Poder.

De fato, nos dias de hoje, temos presenciado o desenvolver de uma nova concepção do princípio da separação dos poderes. É um novo constitucionalismo, que abandona a ideia da rígida séparation des pouvoirs e consagra a ideia de uma sharing of powers, abrindo caminho para a superação do rígido esquema, que tenderia tão somente a reservar ao Poder Legislativo o trato abstrato e genérico dos direitos por meio da legislação, ao Poder Executivo a completa gerência das políticas de Estado e a confinar o Poder Judiciário ao âmbito da resolução dos negócios/conflitos concretos e individuais.

No constitucionalismo brasileiro, os exemplos de exercício, por um dos poderes do Estado, de função típica de outro, são bastante conhecidos. Vou me ater aqui, por ser “minha praia” (leia-se “conhecer um pouco melhor”), ao exercício, pelo Poder Judiciário, de funções “típicas” dos outros poderes.

Começo pelo próprio controle de constitucionalidade concentrado e em tese de leis e atos normativos, como exemplo até extremo, mas ao qual ninguém se opõe, que representa, muitas vezes, uma atividade legislativa negativa, para usar a expressão de Hans Kelsen (1881-1973).

Sigo adiante com uma questão mais controversa: essa nova ideia de separação de poderes implica o desenvolvimento de uma nova concepção do papel do Poder Judiciário nas políticas de Estado. Até porque, no Judiciário brasileiro de hoje, vê-se um visível incremento das demandas de ordem “coletiva” (ações diretas em controle de constitucionalidade concentrado de diversos tipos, ações civis públicas, ações populares etc.). Embora essa mudança de paradigma não pressuponha o abandono da tutela individual ou das técnicas a ela ligadas, ela significa que o juiz contemporâneo não trata exclusivamente de casos individuais, mas também de casos que têm um impacto de massa, envolvendo uma parcela significativa de qualquer sociedade.

E aqui anoto uma lição que aprendi com Jean Dabin (1889-1971): os juízes e tribunais constituem Poder e são claramente depositários de uma parte da autoridade pública, sendo pelo Estado designados para, em seu nome, administrar a justiça. A lei que juízes e tribunais aplicam é basicamente a lei do Estado, quer a encontrem formulada em normas, quer tenham que elaborá-la eles mesmos. Seria equivocado considerar como não político o Poder Judiciário quando ele, na ausência de uma regra legal, tem a permissão – e o dever – de suplementar o Poder Legislativo, que é eminentemente político. É equivocado defender a completa separação do Poder Judiciário dos outros poderes do Estado, sob o argumento de que os Poderes Legislativo e Executivo representariam um poder político, enquanto que o poder dos juízes e tribunais seria de natureza estritamente legal, assim como é um erro opor a lei – a lei do Estado – à política de Estado.

O problema, a meu ver, surge quando se confunde a política do Estado e da sociedade com ideologias, sejam elas quais forem, ou mesmo com a política partidária. Isso não é compartilhamento de poderes; é divisão do Estado e da sociedade.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London
KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A província comparada

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Outro dia, fui convidado pelo seu autor, Paulo Caldas Neto, para prefaciar o livro “Palimpsestos: ensaios”, ainda no prelo. Fiquei muito feliz. O livro é interessantíssimo. Um belo exemplo da arte pluritemática de Michel de Montaigne (1533-1592). E se assim o é, acho que a razão está, para além da cultura e do estilo do autor, no uso, com grande eficácia, na maioria dos ensaios, da “ferramenta” da comparação literária. O autor mistura/compara autores, obras e temas de diversas literaturas, a exemplo da inglesa e da grega, com a nossa produção, tanto nacional, como regional ou mesmo provincial. São feitas incursões de caráter histórico nas literaturas comparadas, de maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, que identifica os elementos da literatura de outros povos, de outros países, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa literatura, assim como os nossos pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Gosto dessa perspectiva ampla e multicultural da literatura. Jamais em competição com as outras literaturas, mas em parceria com elas, ela nos ajuda a chegar a um julgamento crítico e equilibrado da nossa produção intelectual. E isso é mais do que muito.

Tomemos como exemplo de comparação literária o ensaio “Opereta em dó maior a um humanismo decadente: o riso em Laurence Sterne e Machado de Assis”, que versa especificamente sobre a influência do “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) sobre “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), obras clássicas dos autores citados, respectivamente. Eis um trecho que é uma ode à comparação literária: “No caso do riso, fica bem mais simples se repensar valores culturais e sociais por ser universal, e o Universalismo é que torna a linguagem também uma a todos os povos. Mesmo que haja um engajamento sociopolítico, conforme se constatou primeiramente na prosa de Laurence em comparação depois à de Machado, o perfil universalizador deve prevalecer em função da unidade; nós, seres de um processo histórico, somos marcados por nossas atitudes e vícios, registrados depois ou por um historiador ou por artista. O intercâmbio entre os discursos fortalece a visão de que todos estamos num palco, guiados por uma educativa comédia a qual assinamos com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Está aí o equilíbrio que rege quem podemos ser”.

Um mérito notável de “Palimpsestos” é comparar a nossa literatura regional, muitas vezes dita “popular”, valorizando-a, com as “literaturas universais”, como no ensaio “Máscara greco-sertaneja: o ressurgimento do humor no teatro de Ariano Suassuna”. Lá consta uma frase lapidar:  “pelas mãos do Popular, transformar-se-á o Erudito”. E “Palimpsestos” tem o mérito – ainda maior – de focar a nossa província, o Rio Grande do Norte, resgatando, por exemplo, a obra do poeta, violonista e cantor Lourival Açucena (1827-1907), boêmio que alegrava as rodas de conversa, as noitadas ao luar e as solenidades da Natal do seu tempo, mas hoje infelizmente esquecido.

Devo registrar que esse tipo de regionalismo – ou mesmo de provincialismo – é de ouro. Um provincialismo à moda de Câmara Cascudo (1898-1986), “O provinciano incurável”, que, em crônica com esse título, publicada lá pelo final da década de 1960 (revista Província, IHGRN, 1968), confessava: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais. Nunca pensei em deixar minha terra. (…). Fiquei com essa missão. Andei e li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”.

Esse provincialismo, de quem vive e trata da sua terra por amor a ela, sobretudo quando a faz objeto de comparação multicultural, é muito mais do que muito. Decerto porque, parafraseando o próprio Cascudo, ele é duramente forjado em “Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa”. Mas também porque, como disse o enorme Leon Tolstói (1828-1910), “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Uma comparação literária

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Hoje mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, a literatura comparada deve ser uma das principais “parceiras” daquele que pretende analisar as realidades da cultura geral e do seu povo. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de cultura/literatura comum a todos os povos ditos “civilizados”.

Essa melhor utilização da literatura comparada, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou microcomparações. A primeira refere-se ao estudo de duas ou mais “literaturas” (a brasileira e a norte-americana em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de aspectos, temas, obras ou autores de duas ou mais “literaturas”. Deve-se notar, ainda, que essa comparação pode ser horizontal ou vertical, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nas “literaturas” comparadas. De fato, na literatura, a comparação tem muito a nos oferecer. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, a literatura comparada nos ajuda a identificar os elementos essenciais da literatura de outros países, de outros povos, de outras línguas, suas semelhanças e diferenças para com a nossa, assim como seus pontos fortes e fracos no panorama cultural universal. Jamais em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, a literatura comparada pode ter uma função de análise e ajudar a se chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico de nossa produção intelectual, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural da literatura.

Tomemos aqui, como singelo exemplo para comparação literária, a seguinte relação entre a obra do irlandês Laurence Sterne (1713-1768) e do nosso Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

O mulato carioca Machado de Assis é convencionalmente tido como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. É quase uma unanimidade, acredito. O grande crítico norte-americano Harold Bloom (1930-2019), aliás, tinha Machado de Assis como o maior escritor negro de todos os tempos. Uma de suas obras-primas é o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). E a propósito, em 2020, a prestigiosa revista The New Yorker, em virtude de uma nova edição de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, deu à resenha do livro o consagrador título: “Redescobrindo um dos mais espirituosos livros jamais escritos”.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é alegadamente inspirado no “Tristram Shandy” (“The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman”, 1759-1767) de Sterne. Mesmo que se tenham estórias diversas para cada um dos livros, e mesmo que seus contextos sociais e culturais sejam diversos (uma Europa com duzentos anos de diferença para o nosso Brasil), há, sem dúvida, fortes pontos de contato/inspiração. A “forma livre de jogar as ideias”, as digressões e o humor (embora um humor mais sarcástico em Machado e um mais ingênuo/sentimental em Sterne) são amplamente reconhecidos. Pode-se até de dizer que Machado “roubou” a ideia ou concepção do romance de Sterne, que, por sua vez, já a teria “furtado”, em parte, do Dom Quixote (1605) de Miguel Cervantes (1547-1616).

 Mas não tenham isso como demérito para o nosso maior escritor. Com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de fato nos presenteou com um romance inovador – experimental, posso dizer –, tido como o marco inicial do realismo (mágico?) na literatura brasileira, até então presa ao romantismo. Um ponto de virada, para melhor, na obra do Bruxo do Cosme Velho. As ousadias formais – basta lembrar que o narrador é um “defunto autor”, sem compromisso com a cronologia do tempo – e o humor implacável são mesmo revolucionários. E, para além dos aspectos formais, o romance também encanta pelo seu conteúdo: pretensa autobiografia, é uma crítica, refinada mas sem concessões, da hipocrisia da sociedade brasileira de então (e de hoje?). Por detrás do humor, revela o pessimismo do autor com tudo que ele enxerga. É um romance filosófico e moral, que combina diversão e profundidade com natural equilíbrio.

Afinal, e não canso de repetir, já dizia o enorme Picasso (1881-1973): “Bons artistas copiam, grandes artistas roubam”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL