A velha rua

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Charing Cross Road é tradicionalmente conhecida como a “rua das livrarias” de Londres, sobretudo em razão dos seus muitos comércios de livros usados ou mesmo raros (e aí talvez esteja a diferença entre os sebos e os antiquários de livros). De tão famosa, entre outras coisas, deu título a um livro, “84 Charing Cross Road”, de 1970, da escritora Helene Hanff (1916-1997), que foi bater no cinema em 1987, com craques como Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench nos papéis principais. Livro e filme contam sobretudo uma estória de amor aos livros. Recomendo-os.

Quando cheguei a Londres para o meu doutorado, em 2008, ainda encontrei Charing Cross Road fornida de muitas livrarias e sebos. No meu primeiro ano por lá, morava bem pertinho, na Great Queen Street, em Covent Garden. Achava os comércios de livros de Charing Cross o máximo. E terminava quase todos os meus dias/noites zanzando por lá.

Havia lojas gigantes como a Blackwell’s, onde, por encomenda do saudoso Dr. Ernani Rosado, comprava coleções de filmes em DVDs (ainda assistíamos a filmes assim), de craques como Alfred Hitchcock (1899-1980), com títulos ainda do seu “período inglês”, ou David Lean (1908-1991), outro gênio do cinema britânico. Com a recomendação do Dr. Ernani, adquiria coisitas para mim também. Havia também comércios bem especializados, como a adorável Murder One Bookshop, especializada, como o nome mesmo dá a entender, em estórias detetivescas e policiais. Eu adoro esse gênero de literatura, confesso. E havia, claro, os muitos sebos, que xeretava, pulando de porta em porta, descendo e subindo escadas, atrás dos títulos mais escondidos.

Ainda me recordo com saudade do meu achado, nos sebos daquela rua, de uma edição de bolso de “Ten Little Niggers” (também publicado em inglês, para evitar o título politicamente incorreto, como “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”), da minha Agatha Christie (1890-1976). O título “Ten Little Niggers” foi praticamente banido em livrarias e até em sebos. Comprei o danado, antigo mas conservado, em um dos comércios dali (já não lembro qual), por 3 libras esterlinas. Na Internet, achei uma edição igual por 730 libras. Guardo o meu exemplar com muito carinho.

Todavia, foi ainda nos meus anos em Londres, numa dessas infelizes coincidências, que fui observando, talvez em razão do crescimento do mercado dos livros digitais, talvez simplesmente porque as coisas inexoravelmente mudam, a decadência do comércio de livros de Charing Cross Road. Alguns comércios foram fechando as portas, como a Murder One Bookshop e, um pouco depois, até mesmo a grande loja da Blackwell’s.

Tendo estado agora novamente em Londres pelo período da Páscoa, achei as coisas ainda mais tristes. A decadência dos comércios de livros físicos parece que atingiu Charing Cross Road em cheio. Outras livrarias e sebos se foram; as que ficaram, como tenho dito, só pelejam. No dia em que estive por lá, empurrando o carrinho de meu pequeno João (uma trabalheira dos diabos), vi que a fachada do quarteirão onde ficam os sebos sobreviventes estava toda em reforma. Eram tapumes por todas as lojas. Usei para mim mesmo a desculpa de estar ali com João, de ser muito difícil transitar com ele por escadas e estantes e fugi de Charing Cross. Não quis sequer ir à enorme livraria Foyles de Charing Cross, que, fundada em 1903, autoproclama possuir a maior quantidade de diferentes livros em estoque da Europa (coisa de 200 mil títulos, afirma, mas não sei dizer se é vero ou não). Espero que a reforma venha salvar ou, ao menos, dar sobrevida aos queridos sebos.

Na verdade, desanimado com a velha rua das livrarias, preferi ir caminhar em Cecil Court, ruela de pedestres que liga Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden. Lindinha, pitoresca, parecendo ter parado no tempo, ela continua tomada de pequeninas lojas, livrarias e sebos especializados em livros antigos, primeiras edições, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Sobre essa ruela mágica falaremos qualquer dia desses. Prometo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A hora de pensar o Judiciário

Foto: reprodução – O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Kakay 10.mai.2024
“Para fechar o Supremo, basta um cabo e um soldado.” –De um fascista golpista Com o recente julgamento da juíza Gabriela Hardt pelo Conselho Nacional de Justiça, veio à tona, e virou meme, a maneira deselegante e autoritária com que ela se comportou no interrogatório do então ex-presidente Lula em Curitiba. A frase que correu o Brasil foi proferida em tom de ameaça ao réu: “Se o senhor começar nesse tom comigo, a gente vai ter problema”.

À época, os bolsonaristas vibraram e a primeira-dama chegou a usar uma camiseta em claro deboche. Costumo dizer, parafraseando o poeta baiano, que: “A vida dá, nega e tira”.

Hoje, a doutora é conhecida como “juíza copia e cola”, responde ao seu órgão disciplinar e é investigada criminalmente por suas ações enquanto magistrada da Lava Jato, substituta da 13ª Vara Federal da República de Curitiba. Republiqueta antes gloriosa e que agora se esvai no ralo sujo da história. E o Lula é, pela 3ª vez, presidente da República.

Em recente entrevista ao ICL, o assunto foi abordado e notei certa perplexidade dos jornalistas pelo tom arrogante adotado pela magistrada. Cumpre anotar a maneira elegante e altiva do interrogado, que demonstrou sua contrariedade pelo tom desnecessário da juíza, mas continuou se portando com classe e dignidade. Fiz questão de ressaltar, ao ser indagado, que, infelizmente, na realidade essa arrogância é uma marca de boa parte do Judiciário.

Os Tribunais Superiores, geralmente, mantêm uma relação mais respeitosa. Talvez, por isso, ficaram marcadas no julgamento do Mensalão a agressividade e a deselegância do então presidente do Supremo com o advogado Luiz Fernando Pacheco, ao assumir a tribuna requerendo a apreciação de um pedido de liberdade do seu cliente, o deputado José Genoino. O advogado, altivo e educado, apenas pedia o óbvio: que o processo fosse julgado. Foi retirado da tribuna e quase foi preso.

Não desconheço que existem inúmeros colegas atrevidos e que também abusam na lida diária do processo. Sem contar os integrantes do Ministério Público que chegam a instrumentalizar a poderosa instituição para o exercício de um poder que a Constituição não lhes outorga. É só nos lembrarmos do grupelho até pouco tempo coordenado por Deltan Dallagnol, que desonrou o cargo. Mas a reflexão sobre a postura dos juízes, seja de que grau for, é a que merece uma atenção toda especial. Em última análise, são eles que detêm o poder, quase sagrado, de decidir sobre a liberdade ou sobre a prisão de um cidadão. E sobre bens, patrimônio, guarda de filhos, direitos políticos, elegibilidade, enfim, tudo o que mais interessa. Como nos ensinou o mestre Rui Barbosa: “O direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a Justiça, que o do mais alto dos poderes”.

Faço essa reflexão por constatar que o papel do Judiciário mudou no imaginário da população. Há tempos, vem acontecendo um fenômeno de abertura do Judiciário em relação ao cidadão. A criação da TV Justiça levou os julgamentos para dentro das casas dos brasileiros. Embora eu seja um crítico ácido do televisionamento dos processos penais, essa é uma realidade consolidada. A TV Justiça pode ter, e tem, importante papel ao transmitir processos como a discussão sobre drogas, aborto, marco temporal e tantos outros de interesse comum. Nunca, porém, sobre o processo penal, no qual ocorre um evidente pré-julgamento e uma condenação prévia sem direito a recurso. A superexposição é uma punição acessória sem previsão legal. E irrecorrível. Advoguei para o publicitário Duda Mendonça, no Mensalão, e conseguimos sua absolvição. Quando fomos comemorar, ele, experiente, observou: “No imaginário popular, eu sou um mensaleiro. Nunca vou perder esse estigma”.

Com a assunção de um governo fascista, em 2018, houve uma clara e triste cooptação de boa parte do Poder Legislativo. Em um momento dramático da história brasileira, convivemos com uma tentativa de desestabilizar a democracia e com a destruição sistemática e planejada de todos os avanços sociais e democráticos. O objetivo, hoje inquestionável, era a derrocada do Estado Democrático de Direito e a instalação de um governo militar armado. Um regime de força. Uma ditadura.

Nesse grave momento, o Poder Judiciário assumiu o papel de guardião da Constituição e, na prática, impediu o caos. Para tanto, com o apoio de parte da sociedade e de segmentos democráticos, teve que se expor muito além do que seria o desejado em uma normalidade institucional. E fez o que deveria ter sido feito com desassombro, coragem, ousadia e usando a Constituição como uma arma. É hora de voltarmos a um tempo em que esse protagonismo não tem mais razão de ser. Eu sempre fui um crítico leal, mas ferrenho, desse Poder Judiciário patrimonialista, conservador e machista. Porém, vi-me na contingência de ser seu maior defensor nos últimos tempos. Já não vejo a hora de voltar a poder criticar… “Pois vieram milhares de golpistas armados de paus, pedras, barras de ferro e muito ódio. E não fecharam nem o Supremo, nem o Congresso, nem a Presidência da República. Pelo contrário. As instituições e a própria democracia saíram fortalecidas da tentativa de golpe.”.

–Discurso do presidente Lula na abertura do Ano Judiciário de 2024.

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Dia das Mães

Padre João Medeiros Filho

Durante o mês de maio, os cristãos cultuam de modo especial Maria Santíssima. No primeiro domingo desse mês, em várias comunidades, celebra-se a invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens, o orago mais antigo da Virgem de Nazaré. E no segundo domingo, é festejado o dia de nossas mães terrenas. Em plena primavera no hemisfério norte, quando as flores desabrocham, quis a Igreja comemorar a beleza de Maria e nossas genitoras, “rosas de Deus”, na expressão de Santo Ambrósio. A patrística greco-latina é rica em textos e comentários a respeito daquelas que nos transmitem a vida. Santo Irineu, primeiro bispo de Lyon, referia-se a elas como “face terrena do Divino”. Ou, de acordo com o patrono da Igreja Copta, Clemente de Alexandria, “carícia celeste na terra dos homens.” E São João Crisóstomo as denomina “sol de nossas vidas, luz de nossos dias, estrelas de nossas noites e travessias.”

Mais do que justo e merecido é esse preito de gratidão, prestado a todas as mães da terra. É importante proclamar o seu amor incondicional, sua doçura ímpar, seu carinho inefável e renomado desvelo. Nada melhor para simbolizar tais sentimentos do que a figura daquelas que nos geraram. Participantes do mistério da criação e clemência divina entre os homens, elas encarnam a benevolência e benignidade do Pai. Orientam nosso destino de filhos do Eterno e Infinito.

É difícil descrever o quanto são especiais. São poemas divinos no prosaico dos homens. Pertencem ao Transcendente. Dotadas de sensores supersensíveis, chegam a captar o que não foi dito. Seu olhar penetrante mergulha no âmago dos filhos. Rastreiam pelo seu timbre de voz as marcas da dor e do sofrimento “Ao nos tocar, medem a temperatura de nossa alma”, conforme afirmou nosso dileto Padre Gleiber Dantas de Melo. Assim, ultrapassam qualquer ciência. O próprio Jesus Cristo, tendo dispensado os bens terrenos, não se privou do colo materno e do sorriso meigo Daquela que Ele nos legou também para conceder a sua bênção. “Eis aí o Teu Filho. Eis aí a Tua Mãe” (Jo 19, 27). Disse Cristo a Maria e João, no patíbulo da cruz, antes de dar a sua vida por nossa salvação. Deus sabia que um coração materno pode expressar, de forma perfeita, seu afeto. De maneira inspirada, João Paulo I afirmou diante de uma multidão na Praça de São Pedro: “Deus é Mãe.” E no século III, o teólogo São Cipriano de Cartago, arrimado no profeta Isaías (cf. Is 49, 15), definiu Maria Santíssima como “rosto temporal e materno de Deus.”

É esse lado sobrenatural de nossas mães que se pretende exaltar no segundo domingo de maio. É a tradução da meiguice de Deus em forma humana, que nesse dia é proclamada, ao celebrar quem nos gerou. A grandeza do Criador torna-se então acessível a todos os homens. A munificência e capacidade de amar de Deus manifestam-se numa representação terrena. O Pai celeste quis nos legar um sacramento universal de sua benevolência. Por isso, concretizou o seu plano no coração materno.

O Dia das Mães – apenas para destacar um dentre todos do ano – é o memorial da sublimidade da vida. Lembrança da suprema beleza eterna, que Deus reserva para os seus filhos. Não poderia deixar de existir no calendário uma data que marcasse nosso reconhecimento e gratidão por aquelas que participam do tesouro da bondade suprema. As mitologias greco-romanas e orientais apresentam deusas-mães. O cristianismo presenteia-nos com duas mães: a celestial e a terrena para nos acompanhar em todos os momentos e dimensões de nossa caminhada. Mãe é Amor. E Deus o é em plenitude, como define o evangelista João em uma de suas Cartas (cf.1Jo 4, 8). Que Nossa Senhora cubra com o seu manto sagrado aquelas que nos transmitiram o dom da vida, protegendo-as sempre. A Virgem Imaculada é como uma centelha no coração daquelas que traduzem a amorosidade incomensurável de nosso Deus, que por elas também se faz presente na face da terra. “Não rejeites o ensinamento de tua mãe. Quando caminhares, te guiará; quando dormires, te guardará; e quando acordares, falará contigo” (Pr 6, 21-22).

A mudança do cenário

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Pela época da Páscoa, estive em Londres com a minha família. A ideia era levar o pequeno João para conhecer a cidade onde o pai, há mais de uma década, havia morado e estudado quando do seu doutorado. Foi cansativo, é verdade, mas valeu a pena. A alma de João – a “imaginação” talvez seja a palavra justa – não é pequena.

É verdade que eu já havia estado em Londres outras vezes desde que terminei o doutorado. Mas, desta vez, achei as coisas bem diferentes. Vi muitos moradores de rua, algo de chamar mesmo a atenção. E achei tudo muito caro. Caríssimo, posso dizer, para nós brasileiros, com uma libra valendo quase sete reais. Amigos que moram por lá nos disseram que a inflação dos últimos anos foi terrível. Para se ter uma ideia, achamos Paris, para onde fomos em seguida, até “barata”. E já desistimos dos planos de estudar inglês, ano vindouro, na capital do Reino Unido.

Mas minha epifania sobre a mudança no “cenário” londrino veio mesmo quando vi um cartaz anunciando a peça “Long Day’s Journey into Night” (“Longa jornada noite adentro”, entre nós), obra-prima do americano Eugene O’Neill (1888-1953). Para quem não sabe, “Long Day’s Journey into Night” foi escrita em 1941. Mas, autobiográfica, O’Neill deixou instruções para que só fosse publicada 25 anos após a sua morte e, mesmo assim, nunca fosse levada aos palcos. Suas instruções, ainda bem, não foram seguidas à risca. A peça teve a sua première em Estocolmo, Suécia, em fevereiro de 1956 (e em sueco, curiosamente). No mesmo ano, estreou na Broadway. Deu a O’Neill o prêmio Pulitzer de 1957.

Lembro-me bem que, morando então em Londres, fui assistir a “Long Day’s Journey into Night” no Apollo Theatre, em Shaftesbury Avenue, bem pertinho de Piccadilly Circus. A opinião dos críticos ingleses era unânime: David Suchet e Laurie Mettcalf davam um show na refinada produção da obra de O’Neill. Some a isso o fato de que eu era fã de David Suchet – na verdade, sou –, pela sua interpretação de Hercule Poirot, no seriado “Agatha Christie’s Poirot” da rede de televisão ITV. Mas, desta vez, a peça, com Brian Cox interpretando a personagem principal James Tyrone, estava em Cartaz no Wyndham’s Theatre, localizado em Charing Cross Road, rua famosa por outrora abrigar as inúmeras livrarias especializadas e de segunda mão da metrópole londrina.

Não sei se foi a mudança dos teatros e dos atores principais (embora tanto David Suchet como Brian Cox sejam craques do métier), não sei se foi a lembrança do tom genialmente desesperançoso de “Long Day’s Journey into Night” – um jogo de culpas, mas, sobretudo, de dissimulações; esconde-se a tuberculose; esconde-se a dependência à morfina; brinca-se com a bebida, apesar do alcoolismo na família; uma das últimas cenas, em que o pai conta ao filho enfermo, ambos dominados pela “emoção” do álcool, as desventuras de sua infância miserável e sua ascensão na vida, é mais que tocante; e a peça prende a nossa atenção até a cena final, quando a família termina reunida em torno da mãe, que, tomada pela morfina, parece um fantasma –, mas, não mais do que de repente, vi que até a Charing Cross Road que eu conheci, nos meus primeiros anos de Londres, ainda como a “rua das livrarias”, havia também mudado de cenário.

Uma mudança, sob o meu ponto de vista de amante dos livros, para muito pior. Muitas livrarias já se foram; as que ficaram, pelejam. Uma decadência que parece atingir os comércios de livros físicos por todo o mundo, mas que, sob o impacto da recordação do desenlace de “Long Day’s Journey into Night”, senti de uma maneira muito intensa, como se defronte à velhice e à doença de um ente querido, cuja dor e, sobretudo, o destino, nem mesmo a morfina resolve.   

É verdade que alguns comércios de livros de Charing Cross Road, três ou quatro, ainda resistem. E é verdade que a famosa Cecil Court, rua de pedestres ligando de Charing Cross à St. Martin’s Lane, em direção à Covent Garden, ainda está ativa, com suas pequenas livrarias independentes, muitas especializadas em livros colecionáveis, primeiras ou raras edições, mapas e gravuras antigas, artigos de numismática e por aí vai. Talvez sejam até mais antiquários do que livrarias. Ainda vale a pena passear por lá xeretando as vitrines. Nossa alma, quanto aos livros, nunca deve ser pequena.

Mas esse é o cenário para uma próxima – e espero não tão saudosa – crônica.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Aquele grupo tá doendo em mim

grupo de idosos caminhando em praça
O mundo de hoje exige das pessoas um ritmo que afasta a reflexão e impõe uma velocidade que impede a maturação das ideias e dos afetos, escreve Kakay.

Por Kakay

“As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão.” –Carlos Drummond de Andrade.

O talentoso compositor, poeta, músico, cantor e artista Caetano Veloso é também um grande contador de causos. É uma delícia ouvi-lo falar com sua métrica e voz inconfundíveis. Tão bom quanto escutar a sua irmã, a diva Maria Bethânia, recitar Fernando Pessoa. Impagável.

Caetano conta que, uma vez, chegou na casa de Caymmi e esse disse que tinha algo genial para mostrar. Foi levado a um quarto onde tinha uma cadeira na frente de um ventilador. Ele não entendeu e perguntou o que era.

Ouviu como resposta que Caymmi havia colocado ali aquela cadeira para nela se sentar com o ventilador ligado virado para ele. Assim, ele pensava a vida e deixava a criatividade tomar conta. Penso que esse fato e esse diálogo só poderiam ter acontecido na Bahia, terra abençoada. Escrevo isso para refletir sobre como o mundo de hoje exige das pessoas um ritmo que afasta a reflexão e impõe uma velocidade que impede, de certa forma, o tempo certo da maturação das ideias e até dos afetos. Cansa o mundo de notícias 24 horas, o número chocante dos grupos de WhatsApp e as respostas que, muitas vezes têm que se antecipar às perguntas.

Os detalhes da vida, esses que compõem um certo caleidoscópio e que nos define, ficam à beira do caminho. Sem tempo para nós mesmos, deixamos de ter tempo para os outros. Como nos lembrava o matuto Manoel de Barros: “Ando muito completo de vazios”. E a vida segue, independente, o seu curso inexorável. Sempre que viajo bem cedo e vou para o aeroporto em Brasília, pego um trajeto que mostra uma imagem, para mim, tocante. E que me faz pensar na finitude da vida.

Em uma reta em frente a um conjunto de casas, eu passava, há anos, por um grupo de senhores que fazia uma caminhada matinal. Conhecia vários deles. Andavam com desenvoltura e conversavam avidamente. Era sempre o mesmo grupo, perto de 10 amigos. Ao longo do tempo, os cabelos foram rareando e ficando brancos, os ombros curvados, os passos mais lentos e cuidadosos. Mas, principalmente, e que me dava certa angústia, foram diminuindo o número dos companheiros de caminhada.

Agora, restam 2 que andam bem vagarosamente, como que querendo segurar o tempo, impedindo-o de passar. Bem curvados, eles parecem que olham para o chão, talvez à procura dos passos dos que já se foram. Essa imagem é um quadro que dói em mim. É sobre a inevitabilidade do transcorrer do tempo. Hoje, passei outra vez correndo. Uma São Paulo densa e tensa me espera. Como sempre, ela não sabe de mim, eu é que corro para os inúmeros compromissos que me aguardam na cidade indecifrável. Só que desta vez não estou indo trabalhar como sempre.

Acompanho uma pessoa amada para ir fazer exames de saúde. Talvez, por isso, tenha sentido uma vontade incontrolável de descer do carro e me juntar aos 2 companheiros que resistem à caminhada matutina. Na vã esperança de sermos 3 a andar com passos trôpegos, mas amigos. Com a ilusão de, ao mudar, pela primeira vez, o número para uma quantidade maior de caminhantes, pudesse influenciar no tempo. Senti-me com uma vontade incontrolável de voltar a roda da vida. Para um tempo no qual a gente não corria tanto e se permitia mais. Não desci e nem tive coragem de olhar para trás, com medo de ver aquilo que está para acontecer: um companheiro sozinho a resistir em nome do velho grupo. É passada a hora de parar de correr tanto e sentar em uma cadeira em frente a um ventilador. Ou, talvez, seja a hora de me mudar para a Bahia.
Lembrando-nos da nossa Clarice Lispector:

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”

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Remoer o passado ou respeitar o presente?

Foto: reprodução

Por Antonio Carlos de Almeida Castro, o advogado criminalista, Kakay.

O argumento usado pelo Presidente Lula e por alguns ministros sobre a não instalação da Comissão Nacional da Verdade, no sentido de que não é hora de remoer o passado, parte de uma premissa absolutamente falsa. Segundo estudo feito durante o governo Dilma, dos 243 desaparecidos pela ditadura, só 33 de foram encontrados os restos mortais! Ou seja, não se trata de remoer o passado, mas de enfrentar o presente. Essas famílias de brasileiros têm o direito de obter hoje, no presente, agora, o mais urgente possível, uma resposta do Estado.

No passado, a cruel e sanguinolenta Ditadura matou e torturou. Depois, houve uma anistia na qual os assassinos e os torturadores foram perdoados. Se não perdoados, pelo menos não foram enfrentados e admoestados. É este o momento, e já é longe demais, de darmos uma explicação, não só aos familiares e aos amigos, mas a todas as pessoas que têm ainda um pouco de formação humanista. Não se trata de esquerda e direita. O que se coloca é se o Estado deve respeitar o básico: o direito de deixar claro para todos onde, quando e como foram assassinados, torturados, enterrados ou desaparecidos os brasileiros e brasileiras que se opuseram à Ditadura.

Para quem espera há longos 39 anos, pode ser tarde, mas ainda é tempo. Uma das causas do surgimento do bolsonarismo foi exatamente a inação do Estado no confronto a essa gravíssima questão. O Bolsonaro era um militar golpista. Tentou dar um golpe com um atentado terrorista e foi expulso do Exército. O próprio General Geisel afirmou que ele era um mau militar. Porém, nunca foi realmente punido. Ao contrário, ganhou o apoio de grupos de extrema direita e de parte da mídia para exaltar a tortura, o racismo e a misoginia.

Todos sabem que é o Estado o responsável por tudo. Até por isso, não pode se omitir. O coroamento da não ação e do não esclarecimento por parte do Estado desembocou na longa noite de horror do 8 de janeiro. Como nunca foram responsabilizados, foi normal e natural tentar voltar ao estado de ruptura constitucional. Agiram acobertados pela covardia histórica do Estado Brasileiro. E com a certeza da cumplicidade por parte desse Estado. É necessário fazermos um enfrentamento para não sujarmos as mãos pela omissão.

Sempre nos lembrando do mestre Ruy Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”.

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Relíquias de Santa Teresinha

Padre João Medeiros Filho

As relíquias de Santa Teresinha do Menino Jesus estarão expostas à visitação, de um a cinco de maio próximo, na Arquidiocese de Natal (RN), mormente no Carmelo de Emaús (Parnamirim). Guardamos com carinho lembranças materiais inestimáveis de nossos pais e pessoas queridas. Assim age a Igreja com os restos mortais dos santos e beatos, bem como objetos por eles usados. São sinais indicativos para a veneração dos fiéis. De Leão XIII a Francisco, os pontífices manifestaram encantamento com o testemunho cristão da Santa de Lisieux. Esta entrou para a vida religiosa, aos quinze anos de idade, com o beneplácito de Leão XIII. “É a maior santa dos tempos modernos”, declarou Pio X, exaltando a profunda espiritualidade da jovem carmelita. Um dos últimos atos desse Pontífice foi abrir o processo de beatificação da jovem religiosa. Bento XV introduziu a expressão teológica “infância espiritual”, referindo-se à vivência mística de Thérèse Martin. Ela seguiu o ensinamento do Mestre: “Se não vos converterdes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18, 3).  A infância espiritual consiste na confiança em Deus e no entregar-se nas mãos do Pai.

Pio XI chamava Teresa de Lisieux “Estrela do meu pontificado.” Mesmo antes de ocupar o trono de Pedro, devotava-lhe profunda reverência. Elevou-a à honra dos altares, aos 17 de maio de 1925, constituindo-a padroeira das missões, em 14/12/1927. Desde cedo, o culto àquela eleita de Deus se fez presente no RN. Nosso terceiro bispo diocesano, Dom José Pereira Alves e o primeiro arcebispo metropolitano, Dom Marcolino de Souza Dantas, dedicavam-lhe especial devoção. O primeiro educandário feminino de Caicó, construído em 1925 pelo Cônego Celso Cicco recebeu, por sugestão de Dom José Pereira, o nome de Santa Teresinha. Em 1930, Dom Marcolino inaugurou o Santuário do Tirol, elevando-o posteriormente à condição de paróquia. Apôs o nome da santa carmelitana como co-padroeira. Ela marcou tanto a piedade dos fiéis, a ponto de denominarem até hoje Igreja de Santa Teresinha, geralmente omitindo Nossa Senhora das Graças, também co-patrona.

Pio XII manteve correspondência assídua com o Carmelo de Lisieux. Enquanto cardeal, ali esteve diversas vezes a fim de presidir solenidades. Em 1934, foi designado legado papal “a latere” no Congresso Eucarístico Internacional de Buenos Aires. Levou consigo uma relíquia de Teresa à qual confiara a sua missão. Durante o tempo em que viveu no Vaticano, mantinha contato com as carmelitas Pauline (Madre Agnes) e Celine (Ir. Geneviève), irmãs biológicas de Teresinha. “Esta discípula do Menino Jesus nos conduz ao porto seguro”, assim se expressou João XXIII. Na audiência geral de 16 de outubro de 1960, proclamou: “Ela foi grande por ter sabido, na humildade, simplicidade e constante abnegação, colaborar para o bem de inúmeros fiéis.” Paulo VI chegou a afirmar: “Nasci para a Igreja no dia em que Teresinha partiu para o céu.” Reconheceu que a humildade é o espaço do amor. A intimidade com Deus inspira a transcendente caridade. João Paulo I, quando Patriarca de Veneza, fez uma conferência por ocasião do centenário do nascimento de Teresa, escrevendo-lhe uma carta em seu livro “Illustrissimi”. Confessa ter lido “História de uma alma”, aos dezessete anos.

Em 1977, ao proclamá-la Doutora da Igreja, João Paulo II efetivou o sentimento de seus predecessores. Na audiência geral de 6/4/2011, Bento XVI pronunciou significativa alocução sobre Teresinha. Antes de morrer, rezou como ela, olhando para o crucifixo: “Meu Deus, amo-Te.” O ato de amor, expresso no último suspiro, traduzia o incessante balbuciar de preces de Teresa e Joseph Ratzinger. Em 2023, por ocasião do sesquicentenário de nascimento da Santa de Lisieux, Francisco dedicou-lhe a Exortação Apostólica “C’est la confiance”. Assim escreve: “Em nossa existência, onde muitas vezes, nos dominam medos, desejo de segurança humana, necessidade de ter tudo sob controle, a entrega a Deus liberta-nos de cálculos obsessivos, preocupação constante com o futuro e medos que nos tiram a paz.” “Teresa do Menino Jesus é um mimo de Deus para nós, suas crianças”, pregou Dom Nivaldo Monte, por ocasião do centenário natalício (1973) da filha dos Santos Luiz e Zélia Martin. “Sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5, 48), recomendou Cristo aos discípulos.