Reprodução:O advogado crimnalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Kakay – 24.mai.2024
“Nós somos homens, Filipe, e vivemos quase como máquinas. Essa ânsia de progredir, de acumular dinheiro, de construir, faz a gente esquecer o que tem de humano.”
–Érico Veríssimo, “Olhai os Lírios do Campo”.
Para quem não é político e analisa de longe a cena brasileira, às vezes é exasperante observar um acúmulo de falsidades e de absurdos. A tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul deveria ter unido, por solidariedade e visão humanitária, todos os brasileiros. Porém, o que ocorre na cobertura da verdadeira catástrofe que assolou os gaúchos é de desafiar qualquer cientista político. As contradições que podemos constatar chegam a causar perplexidade.
É interessante, até emocionante, ver a enorme corrente de generosidade que abraçou o país. De todos os lados, o que se vê são pessoas, ou grupos, buscando maneiras de demonstrar empatia. É extraordinária a quantidade de doações, das mais diversas formas.
Em dinheiro, em materiais diversos, em água, em comida, em colchão, em presença física nos salvamentos, enfim, todos se reinventado para salvar vidas e minorar dores. Algo que faz com que certa crença na humanidade volte a habitar os corações antes fechados pelo frio da desilusão.
Por outro lado, é surpreendente ver certas reações de algumas pessoas de lá, especialmente dos políticos e de parte da mídia. No meio de uma das maiores catástrofes já ocorridas no Brasil, é incrível a cara de pau de certos políticos, que colocaram seus mandatos e seu prestígio contra as medidas preventivas para impedir o desastre e ainda tiveram a ousadia de propor a prorrogação dos mandatos. Oportunistas baratos.
Seria quase um prêmio pelo extremo desprezo e pela falta de zelo no trato com a segurança ambiental. Ou seja, em vez de serem investigados e processados pela omissão, ou pela ação predatória, seriam recompensados pela irresponsabilidade. De novo, remeto-me ao gaúcho Érico Veríssimo:
“Estive pensando muito na fúria cega com que os homens se atiram à caça do dinheiro. (…) De que serve construir arranha-céus se não há mais almas humanas para morar neles?”.
Paralelamente a isso, é estarrecedor ver o solene desprezo com que se trata o enorme e gigantesco esforço dedicado à crise pelo governo federal. Penso ser essa uma obrigação do governo. Mas é admirável ver o senso absolutamente republicano com que tem se portado a gestão do presidente Lula.
Todos os esforços, sem poupar ajuda financeira ou humanitária, foram enviados pelo governo federal. No entanto, parte da mídia e dos políticos locais agem como se todo o trabalho fosse dos órgãos estaduais. Omitem. Mentem. Escondem. Felizmente, o presidente Lula age de maneira apartidária e se envolve, inclusive pessoalmente, na política de reconstrução do Estado gaúcho.
Mas não é só essa guerra surda e baixa de parte dos políticos. Não vejo, e quero estar enganado, as associações de classe do Estado, as cooperativas fortes do famoso agronegócio, as empresas e os grupos empresariais se manifestarem em solidariedade e agradecimento expresso ao enorme esforço do Estado federal.
Enfim, enquanto o governo federal abraça a causa da solidariedade e da reconstrução do Rio Grande, em boa parte internamente, não é criado um ambiente de confraternização nacional. E o governo Lula, tíbio em matéria de divulgação do que faz, só mostra pequenos filmes do presidente com as pessoas em situação de desespero e miséria. É bonito. Emociona. Mas não reflete a realidade do compromisso do governo federal com a catástrofe. É muito pouco frente ao grande trabalho que estão fazendo.
Por isso, é necessário o poder federal dizer a que veio. Informar e prestar contas é, sem dúvida, uma obrigação de qualquer autoridade. Até para que possamos cobrar é preciso que, especialmente nas crises, mas em regra no dia a dia, o cidadão possa acompanhar para onde anda a humanidade. Nos momentos em que a água fez uma população ser tragada pela desgraça, é imprescindível acreditar que podemos sair mais fortes dessa tormenta.
Como nos lembrou o gaúcho Mário Quintana:
“O que mata um jardim não é mesmo alguma ausência nem o abandono.
O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem por eles passa indiferente”.
Eu julgava que, após a desmoralização da República de Curitiba, não seria necessário enfrentar novamente a desastrada e criminosa Operação Lava Jato. Com o julgamento da parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro, bem como com a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba e a consequente anulação de vários processos, o então rei do Judiciário ficou nu. Ocorre que, com a comemoração dos 10 anos da malfadada Operação, os holofotes se voltaram outra vez para a análise dos erros, dos crimes e dos acordos lamentáveis feitos pelo grupo que coordenou “o maior escândalo judicial da nossa história” e que “terminou como uma verdadeira organizadora criminosa” , nas palavras abalizadas do ministro do Supremo Tribunal Gilmar Mendes.
O relatório apresentado pelo ministro Salomão, corregedor do CNJ, sobre o que ocorreu na tristemente famosa República de Curitiba foi avassalador. O documento aponta “hipótese criminal” de desvio de dinheiro público com o suposto envolvimento dos líderes do que seria, nas palavras do ministro Gilmar, uma verdadeira organização criminosa. E apresenta, aberta e claramente, como responsáveis os nomes do ex-magistrado Sérgio Moro, do ex-procurador da República Deltan Dallagnol e de outros membros do Judiciário e integrantes da força-tarefa.
Ao falar em “gestão caótica” levada a cabo nos processos coordenados pela República de Curitiba, o documento desnuda a articulação, inclusive com o auxílio de “autoridades americanas,” e a teratológica criação de uma fundação privada de, no início, 2 bilhões de reais. Tudo sob a supervisão da juíza que substituiu Sérgio Moro, a Dra. Gabriela Hardt.
Por muito menos, por fatos infinitamente menos graves, se apresentados aos então responsáveis pela Lava Jato, o Deltan e seus comparsas, teriam pedido a prisão de todos: dele, do Moro, da Gabriela e dos outros membros da força-tarefa. E o então juiz heroico, por coerência, teria determinado a custódia preventiva dele próprio e dos demais. Talvez até, num enredo surrealista, forçassem eles próprios a uma delação. Seria cômico, não fosse trágico. Parafraseando o poeta baiano: “A vida dá, nega e tira”.
Não podemos esquecer: o que gestou o governo do fascista Bolsonaro foi exatamente a Operação Lava Jato. Em um exemplo acadêmico de corrupção, o ex-magistrado Sérgio Moro determinou a prisão do potencial candidato à Presidência que estava em primeiro lugar nas pesquisas, Lula da Silva, e deixou aberto o caminho para a vitória de Jair Bolsonaro. É importante registrar que, em claro jogo que evidencia a trama de poder, Moro foi recompensado com o cargo de ministro da Justiça tão logo Bolsonaro ganhou. As tratativas para receber a paga ocorreram ainda com o então juiz com a toga nos ombros. Um escândalo. A confirmação de tudo que eu falei país afora em centenas de palestra, debates e artigos.
Mas, repito, a Lava Jato não acabou. O Brasil tem que se respeitar. Só venceremos esse câncer definitivamente com a responsabilização, inclusive criminal, de todos os que instrumentalizaram o Judiciário e o Ministério Público, com o auxílio luxuoso da grande mídia. Inclusive dos advogados que eram usados como força auxiliar. Como eu já dizia, desde os primórdios da Operação, tudo era um jogo de poder e eles acreditaram, por serem indigentes intelectuais, que realmente eram heróis e semideuses.
Lembrando-nos do grande Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, no imortal Poema em linha reta: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo”.
Eis a pergunta de muitos. O Brasil passa por uma ingente crise sociopolítica, econômica, ética, cultural e até religiosa. A catástrofe gaúcha parece ter se tornado uma metáfora da deterioração social brasileira. Analistas verificam que o descaso com a “res” pública, a corrupção e a desigualdade social vêm sendo marcas constantes, ao longo de anos. Propagadores da impunidade assumiram abertamente a postura da desfaçatez. Não disfarçam mais seus verdadeiros propósitos. Pregam divisões em grupos, gerando hostilidade e o proposital enfraquecimento da sociedade. Posicionam-se contra Deus, a Pátria, os inocentes e indefesos. Alguns se arrogam de competências que não lhes cabem. Sepultaram a Ética e a Moralidade. Interesses de alguns importam mais que o bem comum. Sobre os nossos ombros recai o pesado ônus das mazelas pelas quais atravessa o país. Vive-se em meio aos destroços causados pelo ensino de baixa qualidade, pela fragilidade da saúde do povo, falta de investimentos em serviços públicos etc. Há uma fartura de sofismas e narrativas demagógicas, tentando nos convencer de que tudo vai bem.
Aos cidadãos três caminhos se abrem diante dessa triste conjuntura. O primeiro consiste em permanecer ao lado dos insensíveis. O segundo, manter um silêncio omisso e conivente, beneficiando a iniquidade. Durante décadas, muitos trilharam por essas duas direções. Porém, cabe-lhes assumir uma atitude crítica contra essa realidade deletéria e desumana. Mister se faz um compromisso de serviço ao próximo e à Pátria. Entretanto, é necessário, inspirados no Evangelho, manter o diálogo e contribuir para a solidariedade e a ação transformadora. Não se pode desviar dessa opção. O engajamento do discípulo de Jesus começa pela vivência do Evangelho. Ela exige envolvimento com a causa do próximo e o Reino de Deus. Este consiste também na equidade e garantia de direitos irrenunciáveis.
Os cristãos – apesar de esperar uma vida plenificada, após a peregrinação terrestre – não podem cruzar os braços ante os empecilhos para o despontar do Reino na realidade cotidiana. O sinal da cruz, traçado em nossas frontes, deve significar o seguimento a Jesus. Este colocou sua vida inteiramente em favor dos irmãos. A Igreja – sacramento terreno e continuadora da missão do Filho de Deus – deve assumir o ousado e bíblico papel da profecia. Esta opõe-se a tudo o que é sinal de morte, injustiça, iniquidade, ou seja, o contratestemunho da doutrina de Cristo. Mas, é importante que se diga: o profetismo não se refere à mera condenação ou crítica, construída em confortáveis gabinetes, surdos aos gemidos dos que sofrem. O engajamento da Igreja inicia-se com o diálogo de todos os segmentos sociais para a busca de soluções adequadas e sugestões de atitudes que possam iluminar as ações dos dirigentes. É fácil condenar, mas não é cristão. Dissera o Mestre: “Não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo” (Jo 12, 47). Rabindranath Tagore insistia: “É muito mais fácil condenar milhares de seres humanos do que tocar um só com a verdade.”
A laicidade do Estado brasileiro não deve ser óbice para o entendimento das instituições religiosas com os poderes públicos e vice-versa. As igrejas têm um importante papel na defesa de direitos dos filhos de Deus. Desde que voltadas para os autênticos interesses do bem comum, elas detêm legitimidade na discussão da “res” pública, em favor da população e contra as práticas opressoras. Estas, não raro, advêm daqueles que deveriam ser os verdadeiros representantes do povo.
Os cristãos necessitam ter uma voz profética que clama, como sinal de esperança para os sofredores, vítimas da maldade e injustiça. Atribui-se a Padre João Maria, o Anjo de Natal, a seguinte frase: “Temos o sagrado dever de transformar a lágrima dos que sofrem em sorriso.” A fidelidade ao Evangelho não pode assumir uma posição de indiferença diante do sofrimento dos que não têm voz ou vez na sociedade. Isso não significa que a Igreja deva ser partidária, como pensam ou pregam alguns, esquecendo o que disse Nosso Senhor: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36). Inspirados na Palavra Divina, os discípulos de Cristo necessitam assumir sua vocação, fundamental para o legítimo testemunho da vivência religiosa e expressão da fé. “Somos cidadãos do céu, mas não podemos fazer da terra um inferno”, advertia Santo Agostinho.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
Andei prometendo – e promessa deve ser cumprida – escrever aqui sobre a Cecil Court, ruela de pedestres londrina que é completamente tomada de pequeninas lojas de antiguidades e colecionáveis, livrarias e sebos especializados em primeiras edições, raridades, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Essa “ruela cultural”, no miolo turístico da capital do Reino Unido, liga a Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden. Facílimo de achá-la.
Com uma história que retroage ao século XVII, a Cecil Court sempre esteve de alguma forma relacionada às artes. Dizem que o pequeno Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), quando em Londres por volta de 1764-1765, morou lá. Quer mais? Já a primeira livraria parece ter se estabelecido por ali antes da chegada desse morador ilustre, ainda no comecinho do século XVIII, com proprietários de origem francesa.
É claro que a Cecil Court teve suas idas e vindas do ponto de vista arquitetônico. Foi quase reconstruída no tempo de Robert Gascoyne-Cecil (1830-1903), o 3º Marquês de Salisbury e primeiro-ministro do Reino Unido por três vezes (1185-1886, 1886-1892 e 1895-1902). Uma reforma para melhor, como era de praxe à época, com a remoção dos edifícios antigos, substituídos por prédios e lojas melhor construídas, sanitariamente adequadas e de proporções mais atraentes.
Se essa reforma urbanística deu a forma “definitiva” à Cecil Court, depois dela a ligação dessa ruela com as artes não parou de crescer. Já na virada do século XIX para o XX, a Cecil Court esteve fortemente relacionada ao nascimento da indústria cinematográfica britânica. Fornecedores de equipamentos técnicos, produtores e distribuidores estabeleceram-se em seus prédios. Esses “cineastas” pioneiros, alguns dos principais nomes de então, eram os seus “locais”. A ruela era o “coração dessa recém-nascida indústria”, dizem os historiadores.
Foi também por essa época que editoras e livrarias começaram a chegar em grande número à Cecil Court, ainda dividindo espaço com o povo do cinema. Esse boom se deu antes da 1ª Guerra Mundial, certamente. Eram sobretudo comércios de livros especializados, como ainda hoje o são. E foram só crescendo. Ocupando os dois lados da ruela, embora nem todas as lojas sejam livrarias tecnicamente falando. Temos também comércios de outras “curiosidades” ligadas ao que ainda chamamos de cultura.
De toda sorte, para esta crônica, o mais importante é ressaltar a sensação que tive ao voltar à Cecil Court na minha recente viagem em família: ela está quase como eu a deixei. Plena de comércios de livros e assemelhados. Eis uma lista deles extraída da página da Internet criada para a querida ruela dos livros (www.cecilcourt.co.uk): Alice Through The Looking Glass, Art Deco Gallery London, Bryars & Bryars, Coin Heritage, Colin Narbeth & Son Ltd, Daniel Bexfield Antiques, Darnley Fine Art, Goldsboro Books, London Medal Company, Marchpane, Mark Sullivan Antiques & Decoratives, November Books, Panter & Hall, Serhat Ahmet, Stephen Wheeler Medals, Storey’s Ltd, Sworders Fine Art Auctioneers, Tenderbooks, Tindley And Everett, Travis & Emery Music Bookshop e Watkins Books. Pelos nomes, embora em inglês, já dá para saber do que cuidam. Claro, não dá para visitar todos em uma só agradável tarde londrina.
Flanei em Cecil Court com a minha família, como fazia outrora sozinho, de mãos dadas apenas com a saudade de casa. Tiramos fotos. Xeretei algumas vitrines e lojas. O pequeno João a pé, à frente, animado deveras. E, aqui, para finalizar, apenas repito as palavras do grande Graham Greene (1904-1991): “Obrigado, Deus! Cecil Court continua Cecil Court…”
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da RepúblicaDoutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCLMembro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
Na imagem, o cavalo Valente Caramelo ilhado durante enchente no Rio Grande do Sul.
Kakay
“Borges não toleraria enxergar nestes tempos de absoluta claridade do caos.”
–Ronaldo Cagiano, no poema “Pressuposto”
São muitos anos de descaso acumulado no trato criminoso com a natureza. De certa maneira, todos nós somos responsáveis pelos maus tratos. Claro que em escalas muito diferentes. Não pode ser a mesma coisa uma garrafa plástica que se joga no chão, ou que não é recolhida na rua, e a destruição dolosa das nascentes para fazer uma pastagem em larga escala. Mas a garrafa plástica vai se juntar a outras e vai entupir as bocas de lobo, que poderiam ajudar no escoamento das águas.
Impressiona imaginar que a eliminação de uma estrutura jurídica de contenção dos abusos seja algo planejado e meticulosamente pensado. A imagem da reunião ministerial de Bolsonaro durante a pandemia, na qual seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse, sem rodeios, que era necessário aproveitar que a imprensa estava cuidando desse problema para “passar a boiada” é de uma crueldade sem limites. E ele explicava para seus cúmplices, com detalhes, quais seriam os planos de desmanche para, “de baciada”, mudar as regras ligadas à proteção ambiental e à área de agricultura.
Criminosamente defendeu, na frente do presidente da República e seus ministros, que fosse mudado todo o regramento e simplificadas as normas do Iphan, do Ministério da Agricultura e do Ministério de Meio Ambiente. Criminoso!
Na imagem, reunião ministerial de Bolsonaro em que Ricardo Salles sugere “passar a boiada”, em 2020
Tive uma conversa com 2 grandes pecuaristas sobre o apoio poderoso e apaixonado de boa parte da classe a Bolsonaro e me espantei com a frieza da análise. Ambos concordam que a política do governo Lula para o setor, em se tratando de juros, empréstimos, financiamentos e apoio, é muito melhor do que a do Bolsonaro. Porém, consideram que é mais importante uma política menos eficiente, mas com nenhuma fiscalização. Até porque se sentiam mais seguros para fazer o que bem entendessem com o meio ambiente.
Essa atitude declaradamente destrutiva do ex-presidente forjou uma imagem que preencheu o imaginário caubói do homem que vive do campo. Quando Bolsonaro declara que o Exército norte-americano fez um belo trabalho ao exterminar os indígenas nos EUA, está bajulando boa parte dos ruralistas, que vê nos povos originários uma fonte de atraso e de problemas.
É só relembrar alguns discursos do ex-presidente aos ruralistas, nos quais exaltava o tratamento que hoje em dia é dispensado em comparação com como o Ibama e o ICMBIO tratava antes. Ele se jactava de facilitar as irregularidades pela não fiscalização. Criminoso! A tragédia que ocorre no Rio Grande do Sul tem muitas faces. É uma tristeza sem tamanho ver o povo simples, com sotaque do interior, rosto queimado de sol, agarrar-se a uma esperança vã e não querer sair da casa onde mora.
Com água até o peito, balbucia palavras desconexas, impregnadas de perplexidade. E, nas cidades, a falta de luz e de água potável, em contraste com a fúria e a força avassaladora das águas da chuva e dos rios, deixa um cenário de medo e de guerra. A natureza assumiu o controle do destino. Não há nada que se possa fazer para impedir o avanço do caos. O acúmulo dos erros e dos abusos não pode ser contido em meio à desgraça instalada.
E quando a água baixar e voltar ao seu leito natural, outra tragédia estará ocupando todos os espaços. Infelizmente, boa parte dos corpos dos desaparecidos surgirão em estado de avançada decomposição. As doenças, várias, ocuparão as manchetes hoje dominadas pela enchente. A falta de condições de várias estruturas, como casas, prédios públicos e aeroporto levará a uma sensação de cidade fantasma e fala-se, em hipóteses extremas, até mesmo na necessidade de reconstrução de alguns setores. Ou seja, o desastre está ainda muito longe do fim.
O homem resolveu enfrentar, desafiar e desprezar a natureza e perdeu. Agora, milhares de brasileiros pagam a conta. Com a vida. Com a saúde. Enfrentando a fome e o desemprego. Como ensinou o gaúcho Mário Quintana, no poema “Diário de viagem”:
“O poeta foi visto por um rio, por uma árvore por uma estrada…”
Depois de tantos dias de espanto e susto com a dimensão dos estragos, já é hora de fazermos o enfrentamento, na busca da identificação e responsabilização dos culpados. O esforço do governo federal é absolutamente louvável. Mas, é preciso que a sociedade eleja, como pauta, o que fazer para mudar a maneira irresponsável de tratar a natureza. Identificar quais foram os políticos que se dedicaram, em busca de dinheiro, voto e poder, à retirada da legislação de salvaguardas que protegiam a natureza do avanço do caos. Identificar e denunciar. É claro que, contra a estupidez, às vezes, não há muito o que fazer. O governador do Rio Grande do Sul se manifestou contra as doações, salvo em dinheiro, pois o excesso delas estaria atrapalhando o comércio local. A fala parece ser falsa de tão absurda. Cruel, surreal, mas, infelizmente, verdadeira. Que mulheres, crianças, idosos morram de sede, de fome e de frio em nome de um “comércio local” que, por sinal, está fechado, debaixo d’água, em boa parte pela irresponsabilidade e ganância de alguns políticos.
É hora de responsabilizar os divulgadores criminosos das fake news, de desnudar os erros grosseiros dos políticos, de mostrar aos desabrigados que, em tragédias como essas, a natureza não tem culpa. É tão vítima como os que sofrem a fúria das enchentes.
Lembrando Rainer Maria Rilke:
“Escuridão, minha origem, amo-te mais que a chama que é limitada, porque só brilha num círculo qualquer fora do qual ninguém a conhece. Mas a escuridão tudo abriga figuras e chamas, animais e a mim, e ela também retém seres e poderes. E pode ser uma força grande que perto de mim se expande. Eu creio em noites.”
Foto: reprodução – O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Muitas vezes, é nos momentos mais delicados, extremos até, que a pessoa mostra seu verdadeiro caráter e sua índole. O Brasil foi dividido pelo radicalismo bolsonarista, que apostou no ódio e na política de desinformação para se impor. Com uma estratégia pensada e planejada na divulgação de mentiras encomendadas, o governo do Bolsonaro criou uma incrível massa de seguidores incapazes de discernir, sequer de maneira razoável, o que é falso e o que é verdadeiro. Nas campanhas e no exercício do poder, a disseminação de fake news sempre foi um alvo criteriosamente trabalhado.
São inúmeros os exemplos bizarros que foram cristalizados e que assumiram ares de verdade, seja para incensar posturas teratológicas, seja para destruir reputações. É extremamente difícil se contrapor a um grupo que não tem limites, ética e nem escrúpulos. A discussão política, que engrandece e fortalece a Democracia, precisa de critérios que sustentem e prestigiem os valores humanistas para a manutenção do Estado democrático de direito. Lidar com seres escatológicos impede o exercício dos princípios fundantes da civilização.
Com a dimensão da tragédia no Rio Grande do Sul, criou-se uma expectativa de que essas posturas seriam abandonadas em solidariedade ao imensurável sofrimento do povo gaúcho. Imaginávamos que não existiria lugar para banditismo, para o uso político de mentiras e para uma disputa de espaço com base na dor e na desgraça alheia. Ledo engano. O homem surgiu no meio das águas com suas vertentes mais díspares e completamente expostas. Escancaradas. Tanto na extrema dedicação da solidariedade, quanto no absoluto mau-caratismo das fake news e dos abusos.
Já se discute entre os criminalistas a dificuldade de criminalizar as condutas dos criminosos que as espalham. O certo é que é necessário responsabilizar as consequências dessas mentiras. Não é apenas, e já seria grave, a monetização das postagens e o despudorado uso político por parte desse grupo. O que mais deve ser levado em consideração é o tanto que as desinformações influenciam as pessoas e dificultam o salvamento. O discurso e as ações solidárias mostram que a humanidade ainda tem chance no meio deste caos. A grande maioria dos brasileiros se mobiliza para ajudar e tentar minimizar esta dor inimaginável. O número de mortos e desabrigados nos deprime. Mas a quantidade de pessoas recuperadas e salvas nos enche de esperança.
O governo federal se mobilizou de uma maneira admirável. Sob todos os aspectos, o apoio ao povo do Sul está sendo a prioridade máxima. A seriedade com que a gestão Lula está sendo construída enfrentando o desastre é inquestionável e só a má-fé pode levantar qualquer dúvida.
As fakes news insistem em tentar diminuir a imensa ação solidária do governo federal. E a cara de paisagem do governador do Estado, que não tem a grandeza de reconhecer o trabalho do Presidente da República, reforça a máxima de que é nas horas trágicas e difíceis que se conhece o tamanho do político. Tudo que é possível está sendo feito. Mas é hora de o governo federal começar a, estrategicamente, contar, com detalhes e com profundidade, o que realmente está ocorrendo. Prestar contas é também dever do governante. E, no caso concreto, é necessária uma ação política que ajude a combater as fake news e os políticos responsáveis por agravar essa tragédia. E que insistem em figurar como falsos heróis. A hora é de solidariedade. Mas a hora de apontar os culpados já bate à porta.
Como nos lembra o poeta Thiago Turbay: “Nada contém mais palavras do que o silêncio. O silêncio aceita tudo”.
Nos idos de 1960, quando estudante na Bélgica, ouvia colegas europeus, notadamente alemães, discutir sobre o Muro de Berlim. O objetivo deste era separar os habitantes daquela cidade germânica, por razões políticas e ideológicas. Ficava pensando como isso acontecera num país considerado civilizado e desenvolvido. Não poderia imaginar que, décadas depois, veria algo semelhante, em meu país. Atualmente, há no Brasil um muro, de difícil demolição. Foi construído, não com pedra, ferro e cimento, mas com intransigência, radicalismo, rancor e ódio, tornando irmãos e compatriotas em inimigos. Infelizmente, passados tantos anos, a civilização contemporânea não conseguiu ainda fazer com que avanços tecnológicos e científicos fossem acompanhados de posturas humanistas e éticas, capazes de demolir paredões fraticidas para estabelecer vínculos entre as pessoas.
Cada vez mais, verificam-se cenários de conflitos e diferentes modos de exclusão social. Os discursos e propostas tornam-se repetitivos, obsoletos, estéreis e demagógicos. A sociedade paga um alto preço por sua deterioração social. Ocorre uma inércia ético-moral, neutralizando ações de efetiva solução dos graves problemas e fragilizando iniciativas para o enfrentamento de crises. Há falta de união, racionalidade, interesse e solidariedade, até mesmo para aniquilar um mosquito. Mais do que descuido administrativo, configura-se na carência de sensibilidade humana e espiritual. Isso gera incapacidade para diálogos indispensáveis à ruína de vários muros. Muitos deles são erguidos em nome do bem-estar e proteção à democracia. Outros, com tons de “apartheids”, inviabilizam o respeito à liberdade ou dignidade humana. Recorde-se a Palavra inspirada: “Irmãos, exorto-vos a ter cuidado com os que causam divisões e colocam obstáculos em seu caminho” (Rm 16, 17).
Apesar do progresso e desenvolvimento tecnológico, científico e socioeconômico, o Brasil ainda padece de muitos males, cuja solução necessita de diagnósticos precisos, lúcidos e ações eficazes. Poder-se-ia citar um conjunto de barreiras sociais que se levantam, inviabilizando pontes. Dentre elas, incluem-se a apatia e a anestesia social, que fazem crescer a indiferença, criando obstáculos entre os indivíduos. A esperança para a queda dos muros reside na convicção e vivência da fé. Esta poderá apontar saídas justas e humanizadas para as diferentes situações desoladoras, aparentemente insuperáveis.
O saber técnico, o desempenho político e outras habilidades são importantes. Todavia, têm-se mostrado ineficientes diante de singularidades da existência humana e complexidades do funcionamento das instituições. A fé e a espiritualidade trazem alentos e sentidos existenciais, alargam o horizonte para cada um tomar consciência do seu relevante papel de agente do bem e da paz. Exorta o apostolo Paulo: “Não haja divisão entre vós. Ao contrário, sede bem unidos” (1Cor 1, 10). A fé proporciona ao ser humano ir além do território do seu próprio bem-estar. É com ela que se aprende a praticar e demonstrar o amor fraterno, superando o anseio de destruir o semelhante. Viver a espiritualidade e a autêntica crença religiosa consiste em cultivar uma abertura para todos, efetivando a derrubada de barreiras e a edificação de pontes. Para tanto é indispensável ultrapassar a lógica materialista, a dinâmica interesseira e as conveniências ideológicas e partidárias. Cabe lembrar que Cristo é o Pontífice. Este termo etimologicamente significa aquele que faz pontes. Segundo a teologia, a Igreja é sacramento de nosso Salvador, portanto deve ser construtora de união. Nisto compõe-se também a sua missão. Será que está acontecendo assim no Brasil atual? Como faz falta uma ponte. Que o digam os viajantes, de dias passados, com destino de Mossoró a Natal e vice-versa. Sua inexistência torna a viagem mais demorada e talvez perigosa. Assim é o mundo sem Deus. E para se achegar a Ele, precisa-se recorrer ao Pontífice: Jesus.
A ausência de ligações leva ao monólogo, fomentando a insensatez de eliminar os outros. Há muros e fossos construídos, colocando em lados opostos e incomunicáveis indivíduos e grupos. Essa divisão é semanticamente diabólica. Diabo (em grego diábolos) quer dizer separação. Cristo rezou: “Pai que todos sejam um como Eu e Tu” (Jo 17, 21). Somente a vivência da fé e a espiritualidade poderão derrubar muros ou cercas e construir vínculos. Urge edificar pontes de confiança, diálogo, entendimento, reconciliação e paz. Esta “nos é dada [por Deus], não como o mundo no-la dá” (Jo 14, 27).