É chegado o tempo da justiça

Foto: divulgação
Por Kakay
O tempo do Judiciário, evidentemente, não é o mesmo da imprensa e da opinião pública. Ele é um poder inerte e só age se provocado. Ao investigar um crime, a polícia e o Ministério Público se encarregam de, cada um no seu espaço, tentar provar a devida responsabilidade de quem pode vir a ser denunciado. Após a colheita de elementos suficientes de autoria e materialidade, cabe ao Ministério Público apresentar a peça formal de acusação. Somente aí começa, de fato, o processo criminal.
Costumo dizer que o procurador-geral da República, com assento no Supremo Tribunal, detém poderes imperiais e, de certa forma, tem um poder maior do que os próprios ministros em matéria criminal, pois, sendo o dominus litis, só ele pode propor o início de uma ação penal. Se quedar inerte, o processo penal não poderá ser levado adiante. Em casos de grande repercussão midiática, muitas vezes, esse tempo age contra a expectativa do público em geral. Em um processo penal democrático, há, sempre, que se respeitar o devido processo, a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência. Por isso, em regra, o processo penal tende a ser demorado.
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No caso da tentativa de ruptura institucional que ocorreu em 8 de janeiro, várias questões devem ser levadas em consideração. Quando ocorreu o levante golpista, houve uma reação imediata das forças democráticas e houve várias e corretas prisões em flagrante. No dia do golpe, foram presas 243 pessoas. No dia seguinte, 9 de janeiro, outras 1152 foram encarceradas. E, ao longo do desdobramento da Operação Lesa Pátria, outras 35 foram detidas. Ao todo, o STF já condenou mais de 200 pessoas, a maioria pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado. As penas chegam a assustadores 17 anos de reclusão.
O Supremo já validou centenas de acordos de não persecução para aqueles que não praticaram atos de violência e a Procuradoria avalia, ainda, mais de mil outros. Enquanto isso, a competente e eficaz Polícia Federal segue fazendo uma investigação técnica para apontar os responsáveis pela ousada e desastrada tentativa de ruptura institucional. Nunca é demais frisar que foi o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal, que garantiu a estabilidade democrática.
Ocorre que, passados 17 meses do dia da infâmia, com dezenas de pessoas presas e condenadas, uma natural inquietação começa a tomar corpo na sociedade: quando serão responsabilizados os grandes financiadores, os militares, os generais, os políticos e, especialmente, o ex-Presidente da República? A prisão dos pretendentes a terroristas só faz sentido se os mentores forem igualmente processados e condenados.
A ultradireita semeou o ódio, a violência e dividiu o país. Ousou investir contra as instituições democráticas. Os idiotas terraplanistas acreditaram nos planos negacionistas e golpistas do mito Jair Bolsonaro. Enquanto amargam a crueza do cárcere, em um sistema penitenciário falido, o grupo que organizou o golpe segue fazendo política e rindo do país.
Já passa da hora de relatar esses inquéritos, de terminar as investigações e responsabilizar criminalmente os que se beneficiariam com a implantação de uma Ditadura. O Brasil merece virar essa página e eliminar os fantasmas que insistem em continuar ameaçando a estabilidade democrática. É mais que chegada a hora de o tempo do Judiciário ser o tempo da Justiça. O país e a Democracia agradecem.
E para não esquecer o grande Rui Barbosa:
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
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A vida dá, nega e tira!

O advogado crimnalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Moro chega ao Supremo!

O Senador Sérgio Moro, que envergonhou a toga aceitando ser Ministro da Justiça do governo fascista que ajudou a eleger eleger ao prender ilegalmente o LULA , tinha como recompensa pelo ato ilícito, criminoso, ser nomeado Ministro do Supremo. A vida surpreende. Hoje ele chegou ao Supremo Tribunal: como réu!

No mesmo dia que uma procuradora da República, que ele chefiava na exdrúxula Operação lavajato, é punida pelo CNMP.

Eles terão uma longa caminhada de processos criminais. Vamos assegurar a todos os direitos constitucionais que eles negavam aos réus ao fazer política na República de Curitiba. Devido processo legal, ampla defesa e presunção de inocência. Que sejam recolhidos ao cárcere só após o trânsito em julgado das sentenças que , fatalmente, virão.

O trabalho que fizemos em defesa da Constituição,que eles desrespeitavam, têm que servir a eles.

La vie n’est pas un grand fleuve tranquile

Kakay

O medo e a fé

Padre João Medeiros Filho

Segundo Santo Ambrósio: “O medo é a ausência de Deus”. Lembrava a seus diocesanos a certeza do salmista: “Mesmo que tenha de percorrer um vale de sombras, não temerei os males, porque estás comigo” (Sl 23/22,4). Fernando Sabino aconselhava: “Fazer da interrupção um caminho novo; da queda, um passo de dança e, do medo, uma escada”. O ser humano, diferentemente de outros animais, por sua natureza, é medroso. Philippe Ariès e Jean Delumeau estudaram esse fenômeno e o tratamento dado pelos religiosos. Ariès declara: “O homem é o único ser no mundo a viver constantemente apavorado, quando está só. E a solidão maior é a falta de Deus”. O pavor tem um lado pernicioso, enquanto paralisa as pessoas. Não raro, é usado como arma de controle; triste, quando a dominação parte das religiões.

No mundo antigo, o medo estava ligado às divindades. Os gregos adoravam Deimos e Fobos, deuses do terror e pânico, respectivamente. Segundo Hesíodo, ambos são irmãos gêmeos, filhos de Ares e Afrodite. Eram cultuados pelos helênicos, que lhes suplicavam e deviam favores. A Europa da Idade Média temeu as pestes que dizimaram populações inteiras, sendo as mais importantes a bubônica e a de Marselha. Tais epidemias e guerras criaram situações alarmantes para as populações. Não foi diferente conosco, durante a pandemia, acompanhada de uma polêmica e beligerância político-ideológica. Ao longo da história, outras realidades aterrorizaram as pessoas: o mar, o diabo, as tempestades, o credo. No medievo, ganhou destaque o receio da forca ou fogueira inquisitorial. Havia igualmente a ameaça do Juízo Final. Para a fúria da Inquisição, havia nomes e faces: hereges, bruxos, feiticeiros etc.

O temor faz parte da natureza humana, sua limitação e fragilidade. Todavia, uma das preocupações de Jesus foi ensinar aos discípulos como vencê-lo. Aliás, isso perpassa pelas páginas da Bíblia. A fé proclama: “Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro sempre encontrado nos perigos” (Sl 46/45,1). O apóstolo Paulo afirma: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8,31). Há episódios marcantes na história do cristianismo sobre essa realidade. Quando Jesus nasceu, o anjo proclamou: “Não temais. Eu vos anuncio uma grande alegria” (Lc 2,10). O Ressuscitado neutraliza, em cada aparição, a inquietação e a angústia dos discípulos. Em diversos momentos de sua existência terrena, procurou encorajar seus seguidores.

Após multiplicar os pães e rezar na montanha, Jesus aparece caminhando sobre as águas do mar da Galileia. Pensavam tratar-se de um fantasma. Pedro vai ao seu encontro e começa a naufragar. Cristo toma-o pela mão e tranquiliza os discípulos: “Tende confiança, sou eu, não temais” (Mt 14,27). Há pavor diante da morte, doença, violência, desemprego etc. Isso resulta da pequenez ou tibieza de nossa fé. O caminhar de Jesus sobre as águas é sinal de que Ele nos ajuda a superar as adversidades. O “sou eu” significa Deus afirmando que nos liberta do sofrimento, da dor e opressão. Pedro tem fé ao chamar Cristo de Senhor, mas ela é ainda fraca. Como uma criança que começa a ensaiar seus primeiros passos, o Mestre lhe diz: “Vem!”. E estende a sua mão para Pedro andar sobre o mar. A fé nos acalma e aproxima de Deus. Sem Ele, brota a violência, que leva ao medo. Esse é causado por aqueles que estão vazios de Deus. Os temerosos creem pouco.

Vale citar o autor da Carta aos Hebreus: “O Senhor é meu auxílio, jamais temerei, que mal me poderá fazer o ser humano?” (Hb 13,6). O inesquecível Dom Nivaldo Monte repetia nas homilias e palestras: “O cristianismo não é a religião do pavor, mas da esperança e do amor.” Deus nos ama. Alguns religiosos disseminam a deletéria teologia o evangelho do pânico, que ignoram a inefável benignidade e misericórdia divina. O cristianismo se contrapõe à doutrina ameaçadora. Em Jesus Cristo e por Ele, o ser humano é liberto da escravidão do pecado e domínio do Mal. Eis o que está escrito no profeta Isaías: “Não temas, porque Eu estou contigo; não te assombres, porque sou teu Deus; Eu te fortaleço, te ajudo e te sustento com a destra da minha justiça” (Is 41,10).

Padre João Medeiros Filho

Mãe: o doce silêncio da ausência

Kakay 31.mai.2024 (sexta-feira) – 5h59
“No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo.”
–Manoel de Barros, “Livro das Ignorãças”
Há momentos na vida em que muitos atos relegados à insignificância tomam corpo e sentido. Lembrar o que fizemos ontem é o óbvio e só merece destaque quando o esquecimento se faz presente. Esquecer é algo sem importância, salvo quando vira perigosa regra.

O dia a dia de quem a gente ama tem outra cor com o esquecimento. E é estranho, com um simples observar, sem profundidade, nem ciência, quando o esquecimento vem acompanhado de um olhar perdido. Não se sabe se de angústia, de busca ou de um alheamento que tem um quê de cansaço e dor. Parece sabedoria. Difícil para quem pensa que está lúcido entender esse outro espaço do que parece ser uma não lucidez.

Não há nada mais cruel, doloroso até, do que o espaço entre a tal lucidez e a perda dela. Depois que o esquecimento se instala, todos, aparentemente, sofrem menos. Somos adaptados, de fábrica, na luta pela sobrevivência, pois temos um kit emergência. Quando o problema se apresenta, enfrentamos. Quando acreditamos que há saída, o caminho é muito sofrido. Mas nós nos apresentamos. E o esquecimento não se define assim, de pronto. É traiçoeiro e insinuante. Vem aos poucos e nos engana com pequenas memórias, saudadas quase como milagre. Também nós, aparentemente lúcidos, precisamos desses respiros de memória e comemoração. Na verdade, essa doença assusta a todos que nos vemos nela com uma projeção macabra.
Digo que sofremos menos até o inevitável acontecer, pois precisamos nos manter lúcidos. Enquanto a tal névoa está baixando e deixando os olhos opacos, todos nós nos negamos a acreditar. E é incrível a minha experiência com a maturidade do amor nessa hora.

A falta do diálogo deixa de ser falta e a presença nos basta. Os casos antigos não mais contados continuam a nos aconchegar silenciosamente. O silêncio amoroso é uma companhia sempre acolhedora. O beijo fugaz. O olhar repentino. Às vezes, a memória de uma insignificância. Tudo nos remete a Sophia de Mello Breyner Andresen, no lindo poema Ausência:
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda que a tua.”.

Difícil entender o que contém naquele olhar perdido, antes tão claro e tão lúcido. Impossível entender o silêncio da ausência com quem sempre tinha um caminho a contar, um carinho explicitado. Um amor materializado nas palavras doces que só a mãe pode ter. E, especialmente, um silêncio do sorriso que não se negava. Afeto puro. Esse sorriso ainda hoje existe quando ela parece querer nos pegar no colo. E nos abraça com um sorriso que ilumina a vida. Lembro-me do meu poeta amado, Leão de Formosa: “É a única deusa viva do meu culto, a única mulher que quero ver no céu”.
Não sei se é consolo saber que toda essa dor e falta vêm de anos acumulados de amor, alegria, camaradagem, carinho e cumplicidade sem limites. O que mais me faz falta é exatamente esse excesso que vivi. Excesso que justifica a vida e que explica o vazio. Não sei em que lugar foi habitar tanta doçura, amor, solidariedade e carinho. Meu maior espanto é, às vezes, querer seguir o seu olhar perdido e, docemente, me perder. Para encontrá-la.
Lembrando-nos de Mia Couto: “Antes de dormirmos a mãe vinha esticar os lençóis que era um modo de beijar o nosso sono”.

Foto reprodução: O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Para o mundo que eu quero descer

Foto: reprodução – O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Está cada vez mais difícil viver neste mundo. Para quem insiste em ser lúcido e tenta manter viva uma formação humanista, o ar está cada vez mais denso e a respiração fica como se tivesse um nó na garganta. A cada dia, acumula-se uma saraivada de novos desastres de todo tipo.
O massacre diário do povo palestino quase saiu do noticiário. É como se, em um processo natural de defesa, nós apagássemos da realidade toda e qualquer notícia do genocídio diário. No dia a dia, acompanhar os bombardeios e as mortes de crianças e de mulheres faz com que cada um de nós encontre rotas de fuga para preservar a sanidade.
Foi assim com os ataques sistemáticos à Ucrânia. No início, era preciso observar os milhões de ucranianos perambulando sem rumo tentando sobreviver. Os estupros, as torturas e as mortes entravam em nossos lares causando revolta e ódio. Com o tempo, muitos optaram por se afastar dos meios de comunicação. Como se, ao apertar o controle remoto, a guerra deixasse de existir.
Em Gaza, o sistema de proteção à saúde mental começa a dar sinais de fadiga. Logo após o Tribunal de Haia ter determinado que os ataques a Rafah cessassem imediatamente, Israel fez 60 ataques em 48 horas, matando, no mínimo, 45 pessoas que tentavam se refugiar. E em um local onde Israel havia indicado ser seguro para quem fugia: um campo da ONU na Faixa de Gaza. Foi uma covardia, as pessoas foram carbonizadas. O ultradireitista Benjamin Netanyahu teve o desplante de dizer que foi um “acidente trágico”.
E vai piorar.
Há um crescimento muito forte da extrema-direita em todo o mundo. A fúria do governo Bolsonaro contra a legislação e contra os órgãos de proteção ao meio ambiente é, sem dúvida, uma das causas da tragédia no Rio Grande do Sul. O verdadeiro desmonte que, dolosamente, deu-se nas regras de proteção veio como consequência da determinação de “passar a boiada”. Essa ultradireita predatória visa sempre ao lucro rápido e a qualquer custo. Mesmo que isso signifique colocar em risco a própria vida na Terra.
Sem nenhum organismo internacional que tenha realmente eficácia, o sanguinário Netanyahu segue com seu propósito de extirpar os palestinos da face da Terra. Sem nenhuma consciência do mal que espalham, os ultradireitistas crescem em cima de um discurso e de uma prática de extermínio da natureza, do pobre e do preto.
Qualquer análise sob o prisma humanista do cotidiano no mundo acaba virando uma teia de aranha aparentemente sem um rumo, um fio condutor. Mas o pior é que tudo está envolvido em uma teia invisível que sufoca qualquer proposta humanitária. A direita ensandecida colocou tudo na mesma panela de pressão: a falta de cuidado com o meio ambiente, as políticas assassinas contra o invisível social, as guerras de ocupação que se espalham, a venda desenfreada de armas, a propagação das fake news como maneira de fazer política, o fortalecimento das políticas racistas e misóginas, o cerco obsceno aos imigrantes, o crescimento da fome, da miséria e das desigualdades, enfim, o mundo caminha para um esgotamento perigoso.
Nesse ritmo, não será suficiente as pessoas simplesmente desligarem o noticiário para escapar da realidade. Vai ser impossível viver fugindo de tanta desgraça e de nós mesmos. Ou mudamos a rota de terror dessa política nefasta ultradireitista, ou seremos tragados pela insanidade que destrói, aos poucos, a humanidade em cada um de nós.
Como disse o imortal José Saramago: “Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena”.
Com a observação do grande Miguel Torga: “O mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

“Tão sublime Sacramento”

Padre João Medeiros Filho

Este cântico litúrgico é a parte final do hino eucarístico “Pange Lingua”, composto, em 1264, por Santo Tomás de Aquino para a festa de “Corpus Christi, a pedido do Papa Urbano IV. Esta música sacra, apresentada em canto gregoriano ou polifonia, marcou a vida espiritual de muitos. O compositor brasileiro Toquinho, parceiro de Vinicius de Moraes, ainda hoje se encanta e se emociona, ao recordar a melodia tocada por Padre Romano, organista do Liceu Salesiano do Coração de Jesus (São Paulo), onde estudou. No Seridó, a interpretação musical do Maestro Felinto Lúcio comove, de modo especial, os fiéis na Bênção do Santíssimo Sacramento. A partitura do eminente seridoense é executada na Basílica de São Pedro (Vaticano), graças a nosso conterrâneo Monsenhor Flávio José de Medeiros Filho.

Plantão permanente da eterna solidariedade de Deus é o Pão Eucarístico, meiguice de um Pai, que nos envia um Irmão para dialogar conosco. Ele assegurou-nos: “Quem comer deste Pão, jamais terá fome” (Jo 6, 35). A Eucaristia é a espera de Deus por nós, abraço divino que nos é reservado. Beijo carinhoso de um Pai cheio de bondade, que no silêncio da Hóstia nos mostra seu amor misericordioso. Eis o gesto augusto da presença celestial, temporalizada no mistério da Encarnação. Cristo quis se unir à humanidade e revelar que ela tem um valor infinito, não obstante as suas limitações. Um dia, Deus em sua inefável benignidade nos perfilhou.

A Encarnação é uma incomensurável prova de amor de Deus. Mas, Ele quis ir além. Complementou misteriosamente sua prodigalidade no Sacramento do Altar. Ele se dá ainda mais, transformando elementos materiais em símbolos de sua pessoa. Consagra o universo, através dos três elementos que o representam: pão, vinho e água. A matéria inanimada torna-se suporte da divindade de Cristo ali presente, porém latente. Graças à fé, pode-se sentir essa teofania de Jesus, concedida por Deus aos filhos adotados. Por isso, exclamou Tomás de Aquino: “Ainda que o sentido falhe, a fé basta para confirmar o coração sincero.”

A profecia de Isaías, retomada pelo Mestre, no Evangelho de João, afirma: “Todos que tendes sede, vinde à água. Vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; comprai, sem dinheiro e sem pagar, vinho e leite” (cf. Is 55,1 e Jo 7,37). Alude ao alimento espiritual que Jesus oferece com seu Corpo e Sangue. É verdade que temos sede de justiça e do próprio Deus, às vezes, aparentemente, tão distante de nossos sentimentos e vidas. A Eucaristia sacia a nossa fome de valores maiores. Quem tem saudades de Cristo, vai buscá-Lo na beleza dessa presença silenciosa. E, embora sem falar, Ele deixa sua graça penetrar no íntimo de cada um que se achega a Ele para mitigar todo tipo de fome e sede. A Eucaristia é o pão dos viandantes, o viático na dimensão semântica do termo. Não apenas para os enfermos, mas, sobretudo para os caminhantes. Vale citar as palavras dirigidas ao profeta Elias, cansado, deprimido, como muitos de nós, em certos momentos da vida: “Levanta-te e come, porque ainda tens um caminho longo a percorrer” (1Rs 19, 7).

“Não vos deixarei órfãos” (Jo 14, 18), largados à própria sorte, garantiu-nos o Senhor. A Eucaristia é Cristo em nós. A caminhada solitária é difícil. Por esse motivo, Cristo quis conviver conosco. A dimensão do diálogo é importante. Assim sendo, Jesus legou-nos esse memorial, sinal de sua companhia. Não querendo que padecêssemos de solidão ou abandono, fez-se Pão e permanência. O “Sublime Sacramento” é antecipação do banquete da eternidade, no qual gozaremos o definitivo de nossa história. Deus, por Cristo, abranda em nós as saudades do Eterno. Extasia-nos um mistério tão admirável! Apesar de suas interrogações, os fiéis encontrarão paz na intimidade eucarística. Sustentados pela fé, que ilumina os nossos passos na noite da dúvida e das dificuldades, pode-se proclamar, como fizera o saudoso Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, quando pároco de Currais Novos: “Rei eterno, ó Deus humanado, suplicamos aos céus com fervor. Glória a Ti, ó Jesus escondido, ó mistério querido, ó milagre sublime de amor!” (Hino do Congresso Eucarístico Paroquial, outubro de 1937).

A passagem secreta

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

A Daunt Books, na região londrina de Marylebone, é uma belíssima livraria. Como comércio de livros, em princípio especializado em literatura de viagem, foi fundada em 1990, por James Daunt, um banqueiro também craque no ramo livresco, que depois foi trabalhar para as gigantes redes Waterstones (do Reino Unido) e Barnes & Noble (dos EUA). A Daunt Books virou uma pequena rede de livrarias, menos de dez no total, das quais eu estou lembrado de conhecer apenas a matriz em Marylebone, por sinal um bairro chique e muito aprazível da capital do Reino Unido. Acho que tenho uma das belas sacolas da rede – chamadas de tote bags –, das quais eles são, justificadamente, muito orgulhosos.

De toda sorte, fui poucas vezes à Daunt Books quando do meu período de estudos em Londres. Não era tão perto dos locais onde morei e, quase sempre, nas minhas vizinhanças, havia opções, digamos, mais convenientes. Mas, desta feita, hospedado por cinco noites no The Cumberland Hotel, nas abas de Marylebone, decidi alegremente me aventurar por esse comércio de livros. A mãe de João tinha ido fazer as compras de estilo na Oxford Street. Eu fiquei com o nosso pequeno. Então, passearia com ele na Marylebone High Street, rua agradabilíssima por sinal, cheia de lojas, restaurantes e gente, levaria ele na livraria e, quem sabe, dando tempo, ainda chegaríamos à estação de trens de Paddington, para ver o famoso urso – sua estátua, na verdade – chamado… Paddington.

O passeio pela Marylebone High Street foi divertidíssimo. Era uma manhã de sol – o que é sempre algo a se comemorar no abril londrino. Ia empurrando o carrinho de João. Ele com suas perguntas, que eu tentava – e ainda tento – responder da melhor forma possível. Olhamos muitas vitrines. Entramos em um par de lojas. Tomei um café. Dei o lanche de João. E chegamos à livraria.

A Daunt Books de Marylebone, que ocupa o prédio de uma antiga livraria da era eduardiana, é mesmo muito bonita. Embora mais simples, o seu interior lembra a famosa Livraria Lello do Porto. O trabalho em madeira escura nas estantes, nas balaustradas do andar superior, nos corrimãos e na escada que dá para o subsolo é realmente digno de nota. Belíssimo. A enorme janela/vitral no fundo da loja é encantadora. O teto envidraçado ilumina a nossa estada. Outrora especializada em livros de viagem, é hoje uma livraria bastante generalista. Seu acervo é bom. Muito melhor do que o da Lello, por sinal. E bem sistematizado. A livraria parece viver cheia. Tinha bastante gente no dia em que estivemos lá. Mas não eram “turistas”, tirando fotos para todos os lados, como no caso do comércio do Porto. Pareciam “locais” e realmente amantes de livros.

Pelo que me recordo, nada comprei. Mas algo deveras inusitado aconteceu. Uma lição, posso dizer. João insistiu em descer a bela escada de madeira, que dava para o andar mais baixo da livraria, onde ele afirmava haver uma passagem secreta. Tirei João do carrinho, que deixei atrapalhando o trânsito no andar térreo, e, carregando o requerente nos braços, nos aventuramos pelo subsolo, onde havia muitos livros, entre eles os de criança. Subimos depois de um tempo. Cheguei a colocar João de volta no carrinho. Mas ele pediu de novo para descer as escadas, com o mesmo argumento de que havia a tal passagem secreta. Desci já com um misto de cansado e encafifado. Demoramos mais um tempo e, para desgosto de João, subimos. Esse desce e sobe se repetiu mais uma vez. Foi aí que eu percebi haver deixado o carrinho de João verdadeiramente impedindo o trânsito dos leitores. Em especial, pedi desculpas a uma mulher que, curvada sobre o carrinho, tentava consultar a prateleira dos livros de filosofia. Envergonhado, colocando a responsabilidade no pequeno, disse: “É a imaginação dele. Insiste que descendo as escadas tem uma passagem secreta”. Ao que ela respondeu: “Mas tem ele razão. Lá está cheio de livros”.

Ainda hoje me pergunto o que João encontrou na sua passagem secreta…

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL