Na imagem, Caetano Veloso e Maria Bethânia durante show no Estádio Mané Garrincha, em Brasília
“A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.”
–Pessoa, na pessoa de Alberto Caeiro.
É estranho, quase bizarro, o tempo que estamos vivendo. Uma sociedade dividida com o fortalecimento da ultradireita, que se constrói e se mantém com uma prática de ódio e de preconceito, faz com que mesmo as questões mais simples possam causar algum constrangimento. E, às vezes, é difícil entender os motivos que levam as pessoas a serem intransigentes e irascíveis. Todo cuidado tende a ser pouco quando a intenção não é aumentar o fosso. É claro que faz parte também do nosso lado nos posicionarmos contra as manifestações que beiram, ocasionalmente, a teratologia.
Gosto muito de música brasileira e, por contingências diversas, tive muitas chances de assistir e acompanhar grandes cantores e artistas. Não me esqueço de um pedido do Roberto Carlos, certa feita, para que eu convencesse a Maria Bethânia a cantar no show dele de final de ano. Como se eu tivesse alguma força junto a essa musa que, além da voz, que está entre as duas melhores do Brasil, ainda é a maior declamadora de Fernando Pessoa do mundo. Assisti a inúmeras apresentações dela pelo mundo.
No sábado (9.nov.2024), fui ao estádio de Brasília assistir a um espetáculo fascinante: Bethânia e Caetano. Um emocionante show para 60.000 pessoas, hipnotizadas, felizes e em transe. A força dos 2 no palco, pensei eu, extrapolaria qualquer pensamento que não fosse o de amor e o de alegria, numa viagem de fãs em estado puro, sem lenço e sem documento.
Eis que me encontro no camarote com um querido amigo a também curtir e viajar ao som de sucessos que conhecemos de cor. Um amigo de um grupo que, de alguma forma, os tempos bicudos do fascismo me afastou. Ainda que educadamente, numa tentativa de manter certo respeito. Ele se desgrudou do grupo só neste aspecto: não se distanciou de mim de uma maneira ostensiva. Teve inteligência emocional, o que permite um relacionamento civilizado.
De repente, enquanto Caetano canta “Sozinho”, do Peninha, esse meu amigo me diz bem baixinho, parecendo não querer dizer: “Você sabe que me criticaram porque eu vim ver este show, pois acham que é um espetáculo que não deve ser visto?”. Como se o Caetano, de 82 anos, e a Bethânia, de 78, fossem artistas perigosos aos bons costumes eleitos por essa direita que tem pavor à liberdade, à inteligência, à irreverência e, talvez, ao humor. Fiquei pasmo de ver onde buscam inimigos e como constroem os muros. Fossos de ignorância e de intolerância. Abismos que só servem para se perder.
Confesso que me senti surpreso e perplexo. Só queria aproveitar o enorme astral que os 2 irmãos conseguiram imprimir ao espetáculo. As pessoas cantando a plenos pulmões como se não houvesse amanhã. Sem absolutamente nenhum pudor de soltar a voz. A multidão, a meia-luz, a energia, tudo, enfim, contribuía para uma viagem, ainda que careta, a um espaço onírico que nos abraçava a todos. E, inesperadamente, sou avisado que aquele show era não recomendável pela turma que segue a cartilha bolsonarista. Confesso que, de alguma forma, senti que chegamos a um ponto sem volta. Na verdade, desde muito novo, sempre dei valor às pessoas que têm o mesmo sentimento do mundo do que eu. Podemos conviver com diferenças enormes e, às vezes, de fundo, sérias. Mas é necessário que exista um sentimento que justifique a existência.
É preciso ser tocado por emoções comuns, chorar por motivos que se explicam e emocionar-se sem ter uma razão óbvia. Isso é o tal sentimento do mundo. Por isso, depois do susto, voltei a curtir o show, irmanado por todos que estavam ali simplesmente felizes. E posso dizer que me senti abraçado por toda aquela multidão. Nem fiquei triste por tanto preconceito e ignorância. Simplesmente viajei nas letras que me fizeram voltar a um tempo que deixou de parecer longe. Eu era feliz misturado por um bando de gente que só queria deixar a vida acontecer. Sem ter que explicar o inexplicável. Por alguns segundos, senti pena do meu amigo; depois, nem isso. Eles que se entendam.
Assim, remeto-me ao Ferreira Gullar:
“Resta ainda acrescentar –pra se entender essa noite proletária– que um rio não apodrece do mesmo modo que uma pera
Não apenas porque um rio não apodrece num prato
Mas porque nenhuma coisa apodrece como outra (nem por outra).”
Por estes dias, vieram me contar – melhor seria dizer “fofocar” – de um caso recentíssimo de adultério na nossa terrinha. Sei que essas coisas de adultério se tornaram hoje banais. Mas o tal caso envolve gente conhecida, posso até dizer bem famosa na paróquia potiguar. E o indivíduo que me contou estava deveras entusiasmado – para não dizer “excitado” – com o furdunço e, sobretudo, com a beleza bem-nascida da consorte adúltera.
Não pretendo agora entrar em detalhes sobre o ocorrido, nem muito menos dar nome aos “bois”. Pelo menos essa é a minha vontade no momento em que inicio esta crônica. Minha intenção é, aproveitando esse “gancho”, tratar de um tipo especialíssimo de literatura (dizer subgênero talvez seja um exagero), um tal “romance de adultério”, relembrando e indicando aqui dois clássicos das letras universais, “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert (1821-1880), e “Ana Karenina” (1878), de Leon Tolstói (1828-1910).
“Madame Bovary” é uma obra-prima. Figura certamente entre os melhores romances já escritos. Para alguns, tecnicamente, é mesmo o número 1. E agora mesmo eu relembro as sensações que tive quando o li, já pelo finalzinho da minha adolescência, começo da vida adulta. Foram de um realismo de fazer corar os mais castos. Parcialmente inspirado em um caso real, o enredo conta as aventuras e desventuras de Emma Bovary, nascida Roualt, uma jovem francesa que se casa com o médico provinciano, extremamente trabalhador, Charles Bovary. Apesar da paixão do marido por ela, Emma sente muito pouco por ele. À própria falta de amor, ela compensa imaginando os amores que lê em livros/estórias românticas. Ela lê Walter Scott (1771-1832) e outros menos votados. Quando um dia Emma frequenta um baile promovido pela nobreza de então, ela ali se mistura, entre nobres e ricos, e imagina que nasceu para viver aqueles sonhos. Esses ideais românticos, transformados em adultério, acabam por destruir seu casamento e sua vida (e paro por aqui para não dar mais spoiler). De toda sorte, o causo da “Madame” desvelou sobremaneira uma aprisionante realidade matrimonial em França e alhures.
“Ana Karenina”, em termos de qualidade e legado para a cultura, anda de par com “Madame Bovary” na ribalta dos maiores “romances de adultério” da literatura mundial. “Todas as famílias felizes são parecidas. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira” – talvez seja a mais célebre primeira linha da literatura universal. Alegadamente inspirado em um caso real de adultério, o romance conta, em primeiro plano, a estória de Ana Karenina e de seu amante, o Conde Alexei Vronski. Ana, em meio a essa paixão proibida (ela era casada com o enfadonho Conde Alexei Alexandrovich Karenin), entra num turbilhão de mentiras e de traição. Desesperada, premida por convenções sociais de antanho e leis absurdas (que só oprimiam as mulheres), vivendo num teatro de hipocrisias, numa das mais famosas cenas da literatura, ela acaba… Num primeiro momento, embora “Ana Karenina” tenha como temas principais a hipocrisia, a sociedade, a família, o casamento, o divórcio, a fidelidade, a paixão, o sexo e por aí vai, a obra não deixa de ser um veículo para que Tolstoi – com sua “filosofia” bem peculiar, quase mística – exponha suas ideias, de cunho mais social e político quero dizer, sobre a grande e congelante Rússia. Uma Rússia onde a vida no campo, idealizada pela e na personagem Konstantin “Kostya” Levin (para muitos o alter ego do autor), contrasta com os vícios e a hipocrisia da cidade. Paro por aqui.
Sei que a classificação “romances de adultério”, para certo tipo de ficção, não está consagrada nos manuais de literatura, pelo menos não como nos casos dos (sub)gêneros romances policiais/detetivescos, romances históricos, ficção científica, faroestes e por aí vai. Mas estou seguro de que, quando bem escritos, e ainda mais se obras-primas como “Madame Bovary” e “Ana Karenina”, esses livros são maravilhosamente excitantes. Assim como excitante é o caso real que mencionei acima, cujos detalhes acabei não apresentando aqui. Quem sabe não o faço em forma de ficção? Boa ideia…
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
Em tudo na vida, é importante a gente saber a hora de agir. Ou, pelo menos, saber cobrar posições quando a decisão não depende de nós. No meu escritório, somos 6 advogados. Optei por uma estrutura enxuta, na qual tudo passa por mim e por todos. Temos um costume, já de longa data de, pelo menos uma ou duas vezes por ano, fazermos uma viagem juntos. Só a gente: Paris, Lisboa, Courchevel, Montevidéu, Puntadel. Este, enfim, estamos sempre em algum canto do mundo.
Certa vez, estávamos em Paris, no meu apartamento, e uma advogada acordou muito mal. Parecia que ia morrer. Tentamos o seguro saúde da American Express, que havia sido comprado para a viagem, e nada. Falei várias vezes com a mesma atendente e nada deles disponibilizarem um médico. À tarde, consegui um médico amigo e logo ela estava curada. Era mais ressaca. No outro dia, no final da manhã, liga a assistente do seguro saúde. Quando ela começou a falar que tinha conseguido um médico, eu a interrompi: “minha colega faleceu nesta noite e estamos tratando do traslado do corpo!”. Perplexidade e choro do outro lado da linha. E ainda emendei: “vou processar a empresa e a senhora” e bati o telefone. Ela ligou várias vezes. Não atendi. Era tarde demais. Havia passado da hora.
Ou seja, em todas as questões, das bucólicas às muito sérias, é preciso que a gente esteja apto a nos posicionar. Por esse motivo, assisti, entre perplexo e incrédulo, à discussão sobre parte do governo apoiar a anistia para os envolvidos em 8 de janeiro. Por motivos diversos, tive que ouvir pessoas que respeito defenderem que é melhor anistiar, pois assim fica mais fácil o Lula tentar a reeleição. O Bolsonaro seria carta fora do baralho e, por isso, o melhor adversário.
Além de uma pregação sobre anistiar os que foram condenados, mas não tiveram tanta responsabilidade. Ora, até onde sei, quem decide sobre a responsabilidade criminal é, no caso, o plenário do Supremo Tribunal Federal. E não estamos tratando de um caso qualquer, comezinho. O que houve foi uma tentativa de golpe de Estado. De subversão da ordem constitucional. De ruptura institucional.
Houvesse dado certo, nós não estaríamos aqui escrevendo artigos e dando palpites sobre anistia. Se a Ditadura tivesse sido instalada, será que o ex-presidente Bolsonaro estaria falando em perdão? Em pacificação nacional? E os militares, generais e outros, que urdiram a trama, iriam topar apoiar eleições livres e conviver com os que eles tentaram tirar a fórceps da vida pública? E os financiadores, que certamente tinham objetivo de lucrar com o golpe, iriam abrir mão das negociatas pelas quais toparam colocar dinheiro para sustentar o movimento golpista? Enfim, a história é escrita por quem vence. Se fossem os que ousaram o golpe, qual seria o local reservado para os que perderam, no caso, nós?
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O tema anistia virou moeda de troca. Vale na disputa à presidência da Câmara, vale na composição de um possível novo ministério e vale até como motivo emocional -veja o ridículo apelo feito por Bolsonaro ao Lula para que ele encabece um movimento pela anistia. É tanta desfaçatez que as pessoas nem ficam coradas.
Ameaçam ministros do Supremo, afrontam as instituições, depredam as sedes dos Três Poderes, tentam resistir e tomar o Poder por não aceitarem o resultado das urnas e ensaiam um golpe com sustentação econômica, militar e política. Quando são derrotados, querem fazer parecer que não era sério. Que era só um treino, uma brincadeira. E ainda encontram advogados para defender que não houve golpe, no máximo uma tentativa. Ora, tivesse vingado o golpe nós é que estaríamos sendo julgados, presos, exilados ou mortos. O crime é esse mesmo: tentativa de golpe, pois se o golpe ocorre, não há crime, há mudança da ordem institucional e quem ganha escreve o que deve ser seguido.
Daí a importância da fala do ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, que, no dia 31 de outubro, disse estar indignado com a proposta e afirmou que o perdão aos crimes seria “uma agressão à população brasileira”.E, técnico, afirmou o que deve ser um mantra entre nós democratas: uma anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro e pelos movimentos que prepararam o golpe é inconstitucional.
Não tenhamos dúvidas de que qualquer projeto que se apresente tímido, com uma roupagem de anistiar os “pobres coitados” que serviram de bucha de canhão, no fundo, serve para anistiar os que ainda sequer foram denunciados. O objetivo final é favorecer os generais e outros militares graduados, os políticos que participaram da trama, os financiadores que sustentaram o movimento visando lucro e, claro, o ex-presidente Bolsonaro e seu bando mais próximo. Nenhum deles moveria um dedo para anistiar somente os que já foram presos e condenados. É tudo uma grosseira encenação.
A única parte que pode nos sensibilizar é apoiar, vigorosamente, os processos contra o grupo ainda não denunciado. Vamos esperar que sejam logo processados e, com o uso constitucional da ampla defesa, sejam condenados. Aí depois, já presos, eles voltam ao tema da anistia. Afinal, a anistia atinge todos os efeitos penais decorrentes da prática do crime. Logo, se Bolsonaro e sua turma alegam que não houve tentativa de golpe, que nada mais aconteceu do que um passeio na Praça dos Três Poderes, que não houve crime, tanto que sequer foram denunciados pelo procurador-geral da República, porque é mesmo que o tema da anistia entrou em pauta?
Remeto-me ao poeta Torquato Neto, no poema Cogito:
“eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim.”
Outro dia, em um excelente grupo de WhatsApp do qual faço parte, “Leitores vorazes”, administrado pelo amigo Bruno Cavalcanti, fui por este indagado sobre quais seriam os meus “top five” no que toca a livros em geral. Citei “O nome da rosa” de Umberto Eco, “A montanha mágica” de Thomas Mann, “Amor a Roma” do nosso Afonso Arinos, “A era da incerteza” de John Kenneth Galbraith e o conjunto “Júlio César/Antônio e Cleópatra” de Shakespeare, para logo depois, refletindo um pouco, transformar essa quina numa meia dúzia, incluindo “Criação” de Gore Vidal.
E é exatamente sobre Vidal e sua “Criação” (“Creation”, 1971) que quero falar um pouco.
Gore Vidal (1925-2012), escritor e ativista político norte-americano, foi um intelectual à moda antiga. Polemista, na esteira de um G. K. Chesterton ou de um George Bernard Shaw. Prolífico e diversificado, escreveu teatro e muitos – ponha muitos nisso – ensaios. Democrata e alegadamente bissexual, tratou, à sua maneira, de religião, filosofia e política. Mas, de minha parte, o que mais aprecio em Vidal são os seus “romances históricos”.
Sobre “Creation”, ainda me recordo até da sua aquisição – falo do exemplar em inglês que primeiramente li – na London Review of Books, a uma quadra do Museu Britânico, no bairro de Bloomsbury, uma das livrarias mais charmosas de Londres. Pequenina, composta de um pavimento térreo e de um subsolo, tem um café que então eu adorava. Logo devorei o livro e voltei à mesma prateleira para comprar “Julian” (1964) e outros mimos do mesmo autor.
Certa vez disse – e agora reitero – que “Criação” tem um lugar especial na minha alma literária. Cyrus Spitama, a personagem principal, grego e persa ao mesmo tempo, é neto do profeta Zoroastro. Representação perfeita do “homem viajado”, ao derredor do século V antes de Cristo, foi embaixador persa perante a Índia, a China e a Grécia de então. Através de Cyrus Spitama, somos apresentados a Cyro (o Grande), a Cambisses, a Dario (o Grande) e a Xerxes, os grandes (e haja grandes nisso) governantes persas da dinastia dos Aquemênidas. Cyrus Spitama é um homem que, através de pequenos ajustes de datas confessados por Vidal (uma mentirinha branca, a favor do nosso deleite), em direção ao Ocidente, topa com os gregos Péricles, Pitágoras, Demócrito, Tucídides e Heródoto, entre outros luminares que aquela civilização produziu. Vai à China, de mestres do Taoísmo e de Confúcio, no Oriente mais distante. No meio do caminho, ele passeia pela Índia de Sidarta Gautama (o Buda), de Mahavira (fundador do Jainismo) e de seu discípulo/rival Gosala, com suas filosofias e teologias tão misteriosas para nós “ocidentais”. Uma vida entre reis, pensadores, profetas e magos, de encontros e desencontros, um romance que é, antes de tudo, uma aula de história, geografia, filosofia, religião e política. Ainda devo acrescentar, quanto ao eruditíssimo romance de Vidal, um componente bem pessoal: li “Creation”, praticamente, dentro do Museu Britânico. Foram manhãs e tardes em que, maravilhado, contextualizava mais ainda aquela história/estória de gigantes, passeando (e aprendendo) pelo acervo daquele grande museu.
Paulo Francis, polemista como poucos, que também tem uma crônica intitulada “A criação de Gore Vidal”, republicada no seu livro “Diário da corte” (Editora Três Estrelas, 2012), “elogiosamente” afirma que “Creation sugere que o humanismo já disse tudo o que tinha a declarar em 500 a.C. Não é bem assim. Ou talvez seja. Se ficarmos apenas no humanismo e omitirmos a ciência. É difícil superar Buda ou Confúcio. Nossos mentores Moisés e Cristo são bobos perto desses sábios (é de estarrecer o que Confúcio faria em face de Cristo. Provavelmente lhe daria uma esmola e sairia correndo)”.
Bom, como cristão enfadado, não vou entrar nessa querela. Apenas sugiro a diversa leitura da “Criação”.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
“Inútil pedir perdão. Dizer que o traz no coração. O morto não ouve.”
–Ferreira Gullar, “O Morto e o Vivo”.
É quase inexplicável a agressividade de um jornalista tão competente, experiente e respeitado, como o querido Marcelo Tognozzi, ao escrever, aqui neste prestigioso espaço, um artigo tão colérico como o “Lord cara de pau”. A virulência com que tratou os advogados ingleses, o desprezo pelos que sofrem há 9 anos pela tragédia criminosa de Mariana, a defesa ferrenha das mineradoras Vale e BHP e a subleitura parcial do processo que corre em Londres, tudo assusta e causa um enorme constrangimento.
Dizer que “é um insulto para o país que um escritório de advocacia britânico baseie seu caso na suposta incapacidade de o governo e o Supremo fazerem justiça” é desconhecer a realidade. O próprio presidente do Supremo, Roberto Barroso, reconheceu o direito de os brasileiros optarem pela jurisdição inglesa, frisando que não é uma questão de soberania, e, expressamente, confirmou que o processo na Inglaterra foi um motor para que o acordo aqui saísse. Ou seja, foi necessário a Corte Inglesa julgar e aceitar a jurisdição da Inglaterra para que o Judiciário brasileiro sentisse que era absurdo não fazer um acordo.
Vale lembrar que se passaram 9 anos do desastre criminoso. E, ainda assim, foi uma repactuação em que as vítimas não foram convidadas para se sentar à mesa de negociação. Até por isso, escrevi o artigo “Naquela mesa estão faltando eles”. E ainda nesta semana, protocolamos uma petição requerendo que os povos originários e os quilombolas sejam ouvidos antes da homologação do acordo, conforme a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal e de convenções internacionais. É importante frisar que a defesa no processo na Inglaterra jamais recomendou às vítimas que “recusassem o acordo brasileiro”. O que não se pode admitir é uma cláusula imoral e ilegal de exigir que os que aderirem ao acordo no Brasil abram mão do direito que têm no processo inglês.
Não há “trouxa” entre os ribeirinhos, os quilombolas e os povos originários. O que há é uma comunidade sofrida, espoliada e enganada há longos 9 anos por uma completa omissão das poderosas mineradoras que têm o costume de fazer valer só o dinheiro e o lucro, comprando tudo e todos. Só não conseguem comprar a dignidade de uma população sofrida, que tem história, e que não se entrega.
Basta respeitar e querer ver a realidade. Remeto-me a Mia Couto: “Cego é o que fecha os olhos e não vê nada. Pálpebras fechadas, vejo luz como quem olha o sol de frente. Uns chamam escuro ao crepúsculo de um sol interior. Cego é quem só abre os olhos quando a si mesmo se contempla”. As poderosas mineradoras, com seus cofres abarrotados do dinheiro que extrai do minério brasileiro, conseguiram fazer com que parte da mídia comprasse a ideia de que empresas que optem por financiar grandes litígios –como o da Inglaterra, neste caso– cometem ilegalidade. De maneira cruel e com um marketing voltado para desmoralizar a advocacia, usam de um termo pejorativo, utilizado no artigo aqui criticado, no qual se lê: “O escritório inglês Pogust Goodhead, anabolizado por fundos abutres”. Ou seja, abutres não são os que provocam morte e destruição e se negam a indenizar, mas os que resolvem arriscar seu dinheiro para viabilizar a hipótese de uma ação que pode devolver, um pouco, da dignidade usurpada pela ganância das mineradoras.
Um processo na Inglaterra é muito caro. Quando os meus clientes, os quilombolas, iriam ter condições de serem representados na Corte Inglesa se não fosse por meio de investidores que acreditam na ação? Que correm o risco, como ocorre em todos os países do mundo. Especialmente nos países em que é muito caro bater às portas do Judiciário, esse é um costume cada vez mais comum. Transparente. E dando a chance de colocar no outro lado da mesa advogados capazes de enfrentar o batalhão contratado pelas poderosas mineradoras. Ainda bem que esse é um método difundido, senão os ribeirinhos, os povos originários e os quilombolas estariam, até hoje, sem sequer conseguirem ter a atenção e o respeito dos responsáveis pela tragédia criminosa.
É um respeito conseguido a fórceps e graças, em parte, aos fundos investidores. É fácil para quem tem um fundo interno, do próprio grupo, com um caixa sem limites, vender a imagem para parte da mídia que qualquer possível oponente tem uma atitude aproveitadora.
E, só para fixar essa imagem nos seus competidores, gastam em mídia o que os atingidos não teriam, nem de longe, como arcar com a ação como um todo. Depois de 9 anos, sentiram que existia sim uma hipótese de serem condenados a pagar às vítimas uma reparação a que elas fazem jus. Sem os fundos investidores, não seria possível sustentar o direito delas em Londres. É muito conveniente tachar de abutres os que investiram na chance de fazer justiça. Felizmente, um grupo de advogados acreditou e conseguiu submeter o caso à Corte Inglesa, quando a imensa maioria das vítimas já não acreditava em mais nada. Devolveram a elas o direito de sonhar. São muitas ainda as dificuldades. Mas é bom lembrarmos de Fernando Pessoa:
“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.”
Penso que a discussão acirrada que se dá, neste momento, em vários grupos, sobre se o PT perdeu as eleições municipais, tem seu valor para quem faz política partidária. Para a sociedade como um todo e para o cidadão, o buraco é mais embaixo. Independentemente de partido, o que se constata é que o mundo deu uma guinada para valores identificados com a direita e, até, para a extrema direita. As pessoas perderam, em boa parte, o sentido de solidariedade e de compaixão que ainda mantinham – ou mantêm?- certa esperança na utopia de um mundo mais igual e justo.
Hoje, ser professor é considerado, por parte dos “influenciadores do pensamento”, um retumbante fracasso. Se você não empreendeu e não acumulou bens e dinheiro, vai ser expelido, expulso do rol dos políticos que podem estar à frente de um projeto de governo. E as dificuldades vão muito além: as pessoas se desumanizaram e a violência, cada vez mais, domina o dia a dia. Não é só a violência física que mata, rouba e estupra. É a de gênero, de raça, de cor e de religião. Que mata a alma, rouba a esperança e estupra o futuro de uma nação.
Até entendo quem faz a conta da quantidade de prefeituras que cada partido elegeu. Mas, sinceramente, acho razoavelmente desimportante. Os partidos, em regra, têm dono e, salvo raras exceções, nenhuma identidade ideológica. É um agrupamento de pessoas com interesses muito mais próximos de vocação de negócio e de poder do que de preocupação com princípios que possam defini-los.
Lembro-me que, certa vez, fui procurado por 2 candidatos que estavam às portas de serem eleitos. Um agoverno de estado e outro a deputado federal. Ambos queriam que eu os apresentasse a um importante político de direita. Influente e experiente. Ao propor a apresentação, esse político foi pragmático: “estou viajando agora e só tenho tempo de receber um deles hoje. Chame o candidato a deputado”. Perplexo, perguntei se não seria melhor ele falar primeiro com o futuro governador. Ele me explicou, com a visão prática que chega a ser palpável que, na divisão do bolo partidário – do dinheiro, da grana, do vil metal -, o deputado pesa mais na balança. E a gente discutindo quem ganhou mais prefeituras.
Ou seja, muito mais preocupante e relevante do que entender os indecifráveis caminhos que levam às composições partidárias na hora da disputa eleitoral,é compreender os estranhos caminhos por onde caminha a humanidade. Claro que é importante para os analistas políticos entender, ou tentar entender, porque o PT abriu mão de lançar candidatos em cidades emblemáticas – São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, entre outras.
Porém, mais importante e fundamental é colocar na mesa para o cidadão comum, que vota, o peso das emendas, do orçamento secreto, da burla ao sistema de cotas para mulheres e negros, da força colossal do dinheiro do fundo partidário, ou seja, das questões práticas que efetivamente contam para a grande maioria dos políticos. Que foram e serão eleitos com as mãos na massa desse pragmatismo político partidário. Mas essa engrenagem foge, na grande parte das vezes, da capacidade de observação dos estudiosos políticos.
Existem outras preocupações mundanas que nos afligem e que, prazerosamente, nos dedicamos a palpitar como analistas de boteco. Dentro de uma normalidade, o Lula, não necessariamente o PT, vai ser reeleito. E com o apoio ostensivo ou envergonhado da grande maioria dos prefeitos e políticos que “derrotaram” o PT nas eleições municipais. O xadrez já mexe suas pedras. Mesmo a direita dita civilizada já avança com seus peões, bispos e torres, tudo dentro de um acordo que não passa por discussão partidária, por ideologia e, o pior, muitas vezes, a ética não entra no tabuleiro.
E aí nos restam angústias mundanas. Em 2030, com Lula fora do jogo – por já ter sido reeleito outra vez -, qual peça vai representar o humanismo e a decisão de fazer o enfrentamento da injustiça e da desigualdade social? O Lula teve e tem. Quem, no futuro, terá prestígio e estômago para dividir a mesa com as hienas?
Lembrando-nos do grande Eça de Queiroz:
“O orgulho é uma cerca de arame farpado que machuca quem está de ambos os lados.
Padre João Medeiros Filho Numa solenidade única e especial, a liturgia celebra aqueles, que marcados com o sinal da fé, partiram para o abraço definitivo de Deus. Nisso, a Igreja dá-nos um grande exemplo de unidade, comunhão e fraternidade, reunindo numa só celebração santos e pecadores. Não há privilegiados nem desprezados. A Igreja deseja-nos conclamar para nossa condição de seres imortais, perfilhados pelo amor divino e pela graça santificante do batismo. No entanto, temos medo da morte. Há dificuldades em aceitá-la como um ato natural da existência. A morte é a porta de entrada da Vida, sem ela não se poderá desfrutar da paz em plenitude. Como cristãos, cremos num Deus Pai, que vela por nós e nos recebe com carinho, no final de nossa caminhada. Tornou-nos seus filhos, resgatados pelo sangue de Cristo, sinal ainda maior de sua inefável ternura e misericórdia. Diariamente, somos alimentados com suas bênçãos e graças, manifestação de sua amorosa presença em nossa caminhada terrena. Tudo é fruto do Amor. Este não morre, gera vida e diferentes formas de viver. Deste modo, nossos entes queridos não desaparecem, encontram em Deus outra maneira de ser. A Solenidade de Finados é um convite a lembrar e homenagear aqueles que passaram por nossos caminhos, presente precioso que o Senhor nos deu. Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta “tem razões que a razão desconhece”, identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade, que o espaço e o tempo sequer imaginam. Ela é a marca do eterno, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, quebra os laços que nos prendem e liberta das prisões. A fé conduz-nos ao Amor. E este não morre. “É mais forte que a própria morte. E quem não ama, permanece na morte” (1Jo 3, 14). Santo Agostinho repetia: “ninguém ama sem ter fé nem acredita sem amar.” A Liturgia de Finados é a celebração da fé que nos une e consola. Por isso, devemos reverenciar aqueles que continuamos a amar. O vazio temporal é preenchido pela força da esperança cristã. A Eucaristia coloca-nos numa atitude de escuta silente daqueles que marcaram nossa história. O Dia 2 de novembro é uma data de encontro familiar, em que nos reunimos para ouvir dentro da alma aqueles que nos ajudaram a compreender e a viver melhor o dom da vida. É metaforicamente nossa celebração. Sofrimentos, decepções, tristezas, angústias, derrotas e perdas têm sabor de morte. Mas, Deus nunca nos deixa sozinhos, relegados ao desespero. “Eu te chamei… e te peguei pela mão” (Is 42,6). Assim, podemos verificar na história do povo bíblico. O apóstolo Paulo afirma que não há proporção entre os padecimentos deste mundo e a glória futura. Deus reserva para cada um de nós o inimaginável, que supera nossas dificuldades e dores. Em Finados celebra-se o Amor. Primeiramente, o de Deus por nós; em segundo lugar, o de nossos entes queridos para conosco e vice-versa. Não nos inquietemos. Apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé, haveremos de descobrir meios de permanecer presentes e unidos. Os discípulos de Jesus Cristo não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes, quando oportuno, a Sua face. Assim, os que nos precederam na Casa do Pai, saberão como nos tocar e responder as nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva. A Solenidade de Finados é, portanto, a proclamação da certeza de uma fé que nos consola e fortalece. Nesse dia, dedicamo-nos especialmente a reverenciar a memória daqueles que amamos, apesar de fisicamente ausentes. O vazio corpóreo e cronológico é preenchido pela força da graça cristã. A liturgia da Igreja conclama-nos a uma atitude de comunhão com aqueles que marcaram nossa vida. A Eucaristia dessa data propõe-nos um encontro transcendente, em que nos reunimos para sentir no íntimo da alma aqueles que – hoje no reino celestial – nos ajudaram a viver o dom da existência. Para Santo Agostinho, “a morte é a aurora da eternidade e nos faz semelhantes a Deus.” Assegura-nos o Mestre “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11, 25).