“Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.” Fernando Pessoa, na pessoa de Caeiro
A vitória espetacular do filme Ainda Estou Aqui no Oscar vai muito além do mundo da arte, do cinema. Em um momento tão delicado e estarrecedor, com o crescimento da extrema direita no mundo, o filme levou para todos os cantos uma crítica, um alerta e um apelo contra a ditadura. A obra ter mostrado, ainda que de maneira quase leve, a dor do desaparecimento covarde e cruel de um marido, de um pai, de um deputado, de um brasileiro foi um soco no estômago desses fascistas que cultuam a tortura e a morte. E só teria a repercussão que está tendo pela inteligência no enfrentamento de um tema tão grave e doloroso. A cena da família posando para a foto com todos sorrindo é a imagem que mais marca, é o símbolo da resistência contra a violência. É emocionante.
O atual contexto é de uma gravidade imensa. A extrema direita perdeu qualquer limite. No mundo inteiro, assistimos a cenas grotescas de recrudescimento da violência, como o casamento macabro de Trump e Musk. A falta absoluta de qualquer critério, até estético, choca e preocupa. Não se pode imaginar aonde chegarão esses métodos teratológicos de tratar as pessoas e a coisa pública. A vida passou a ter outro significado. A maneira de compreender a política foi drasticamente banalizada. O mundo emburreceu.
Até por isso, o significado dessa vitória cresce. Além da mensagem do filme, é relevante lembrar que, em todas as homenagens, nas mais de 40 comemorações de prêmios diversos, a crítica à tortura, ao covarde desaparecimento e à ditadura estava, de alguma maneira, presente. E chegou a milhões de pessoas mundo afora. Enquanto no Brasil, há muito pouco tempo, nós tivemos que conviver com fascistas que cultuam a tortura e que têm o torturador Brilhante Ustra como ídolo, o mundo inteiro – incluindo o povo brasileiro – parou para acompanhar a dor de uma família vítima da violência da ditadura. E por isso mesmo é importante gritar aos quatro cantos, com uma voz forte, para que nunca mais volte o horror da ditadura que os fascistas de 8 de janeiro tentaram restabelecer: ainda estamos aqui!
Lembrando Mario Quintana, no poema Emergência: “Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo – para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado.”
O ato da imposição de cinzas remonta ao Antigo Testamento. O livro de Ester narra Mardoqueu vestindo-se com pano de saco e cobrindo-se de cinzas, ao saber do decreto de Assuero (Xerxes I, da Pérsia), condenando à morte os judeus ali residentes (cf. Est 4,1). Atitude semelhante teve Jó, demonstrando o seu arrependimento (Jó 42, 6). Daniel, ao profetizar a tomada de Jerusalém pela Babilônia, escreveu: “Voltei o olhar para o Senhor Deus, procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e coberto de cinzas.” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, o povo de Nínive se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e sentou-se sobre elas (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram a prática religiosa do uso das cinzas como símbolo de arrependimento, tristeza, penitência, conversão e dor. Cristo aludiu igualmente a esse costume, quando se dirigiu aos habitantes das cidades de Corazim e Betsaida que não se arrependiam de seus pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas”, advertiu o Mestre. (Mt 11, 21).
A Igreja, desde os primórdios, continuou este ritual com um simbolismo análogo. Tertuliano aconselhava o pecador a “vestir-se com um tecido de estopa e cobrir-se de borralho.” Eusébio, primeiro historiador da Igreja, relata que Natálio se apresentou com esses trajes, diante do Papa Zeferino, para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para significar que o “velho homem” tinha sido destruído, dando lugar ao “novo homem” (Ef 4, 24), do qual fala o apóstolo Paulo.
Por volta do século VIII, as pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e nele te hás de tornar.” (Gn 3, 19). Este rito foi tomando uma nova dimensão místico-espiritual e passou a significar morte ao pecado, em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça, inveja, ódio, violência, insensibilidade etc. Assim, com o passar dos anos, tal costume foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o velho homem existente em nós para ressurgir com Cristo, na Páscoa.
Na liturgia atual, as cinzas utilizadas na quarta-feira são obtidas com a queima de sobra das palmas bentas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo: “Lembra-te que és pó e nele te hás de tornar”, ou então, com outra fórmula: “Converte-te e crê no Evangelho.” (Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação para a Páscoa pela vivência da quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de tudo o que nos aniquila em nossa caminhada de fé e amor.
Aceitando tal ritual, expressamos duas realidades fundamentais: a consciência de que somos criaturas efêmeras e nossa fé na ressurreição. Cristo ressuscitou dos mortos, prometendo-nos que também ressuscitaremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que renasce das cinzas. Isto lembra-nos que delas também nós podemos surgir, como criaturas novas, pela graça inefável de Deus. Elas simbolizam mudança radical, na medida em que representam aniquilamento ou destruição. Por essa razão, somos chamados a nos converter ao Evangelho de Jesus Cristo, mudando nossa maneira de pensar, julgar e agir, libertando-nos da arrogância, do egoísmo e de tudo aquilo que nos afasta de Deus. A palavra marcante com que se abre a celebração da quaresma – a qual se inicia na quarta-feira, após o carnaval – é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação da mente e do espírito. Foi isto o que Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser, pensar e viver. O apóstolo Paulo, de forma inspirada, o chama de “novo Adão”, qual seja, uma nova humanidade (Rm 5, 12-21).
A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal é conversão. O termo, de origem hebraica, indica mudança, interior, dir-se-ia, transformação na mente e no espírito. Foi exatamente isto o que Cristo veio trazer com sua doutrina. Indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver, a tal ponto do apóstolo Paulo chamá-lo de: “Novo Adão” – nova humanidade (Rm 5, 12-21).
Durante quarenta dias, somos convidados a meditar sobre nosso destino e nossa condição de filhos de Deus. Sabemos que a Igreja muitas vezes se alimenta liturgicamente de simbolismos. O símbolo é aberto, enquanto a palavra linear é fechada e, não raro, limitada e pobre. Recorrendo amiúde à numerologia, a liturgia recorda-nos, os quarenta anos de marcha do Povo de Deus, em direção a Canaã, os quarenta dias e quarenta noites que o Senhor passou no deserto, antes de ser tentado por Satanás. Portanto, a palavra quaresma está sempre ligada à reflexão e caminhada.
Como nos rituais do Antigo Testamento, a quaresma cristã exorta-nos ao jejum e à conversão (em grego: metanóia). Na sociedade hodierna, fala-se muito na linguagem administrativa e biomédica em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que possamos ser capazes de cortar as gorduras do egoísmo, da vaidade, da violência, da injustiça e do desamor. Na sociedade hodierna de culto ao corpo, malha-se muito e inúmeras modalidades de exercícios são praticadas e ensinadas. Jejuar é malhar interiormente, eliminar os excessos nocivos à vida humana para dar lugar à fome do Deus Vivo.
A quaresma lembra também o êxodo do Povo de Deus em busca da Terra Prometida. A partir daí a Igreja chama a atenção sobre a nossa trajetória diária. A liturgia proporciona-nos um espaço interno e temporal, durante o ano, a fim de realizarmos uma viagem ao interior de nós mesmos. E assim, voltando ao que é verdadeiramente nosso, possamos nos deparar com o que ali deixamos, encontrando-o renovado. Às vezes, de volta à casa, depois de meses ou anos, muita coisa não existe mais. Da mesma maneira, o “que é velho”, no dizer do apóstolo Paulo, deverá desaparecer para dar lugar à novidade de Deus. Esse tempo privilegiado na vida cristã é a quaresma. Mas, esta não é apenas um período litúrgico. É também um momento ao longo de nossas vidas, em que devemos retornar, com a ajuda da graça divina, ao nosso interior. E ali, é indispensável realizar o encontro com nossos erros e virtudes.
A celebração quaresmal convida-nos ao despojamento para um renascer. A cerimônia de cinzas significa o fim de tudo o que nos afasta do Pai e de nós mesmos. É preciso reduzir a pó nossa mentira, nosso egoísmo, nossa insensibilidade, numa palavra, nossos erros, limitações e pecados, para que possa nascer em nós o “homem novo”, que Cristo Jesus veio trazer ao mundo. As cinzas traduzem simbolicamente nossa conversão, o queimar de nossos erros e o brotar de novos planos. Por isso deve surgir em cada um de nós um desejo autêntico de escuta da palavra de Deus. Caminhar ou viajar pode nos ensejar uma oportunidade de dialogar e ouvir outras pessoas. A quaresma é esse convite a uma escuta atenta e profunda de Deus Pai. É sua Palavra que ilumina nossa vida, nos convida à transformação interior e nos dá a verdadeira dimensão da misericórdia divina, do perdão e da graça do Senhor Jesus. “Somos pó e a ele voltaremos” (Gn 3, 19). Esta é mais uma das verdades sobre a qual a Igreja pretende nos conscientizar. Assim compreenderemos o significado da Quarta-feira de Cinzas. Há um apelo para destruir o velho homem dentro de nós a fim de ressurgir uma criatura totalmente renovada, segundo a expressão de Paulo (Ef. 4, 22-24). “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3), falou Cristo a Nicodemos. Precisamos dar lugar à outra criatura dentro de nós. Eis o sentido das Cinzas que nos foram impostas, na cerimônia litúrgica, acontecida em nossas paróquias e comunidades, ao adentrarmos no tempo quaresmal, que nos levará à alegria da Páscoa do Senhor.
Um dos “mistérios” sobre Shakespeare diz respeito ao direito. Como poderia o Bardo ter tanta intimidade com o mundo jurídico, ao ponto de retratar tão fielmente os procedimentos legais da época das suas produções teatrais? Como poderia ele, com tanta precisão, debater questões como Justiça, formalismo legal, bom-senso etc.?
Formação clássica em direito, Shakespeare não possuía. Ele foi certa vez testemunha em um caso envolvendo pessoas da sua convivência, é vero. Esse, aliás, é um dos acontecimentos mais relevantes para comprovar a existência da pessoa William Shakespeare (1564-1616). Mas isso, por óbvio, está deveras longe de fazer dele um profissional/conhecedor do direito.
Esse mistério do conhecimento jurídico do Bardo tem martelado em minha cabeça desde quando, morando em Londres, tive oportunidade de assistir a duas de suas obras: “Bem está o que bem acaba” (no National Theatre) e, sobretudo, “A Comédia dos Erros” (no Globe Theatre), peça cuja trama gira em torno da condenação à morte de um comerciante de Siracusa, apenas por violar estrita proibição legal de cruzar a fronteira entre sua cidade e Éfeso. “A Comédia” trata, então, do dilema da pena de morte, do legalismo exagerado e meandros dos procedimentos legais da época.
Esse “encafifamento” só aumentou depois que eu devorei, já no papel, as duas “peças jurídicas” de Shakespeare, assim classificadas por Daniel J. Kornstein em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005): “O Mercador de Veneza” e “Medida por Medida”. “O Mercador de Veneza”, notável “courtroom drama”, é uma crítica à vingativa visão de Justiça “olho por olho, dente por dente” e à visão formal do direito, em prol de uma Justiça de equidade, a partir de um bom-senso natural aplicado às especificações do caso. É também uma aula de direito contratual e, sobretudo, no que considero o clímax da peça, uma lição de hermenêutica inteligentemente revolucionária, embora, como sói ocorrer no bom direito, atenta à “letra da lei” e aos “exatos termos” do contrato. Já em “Medida por Medida”, onde nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, aprendemos que “Leis para todas as faltas (…): são motivo de zombaria mais que de advertência”; e enxergamos a hipocrisia da Justiça absoluta aplicada pelos homens, uma vez que, no mundo real, de paixões e fraquezas, por não ser a medida certa, ela simplesmente não funciona. Pelo menos não no parecer do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou – que foi Shakespeare.
Há uma curiosa teoria que visa explicar essa sabença jurídica do Bardo. Segundo os autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” (J. M. Dent & Sons, 1978), Gareth Lloyd Evans e Barbara Lloyd Evans, existe a tese de que “Shakespeare foi assistente de advogado após deixar a escola”. Para eles, “isso, como uma defensável hipótese, não pode simplesmente ser colocada de lado. Não há prova factual, mas a evidência circunstancial é formidável: (a) durante a juventude, ele teria sido bem relacionado com os advogados de Stratford em razão dos afazeres do pai, tanto comerciais como na administração da cidade, e mesmo em litígios mais graves nos quais o volátil John Shakespeare estava envolvido, incluindo contravenções; (b) durante a vida, Shakespeare estava envolvido, como muitos do seu status social e econômico, com questões legais – em especial a compra, venda e aluguel de imóveis. Ele parece ter sido assíduo e informado nos seus negócios e tornou-se próspero; (c) suas peças são pródigas em profissionais do direito, em linguagem legal e mesmo em evidências de um bom conhecimento da ciência jurídica”.
Desconfio. Tanto quanto não gosto de teorias conspiratórias, desprecio teses mirabolantes. Prefiro acreditar que Shakespeare foi mesmo um gênio natural, autodidata, com insuperável capacidade de extrair maravilhas das suas fontes, reformulando-as nas tragédias e comédias que nos encantam até hoje. Ele lia e relia os livros que podia, sobretudo os clássicos gregos, para fins de elaboração de suas peças, assim como as reescrevia e revisava frequentemente. Ao ler e reler os clássicos, pensar e revisar as ideias de outrem e as próprias, ele se fez autodidata na apresentação literária do bom-senso e da Justiça.
Aliás, os próprios autores do “Everyman’s Companion to Shakespeare” lembram que a grande força do Bardo não estava no seu conhecimento ou bagagem cultural – isso Milton, Francis Bacon ou mesmo Ben Jonson tinham muito mais do que ele –, mas, sim, na forma poética e insuperavelmente encantadora como ele punha esse conhecimento no papel e no palco.
Isso, para o direito, que trabalha com a linguagem, é muito mais do que muito. E não se aprende em faculdade alguma.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
“Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E, capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar.”
–Pessoa, “Livro do Desassossego”.
Em qualquer país democrático, uma denúncia penal que impute a um ex-presidente da República os delitos de tentativa de golpe de Estado, de subversão à ordem constitucional e de ser o líder de uma organização criminosa armada vai causar grande reação. Ainda mais se a acusação inclui generais do mais alto coturno, que até pouco tempo ocupavam cargos importantes no governo e no Exército, bem como um ex-chefe da Marinha e outro ex-ministro da Justiça.
Certamente, alguns grupos militares, políticos, de imprensa e do empresariado vão se esforçar para desacreditar as instituições, além de negar o movimento golpista. A subleitura das provas que vão aparecendo e as versões enviesadas fazem parte de um script de quem, no fundo, sabe que a condenação se aproxima e que é inexorável.
A defesa, que tem que ser ampla e plena, tem um papel a cumprir. E deve ser respeitada, mesmo com teses teratológicas: apontar a incompetência do STF (Supremo Tribunal Federal) para julgar o caso; levantar a tese de impedimento de alguns ministros; ousar falar em suspeição, sem nenhuma previsão legal ou regimental, do relator; plantar jornalistas de aluguel para tentar dar certo ar de seriedade a um debate em que os argumentos são pífios; investir contra a delação que desnudou o esquema criminoso.
Tudo isso, desde que dentro das balizas que também são impostas à defesa, faz parte do processo penal democrático. Não tem fundamento jurídico, mas é um direito. Temos que estar atentos a certos limites éticos. Qualquer comparação entre o trabalho do ministro Alexandre de Moraes e do STF com os desmandos da República de Curitiba, Moro e seus procuradores adestrados, é infamante e ultrapassa os limites aceitáveis.
Parece claro que não nos cabe avaliar e criticar nenhuma linha de defesa, mas o respeito ao Poder Judiciário é algo que se impõe. Em qualquer processo. Ainda mais em um caso no qual se enfrenta uma tentativa de fechar o Supremo, matar um ministro da Corte e instalar a ditadura no Brasil.
As últimas gravações que vieram a público são estarrecedoras. Não é possível ter qualquer dúvida razoável. O golpe foi urdido e, inclusive, houve movimentos claros de implementação da tentativa. Agora, a imprensa publica um áudio em que um policial afirma que “estavam com Moraes na mira para atirar”. O que mais se pretende para comprovar a existência de uma organização criminosa armada, como relata a denúncia? Repito: tivessem dado o golpe, aí, realmente, não existiria o tipo penal da tentativa.
E a ditadura estaria instalada no país. Cumpre a cada um de nós acompanhar o julgamento, que deverá ser rápido. Reitero, para quem não tem formação jurídica: praticamente todas as preliminares já foram enfrentadas pelo STF e estão decididas. Até por isso, estamos vendo teses como o pedido, infundado, de suspeição dos ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin. É o exercício de criatividade da defesa que sabe que, em centenas de outros casos, o Supremo já decidiu, à unanimidade, as preliminares postas. Tenta-se até mesmo mudar o julgamento da 1ª Turma para o Pleno, contra expressa previsão regimental. Houvesse agora essa alteração, seriam inúmeros os pedidos de nulidade de vários processos decididos na 1ª Turma, cumprindo o regimento do Supremo, que tem força de lei.
É bom frisar que o julgamento da denúncia pode e deve ser célere. Com a sistemática adotada pela Corte, de que o relator pode delegar a juízes federais, por carta de ordem, a oitiva das testemunhas, essa questão se resolve em 30 dias e, aí, restam as matérias de direito. Muitas já decididas, inúmeras vezes, em processos transitados sobre a mesma tentativa de golpe.
Espera-se que o julgamento se dê ainda na presidência do ministro Barroso, que termina em setembro. O Brasil merece isso, até para mudar de página. Todos nós merecemos e a democracia agradece.
Sempre nos lembrando do grande Mia Couto:
“Se não criarmos nas escolas histórias que falam sobre solidariedade, a amizade, a lealdade, essas pequenas coisas que são realmente as grandes coisas da vida, isto não vai surgir naturalmente”.
“Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar.” Leão de Formosa, poema O Búzio e a Pérola.
É preciso sim discutir a denúncia contra Bolsonaro e seu bando que foi apresentada pelo Dr. Paulo Gonet ao Supremo Tribunal. É uma peça técnica e contundente. A turma que apoia Bolsonaro tentou, de diversas maneiras, desacreditar o trabalho da Polícia Federal, que coordenou a investigação, e, agora, lança dúvida sobre o trabalho do Ministério Público. Faz parte do jogo da defesa, e, de certa maneira, as críticas desencontradas que acompanhamos só reforçam certo desespero por parte de quem, no fundo, sabe que o cerco se fechou.
Tanto o trabalho sério e muito bem desenvolvido pela Polícia Federal quanto a peça assinada pelo procurador-geral da República, não deixam margem para dúvida: os golpistas serão condenados pela Suprema Corte. E responderão pela tentativa de instalar uma Ditadura no país. Ocorreu uma gravíssima tentativa de destruir as instituições democráticas e romper com a ordem institucional. O Brasil demonstrou que as instituições estão sólidas e que os valores democráticos continuarão vigendo.
Devemos estar atentos, pois todas as forças golpistas se voltarão, ainda mais, contra o Supremo Tribunal Federal, que, já há algum tempo, está sob ataque. Na bem arquitetada peça de acusação, seguindo o relatório elaborado pela Polícia Federal, o Ministério Público relatou, com minúcias, os inúmeros ataques que foram desferidos contra o Poder Judiciário, especialmente contra o STF e o TSE. Agressões que saíram do âmbito da Corte para se concentrarem, covarde e perigosamente, contra os ministros e seus familiares.
Foi chocante ver revelado o plano, que chegou a ser iniciado, de prender e matar o ministro Alexandre de Moraes. Mesmo parte da direita se assustou com a ousadia dos golpistas. Não existe mais dúvida: tivesse o golpe vingado, boa parte dos democratas seriam mortos, presos ou teriam que ir para o exílio. E, é bom frisar para os incautos, o crime que está descrito minuciosamente é mesmo de tentativa. Afinal, se o golpe fosse consumado, nós não estaríamos aqui para questionar e contar a verdade. A história, em um primeiro momento, é dirigida por quem vence. Quem apoia a Ditadura sabe os caminhos da barbárie, da mentira e da destruição dos valores democráticos.
Os últimos áudios que vieram a público deixam muito claro a enorme trama que foi urdida para a tentativa de golpe. O argumento de que o Exército e a Aeronáutica não aderiram, o que revoltou os golpistas, apenas fortalece a descrição exata da tentativa de golpe. Este é o crime. Se toda a tropa tivesse aprovado, possivelmente teríamos tido o golpe. Se bem sucedido, não haveria o crime de tentativa e estaríamos todos vivendo uma Ditadura militar.
E o Bolsonaro, sem nenhuma chance de questionamento, era o chefe da intentada golpista. Mexeu no decreto, articulou, tentou convencer os chefes militares e dedicou-se a desmoralizar as instituições, especialmente o STF. Enfim, dentro das suas evidentes deficiências intelectuais, fez o que pôde e conseguiu fazer. Felizmente, resistimos e, agora, temos o direito e a obrigação de acompanharmos o julgamento. O Supremo Tribunal está e estará sob ataques. É hora de estarmos, outra vez, ao lado da Constituição e da Democracia.
“Às vezes o silêncio é mentir. Mas não convencerá. Pois para convencer precisará do que lhe falta: a razão e o direito em sua luta.”
Unamuno, na resposta ao general franquista Millán Astray que, na Universidade de Salamanca, gritou: “!Viva la muerte!”
A presente abordagem não se reveste da pretensão de cunho jurídico e técnico. Trata-se de uma experiência sobre o assunto, quando éramos pároco e chanceler do bispado, em Caicó (RN). Laudêmio e foro datam dos tempos coloniais, remontando às capitanias hereditárias, quando a Coroa Portuguesa outorgava aos donatários direitos sobre determinadas porções de seu domínio no Brasil. Consistia num repasse de glebas a pessoas físicas e entidades. Esse costume foi sendo seguido, disseminado e adaptado. Assim, no passado, em decorrência de promessas aos santos, tornou-se usual entre os católicos, como símbolo de gratidão, doar terras à Igreja (nela incluindo-se irmandades, congregações e associações religiosas, padroeiros, paróquias etc.). Era muito comum casas residenciais e comerciais edificadas sobre os terrenos “do santo ou da santa”. Muitas terras doadas aos santos padroeiros, antes da expansão das cidades, estão situadas hoje em zonas urbanas.
Infelizmente, muitos bens vinculados à Igreja, têm sido dilapidados, alienados levianamente e espoliados, por incúria de gestores. É uma afronta a seus doadores, à história e à memória daqueles que de boa-fé fizeram os legados, por vezes gravando cláusulas de inalienabilidade. Seguiram o preceito bíblico: “Ninguém comparecerá diante do Senhor, de mãos vazias. Cada um trará uma oferta, conforme as bênçãos que o Senhor houver concedido” (Dt 16, 17). Convém lembrar que parcela considerável do patrimônio dos bispados de Caicó e Natal tem sido preservada, graças ao zelo e dedicação de Dr. Vital Bezerra de Oliveira.
Além dos terrenos da Igreja, sobre os quais incidem laudêmio e foro, há também os da família imperial brasileira e os que pertencem à Marinha (União). Estes últimos estão localizados na zona litorânea, inclusive nas ilhas. Em 1831, tal faixa de terra foi delimitada a trinta e três metros da maré mais alta, em relação à linha de preamar. A União possui mais de trinta por cento dessas terras, sendo o restante dos demais proprietários.
A Igreja, considerando as suas necessidades e as dos cidadãos, foi disponibilizando parte de seu domínio para o usufruto de terceiros, sem a perda da propriedade. Disto, origina-se o laudêmio: uma taxa pecuniária compensatória paga ao legítimo dono, quando da transmissão do terreno, havendo ou não edificações. Consiste numa pequena parcela participativa no lucro auferido, proporcionado também pelo uso do terreno. Há ainda a contribuição anual pela ocupação do solo, denominada foro, isto é, uma compensação monetária pela utilização de um espaço pertencente à Igreja ou a outros proprietários.
Laudêmio é uma taxa devida pelo beneficiário do domínio útil ao seu legítimo proprietário. Não é um tributo, mas contraprestação financeira. A cobrança é legal e legitima. Há assentada jurídica para a base dos cálculos, incidindo sobre o valor venal do terreno, onde eventualmente são edificados prédios. Caso a transmissão se dê por herança, o valor não é cobrado. Aos foreiros pertencem as construções e benfeitorias, não os terrenos sobre os quais se edificam, sendo eles patrimônio da União, Igreja, família imperial brasileira etc. Eis a origem das taxas, obedecendo à tradição do ordenamento jurídico brasileiro. Cabe informar que há amparo legal para a sua cobrança, previsto pelo Código Civil Brasileiro (atualizado pela Lei nº 10.406/2002), no Artigo 2038. Hoje, o laudêmio dos terrenos da Marinha (União) é regido pela Lei 14.011/2020. Entretanto, tramitam no Senado Federal e na Câmara dos Deputados projetos de lei (por exemplo, o PL 1855/2024), propondo a extinção de cobrança do laudêmio e foro pela ocupação de terras da União (Marinha). Tais projetos não incluem terrenos pertencentes a outros proprietários. Há quem defenda estender para estes a isenção.
O direito dos legítimos donos deve ser respeitado. É uma questão de justiça e honestidade. As taxas recebidas visam a ajudar na manutenção das obras da Igreja com sua visão amplamente social, assistencial e educativa. Para os cristãos, do ponto de vista teológico-canônico, a obrigatoriedade das taxas laudemiais e foreiras inclui-se no dever religioso do dízimo. Para tanto, recomenda o apóstolo Paulo: “Que cada um dê sem pesar nem constrangimento, pois Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9, 7).