Os livros franceses

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL  

Todo livro tem uma história por detrás da sua concepção e parto. Acredito que as histórias de “Essais français: droit et philosophie en édition bilingue français/portugais” (“Ensaios franceses: direito e filosofia em edição bilíngue francês/português”) e “Littératures françaises: récits sur les livres et les écrivains en édition bilingue français/portugais” (“Literaturas francesas: crônicas sobre livros e escritores em edição bilíngue francês/português”), livros siameses, que agora jubilosamente entrego aos leitores, merecem ser contadas.

Alguns acontecimentos foram decisivos para as suas existências.

Espiritualmente, “Essais français” e “Littératures françaises” são o fruto tardio da minha estada, em 2006, na capital da França. Então, com “Paris é uma festa” na cabeça, eu para lá parti. No Brasil, havia deixado coisas inacabadas, que perturbavam a minha paz. A ideia era passar alguns meses longe delas. Tomei quarto num pequeno hotel na Rue Madame, em Saint-Germain-des-Prés. E matriculei-me na Alliance Française de Paris, nas abas do bairro de Montparnasse, pertinho de onde eu estava morando. Foi uma das mais acertadas decisões que já tomei. A Aliança de Paris, mais do que uma escola, é um espaço cultural fantástico. Aqueles meses sabáticos e alegres foram uma catarse. Se aprendesse uma palavra, estava ótimo. Escrevi quase nada, é vero. Mas bebi muito. Café, vinho e outras coisas mais, embora não quisesse fazer parte de geração perdida alguma. Coisas inusitadas aconteceram. E há uma frase mais que famosa de Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”.

Essais français” e “Littératures françaises” são ainda efeitos colaterais – positivos, bien sûr – da pandemia do Covid-19. Uma limonada que busquei fazer de um trágico limão. Naqueles meses de isolamento, estive refazendo o curso da Aliança Francesa, vinculado à sua sede de Natal/RN (cujo presidente do conselho de administração, Eduardo Gurgel Cunha, assina o prefácio de “Essais français”). Comecei a escrever em francês para a Aliança, como era demandado no final do curso, e em português, sobre a mesma temática, para as minhas colaborações na Tribuna do Norte e no Diario de Pernambuco (vocês identificarão algumas nos livros). Constatando a existência de um bom material bilíngue, decidi traduzir todas as minhas crônicas, sobre as “coisas” da França, do português para o francês. Deu uma trabalheira dos diabos. Mas, aparentemente, deu certo. Assim me disseram. Eu acreditei. E decidi fazer a coisa avançar e crescer em forma de livros.

É por esse momento que surge o meu contato com a Aliança Francesa do Recife, por intermédio de amigos Procuradores da República, também amantes da língua de Molière, com quem trabalho na capital de Pernambuco. Fui muitíssimo bem atendido, tanto por Maria de Lourdes de Azevedo Barbosa (presidente do conselho de administração e autora do prefácio de “Littératures françaises) e Stéphane Garin (diretor executivo). Associei-me à Aliança do Recife. Eles me colocaram em contato com Heloísa Arcoverde de Morais, que “assina” a revisão da tradução. Com esse apoio, o material estava, digamos, quase “pronto”.

Os conteúdos de “Essais français” e “Littératures françaises” representam minha curiosidade transdisciplinar sobre o direito, a política, a filosofia, a arte e a literatura da França e da francofonia. Coisa de francófilo atrevido. E as traduções? Maior atrevimento ainda.

Mas sobre o conteúdo e, especialmente, sobre a forma/tradução dos livros, eu tratarei na semana que vem.

Deixem-me agora convidar todos vocês para os lançamentos: em Natal/RN, no dia 24 de junho de 2024, às 18 horas, na Aliança Francesa, sita na Rua Potengi, nº 459, bairro de Petrópolis; em Recife, no dia 25 de julho de 2024, às 19 horas, na respectiva Aliança Francesa, sita na Rua Amaro Bezerra, nº 466, bairro do Derby.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Deixem Deus de fora

Feto de plástico foi utilizado em sessão sobre aborto no Senado Federal
Geraldo Magela/Senado Federal Feto de plástico foi utilizado em sessão sobre aborto no Senado Federal

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Quem começa uma conversa sobre aborto perguntando: “você é favorável ou contrário ao aborto?”  está com má-fé e se nega a ter uma reflexão séria sobre uma questão tão delicada. Obviamente, ninguém é favorável. Não se imagina uma mulher dizendo com naturalidade: “vou ali fazer um aborto e volto para almoçar”. A questão é defender o direito ao  aborto com toda a segurança proporcionada, obrigatoriamente, pelo Estado. No Brasil, só existem 3 hipóteses previstas na lei: estupro, risco à vida da mulher e feto anencéfalo.

A realidade crua e dura é constatar milhares de mulheres fazendo aborto em condições precárias, sem a assistência do Estado e com altíssimo número de mortes e mutilações. Salvo as que possuem poder econômico e se submetem ao procedimento em clínicas e hospitais particulares.

O tema mobiliza a classe política, que se acostumou a ser falsa em vários assuntos que são fundamentais para a sociedade. Na reta final do segundo turno entre Dilma e Serra, duas pessoas extremamente qualificadas, sérias, com formação humanista e compromissados com a agenda humanitária, não por acaso ambos de esquerda, por uma opção política de não contrariar os religiosos e os conservadores, nenhum deles colocou esse assunto tão delicado na pauta da campanha. Lembro-me que, decepcionado, escrevi na Folha de São Paulo, em 15 de outubro de 2010, o artigo “Eu fiz 3 abortos”. À época, ocorriam 1,1 milhão de abortos clandestinos anualmente e, a cada 2 dias, uma mulher morria. Naquele ano, passaram pela rede pública 184 mil mulheres para fazerem curetagem. E o dado era que 1, em cada 5 mulheres até 40 anos, já tinham interrompido a gravidez. Há mais de 14 anos, mais de 5 milhões de mulheres tinham passado por esse trauma.

Não escrevi com nenhuma alegria ou prazer, mas me senti na obrigação de me posicionar. Entendo que essa é a questão que passa sobre o direito de a mulher decidir sobre o corpo dela, mas é também um assunto em que o homem tem que se manifestar. Dentre outros pontos, é preciso ressaltar que o aborto é uma questão de saúde pública.

Boa parte desses que se posiciona, até de maneira agressiva, a favor de projetos repressivos na discussão sobre aborto, são hipócritas quando uma gravidez indesejada acontece. Vários recorrem a hospitais e médicos particulares para fazer o que querem criminalizar em nome de uma fé que nada tem de semelhança com Deus.

Impressionantes os números quando se fala sobre o aborto legal em caso de estupro. De cada 10 abortos, 6 são de crianças até 13 anos. Majoritariamente, negras e pobres. Meninas. Crianças. Na sua maioria, abusadas e estupradas por alguém da família. Alguém próximo. Em boa parte dos casos, a criança nem se dá conta da gestação. Só descobre depois das 22 semanas previstas no projeto do estupro. E querem criminalizar a opção de não ter um filho fruto de um estupro com pena maior do que a do estuprador. Um acinte. Um escândalo.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, foram feitos 2.687 abortos legais no ano passado. Desses, 600 foram realizados após a 22ª semana de gestação. As dificuldades das crianças são dantescas. Além do trauma de serem violentadas por pessoas que deveriam cuidar delas, 70% dos estupros ocorrem dentro de casa. Muitas vezes a criança sequer percebe que está grávida. Não conhece direito seu corpo, tem medo, tem vergonha e não tem com quem se consultar ou dialogar. Mesmo depois que se descobre a gravidez indesejada, fruto de um estupro criminoso e covarde, são inúmeras as dificuldades de providenciar a interrupção da gestação, que é um direto das mulheres nesse caso. Somente 2% dos municípios brasileiros oferecem uma unidade de saúde com condições técnicas de realizar o aborto legal.

A cena dantesca promovida por um senador da República, no Plenário do Senado Federal, ao levar uma mulher para interpretar um feto, envergou a todos e causou revolta. A tentativa de apoiar o  Projeto 1904/24 proporcionou uma cena teratológica e repulsiva. Infelizmente, perderam o senso do decoro e do ridículo. Com essa omissão por parte do Estado e com a política de criminalizar a mulher e a criança que é estuprada, é importante que compreendamos que esses irresponsáveis são cúmplices dos horrores que defendem em nome de Deus.

Lembrando-nos de Hilda Hilst, no Poema aos homens do nosso tempo:

“Sobre o vosso jazigo
-Homem político-
Nem compaixão, nem flores.
Apenas o escuro grito
Dos homens.

Sobre os vossos filhos
-Homem político-
A desventura
Do vosso nome.

E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre nossas vidas
– Homem político-
Inexoravelmente, nossa morte.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Fonte: www.ultimosegundo.ig.com.br

Feminismo. Linguagem neutra

Padre João Medeiros Filho

Segundo estudiosos, o ex-presidente José Sarney deu sua parcela de contribuição para o desenvolvimento do feminismo no Brasil. Inovou no programa radiofônico “Conversa ao pé do rádio” com a saudação “brasileiros e brasileiras”. Os termos divergem do padrão oficial, em que o plural masculino é a forma literária consagrada. Nem os discursos populistas de Getúlio Vargas afastaram-se da regra clássica. Aquele dignitário dirigia-se aos ouvintes com estas palavras: “Trabalhadores do Brasil”. Sarney incluiu o feminino plural, optando pela separação. Distancia-se da norma culta do idioma pátrio, pela qual o plural masculino engloba as variantes. Até a liturgia foi atingida pelo redundante emprego de termos femininos, dispensáveis semântica e estilisticamente. Acrescentaram à tradução vernacular do “Orate frates” (Orai, irmãos) o substantivo “irmãs”. Tangidos pelos ventos do modismo e outras influências, pregadores começaram a saudar os fiéis desta forma: “Caríssimos irmãos e irmãs” ou vocativos equivalentes, inclusive em documentos. Oradores sacros de outrora primavam pelo conteúdo bíblico-teológico e forma literária. Os sermões de Padre Vieira, Frei Mont’Alverne e posteriormente Dom José Pereira Alves, Cônego Luiz e Dom Nivaldo Monte, Dom Mário Villas Boas, Dom João Portocarrero Costa etc. são ricos em sabedoria.

Decisões favoráveis ou contrárias à linguagem neutra dão azo a polêmicas, inclusive nos meios acadêmicos e literários. O recente pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, em 10/06/24, na ação movida contra os municípios de Águas Lindas (GO) e Ibirité (MG), reproduz fundamentalmente a sentença prolatada na ADIN 7019, aos 10/02/23, declarando a inconstitucionalidade da Lei 5123/2021, oriunda do Estado de Rondônia. Questionava-se a proibição do uso da linguagem neutra em instituições escolares, vinculadas ao sistema estadual de educação. Consideram-se equivocamente língua e linguagem como realidades idênticas. Entretanto, duas novidades são verificadas no último julgamento. Um dos ministros afirma que “a linguagem neutra destoa das normas do português.” No voto, o relator alude à “competência da União para estabelecer currículos escolares.” Convém lembrar determinados dados históricos, linguísticos e jurídicos, inerentes ao tema.

A linguagem neutra rejeita o que pode remeter ao masculino ou feminino. “Adapta o português ao uso de expressões em que pessoas não binárias são representadas.” Terminações e artigos masculinos e femininos são grafados na maioria dos casos com “x”, “e” ou “@”. Tal grafia ignora a origem, história e formação das palavras na língua portuguesa. O neutro do Latim foi convertido no idioma luso-brasileiro pelo masculino. Desconsidera-se um dado relevante: o vigente Acordo Ortográfico adotado pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa, ao qual o Brasil – após ouvir o Parlamento Nacional – se obriga a respeitá-lo, como signatário. Consiste num tratado internacional, assinado pelas dez nações que adotam oficialmente a lusofonia.

Para psicopedagogos, a linguagem neutra poderá acarretar dificuldades de aprendizagem aos portadores de dislexia e deficiência auditiva. Os defensores da linguagem neutra aludem à necessidade de mostrar nas palavras a inclusão dos diferentes. Vocábulos ou leis nem sempre realizam efetivamente a inclusão de pessoas. Importa a formação das personalidades. No Brasil, apesar da pletora de instrumentos legais, persistem exclusão e desigualdades. A norma é bem-vinda, quando consagra a consciência sociocultural autêntica. “A letra é morta. É o espírito que vivifica” (2Cor 1, 3). O evangelista João adverte: “Evitar o que pode causar divisão” (Jo 10, 19).

As decisões do STF consideram a proibição da linguagem neutra uma violação da liberdade de expressão. Reiteraram que é privativo da União legislar sobre modificações no uso do idioma e currículos acadêmicos. Para maior clareza, os textos decisórios poderiam ter deixado explícito o inverso, bem como conceituado os termos língua e linguagem. Se não é permitido proibir – em nome da liberdade de expressão – o uso da linguagem neutra, tampouco, pela mesma regra, se poderá impor o emprego dessa linguagem nas instituições de ensino. Daí, surge a questão: se os entes públicos municipais e estaduais são incompetentes para legislar sobre conteúdos curriculares e idioma nacional, grupos poderão fazê-lo? Percebe-se coercibilidade em certos movimentos. É cristalino o princípio constitucional da legalidade: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (CF. Art. 5º, Inciso II). Ensina-nos o apóstolo Paulo: “Estejais todos de acordo com o que falam e não haja discórdia entre vós por causa de palavras” (1Cor 1, 10).

Padre João Medeiros Filho

FAMÍLIA LOBÃO: O SILÊNCIO PARA OS INOCENTES


“De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça, de
tanto ver agigantarem-se os
poderes nas mãos dos maus, o
homem chega a desanimar da
virtude, a rir-se da honra, a ter
vergonha de ser honesto.”

Rui Barbosa

O martírio e o calvário da família Lobão começaram com uma delação fajuta de um então diretor da Petrobras. No auge da Operação Lava Jato, com todas as arbitrariedades ocorrendo sob o aplauso da grande mídia, coordenada pelo grupelho de Curitiba, um Senador por três mandatos consecutivos – ex-deputado federal por três mandatos, ex-governador, ex-ministro – era um alvo a ser servido no banquete de horrores e uma importante estratégia no plano de poder de Sérgio Moro e seus procuradores adestrados.

Quando li os pedidos de busca e apreensão percebi, de plano, as enormes mentiras do delator. À época – uma quadra de terror – bastava a palavra de um miserável delator, em regra covarde, para que a força tarefa deflagrasse pedidos de busca e apreensão e prisões. Naquela delação, o diretor apontava certo pagamento para Roseana Sarney e Edson Lobão. Entretanto, dizia que, quem teria entregado o dinheiro, teria sido o Alberto Youssef. Eu era advogado da Senadora e do Senador. Tinha sido advogado do Alberto Youssef. Conhecia a negativa dele. A contradição era grave e a delação do diretor, obviamente, imprestável. Mas eram tempos de heróis e de verdades encomendadas, num jogo de vale tudo pelo poder.

Passei a contradição para uma jornalista que, diligentemente, a publicou. Com o escancaramento da farsa, usei a matéria jornalística para pedir uma acareação entre os delatores. Algo inimaginável, pois a presunção deveria ser de um depoimento espontâneo e verdadeiro. Com a acareação, não houve outra saída senão arquivar os inquéritos em relação a Roseana e Lobão. Mas a turma da República de Curitiba, com seus tentáculos cariocas, estava com sangue na boca. Não iria aceitar a verdade. Era preciso criar novos fatos.

A partir daí, foi uma longa noite para toda a família. Com o intuito de tentar forçar uma delação, os lavajatistas viraram o foco para o filho do Senador. O empresário bem sucedido e reconhecido no mercado virou uma peça no jogo insano e sujo do poder. Depois de uma prisão, 8 mandados de busca e apreensão cumpridos, exposição midiática implacável, descobriram os heróis da Lava Jato que não haveria delação, pois nada havia para ser delatado. Até mesmo a aliança de casamento foi apreendida e jamais devolvida. As buscas se davam com metralhadoras e os filhos menores eram ameaçados com a presença ostensiva dos policiais. Por erro imperdoável, houve uma busca até na casa do sogro do Marcio Lobão, um reconhecido advogado criminal. Com
consequências trágicas que remetem à tragédia do reitor Cancellier. Uma verdadeira tragédia de horrores.

Aos poucos, nós, advogados, fomos ganhando todas as ações e, fazendo a prova negativa, comprovando a inocência dos dois.
Porém, existem questões que são incontornáveis. Até hoje, Márcio não consegue emprego. Com os bens indisponíveis durante todos esses anos, viu-se, ainda, com uma condenação acessória: foi proibido de ter conta bancária. Uma norma ilegal, imoral e inconstitucional dos compliances dos bancos fecha a porta para os investigados e expostos pela mídia. Às favas com a presunção de inocência. O investigado que se vire.

E as crueldades são infinitas. Durante as buscas e a prisão, ocorreu uma verdadeira espetacularização e uma super exposição midiática. Fazia parte da estratégia de poder lavajatista. Todas as grandes mídias usaram a força da imprensa para humilhar, prejulgar e ridicularizar a família. Agora, com a esperada, mas demorada, comprovação da inocência do Senador Lobão e de seu filho Márcio Lobão, há um silêncio cúmplice e quase envergonhado da imprensa. Para os investigados, o prejulgamento e presunção de culpa. Para os inocentes, o silêncio.

Eles se esquecem de Cecília Meireles: “
Aprendi com a primavera a deixar-me cortar, e a voltar sempre inteira.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

O julgamento: Operação Lava Jato no banco dos réus

Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Agência Brasil – Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

Na última sexta-feira, dia 7 de junho, encerrou-se o julgamento virtual do caso que analisava, no  Conselho Nacional de Justiça, a abertura de um processo administrativo contra dois desembargadores federais e dois juízes da tristemente famosa República de Curitiba. Por 10 votos a 5, em decisão histórica, prevaleceu o posicionamento do corregedor, ministro Salomão, que determinava o prosseguimento do processo até o julgamento final do mérito. E contra o voto e o empenho do Presidente do Supremo Tribunal e do CNJ. Não é pouca coisa.

Importante termos a dimensão exata do que isso significa. O CNJ não estava analisando a conduta de 4 magistrados quaisquer. O que estavaem julgamento era a  Operação Lava Jato e tudo que ela representa.

O chefe do grupo, o ex-juiz Sérgio Moro, não estava sendo julgado porque desistiu da toga e foi buscar o abrigo da imunidade parlamentar. É hoje senador e não pode mais ser submetido ao órgão de classe. Da mesma maneira, o subchefe, o ex-procurador Deltan Dallagnol, quando submetido ao Conselho Nacional do Ministério Público, órgão competente, optou por também abandonar as hostes do Ministério Público, fugindo da punição, e refugiou-se na Câmara dos Deputados. Foi abatido em plena rota de fuga, tendo seu mandato de deputado federal cassado.

Devemos levar em consideração que foi esse grupo que, por um projeto de poder, instrumentalizou o Judiciário e o Ministério Público Federal, com o apoio da grande mídia e de grupos estrangeiros, e prendeu, ilegal e inconstitucionalmente, o Presidente Lula para propiciar a vitória do fascista Bolsonaro. Sentiam-se tão poderosos que o líder deles, um juiz federal, deu ordens à Polícia Federal para descumprir a decisão de um desembargador que determinava a liberdade do Lula. Com rara ousadia, e sob o silêncio cúmplice de desembargadores do Tribunal Regional da 4ª Região, o bando arrotava o poder que tinha e desdenhava dos ritos democráticos. É o espelho do que dizia Lord Acton: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Mas o melhor e mais grave ainda está por vir. A instauração do PAD, por si só, já é de extrema importância. Mesmo com as prováveis penalidades sendo brandas, o simbolismo desse caso transcende, em muito, as possíveis penas. Embora qualquer punição seja de imensa gravidade, todas as atenções agora devem estar postas na investigação da Polícia Federal. Tão logo foi finalizado o julgamento no CNJ, o relatório sobre o que ocorreu na 13ª Vara Federal de Curitiba e no TRF-4, área de domínio do grupo do Sérgio Moro, foi encaminhado à Polícia Federal.

O relatório é avassalador. Técnico. Minucioso. Cuidadoso. Corajoso por enfrentar um grupo poderoso do próprio Judiciário. Mas não se furta de apontar possíveis crimes de corrupção, prevaricação, peculato e organização criminosa. E declina os nomes dos suspeitos: Sérgio Moro, Deltan Dallagnol, Gabriela Hardt e outros membros da força-tarefa de Curitiba. É uma notitia criminis que será esquadrinhada pela hoje competente Polícia Federal até ser submetida ao crivo do procurador-geral da República. É o resgate da dignidade do Judiciário.

Ainda há muito a ser feito. A inspeção levada a efeito pelo competente, corajoso e sério corregedor do CNJ, ministro Salomão, indica os caminhos para um inevitável processo crime. Mas a investigação que está no gabinete do ministro do Supremo Dias Toffoli, ao que tudo indica, encontra resistência no que ainda resta do grupo da 13ª Vara Federal de Curitiba. Há notícias de que a cooperação desse grupo com o gabinete, necessária e obrigatória, está muito aquém do esperado. Exatamente por isso, o Tribunal Regional da 4ª Região, sob a batuta do senador Moro, afastou, sumariamente, o independente magistrado Eduardo Appio, então titular da vara e que começava a abrir as gavetas daquele porão imundo, deixando sair os esqueletos que tiram a paz dos que sabem o que fizeram nos verões passados.

É hora de acompanhar o trabalho de aprofundamento da investigação da Polícia Federal, em relação ao relatório do CNJ, de voltar os olhos para o gabinete do ministro Toffoli – um ministro que já demonstrou sua competência e coragem no enfrentamento dos excessos da Operação Lava Jato, sem se preocupar com a parte da mídia viúva da operação, inclusive com a determinação de retorno, por um imperativo de Justiça, do juiz Appio àquela Vara. O Judiciário merece e os jurisdicionados agradecem. O Brasil também.

Lembrando-nos de Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

É hora de reconstruir o Brasil

 

Padre João Medeiros Filho

A reconstrução pessoal ou social é inerente à história humana. O Brasil, em diferentes momentos, viveu etapas reconstrutivas. Atualmente, há interpelação da consciência cidadã e cristã sobre a necessidade de ressignificar a Pátria. A pandemia marcou a urgência de se repensar os serviços públicos. Muitos não querem admitir que o tempo pandêmico abalou vários setores da sociedade, notadamente a saúde e a educação. No mínimo, comprovou-se a sua precariedade ou ineficiência crônica. “Saúde e educação de um povo não se improvisam”, afirmou Dr. Marcolino Candau, primeiro brasileiro a dirigir a Organização Mundial da Saúde.  Os problemas socioeconômicos, políticos, educacionais, a carência de segurança alimentar para tantos, gerando desigualdade social, clamam pela reconstrução do País. Enquanto isso, o tempo precioso é ocupado com diatribes ideológicas, inócuas e deletérias, tornando o radicalismo além de agudo, crônico. Tem razão o salmista: “Se o Senhor não construir a casa, debalde trabalham os que a edificam” (Sl 127/126, 1).

Análises científicas vêm mostrando, em muitos aspectos da conjuntura sociopolítica, um processo de deterioração do tecido social. Considerações técnicas explicitam desmontes que atingem a estrutura da sociedade, cujos alicerces foram abalados: improbidades, privilégios, mentira social, demagogia, narrativas, ensaios ideológicos despropositados, descaso educacional etc. Tudo isso requer lucidez e serenidade dos cidadãos. Um velho líder potiguar comparou nossa política a “uma moça despudorada, apresentada por membros da família como uma jovem honrada e virtuosa.” Há unanimidade sobre a necessidade de intervenções urgentes para evitar que se constitua, entre nós, a verdadeira “abominação da desolação” (Dn 19, 27). Essa foi a expressão bíblica que definiu o caos reinante no povo prevaricador do Antigo Testamento. A história da Terra de Santa Cruz, não obstante percalços e vicissitudes, carece de apreço. O País detém um relevante potencial humanístico e material para se reerguer. Não pode estar em mãos equivocadas nem ser refém de inescrupulosos e oportunistas, cujo objetivo é seu projeto de poder e não de uma nação humana e justa. Não se deve apostar no “déjà vu”.

Preocupa sobremaneira o diagnóstico de nossas feridas políticas. Nossa Terra vive a carência de uma visão moderna de gestão, capaz de oferecer respostas rápidas, adequadas e atualizadas. Há de se corrigir degradações gravíssimas na educação, infraestrutura, segurança e saúde, no sistema eleitoral, na política ambiental e administração pública. É imprescindível um novo movimento civilizatório. Muitas coisas precisam ser pautadas urgentemente para retirar o País dos atrasos e marasmo. É característico no Brasil viver intensa e antecipadamente os períodos eleitorais. Nem bem acabam as eleições federais e estaduais, já se entabulam os conchavos para os pleitos municipais, ou vice-versa. Respiram-se campanhas eleitorais o tempo todo. O pior é o clima contaminado por vícios interesseiros, os quais reduzem a discussão política a nomes e pessoas, que traduzem esquemas obsoletos e perpetuadores de privilégios e erros. O que se espera dos líderes e dignitários não é uma briga medíocre e improdutiva, mas uma ampla pauta de diálogo civilizatório, incluindo especial atenção ao linguajar corrente, uso ético e produtivo das tecnologias contemporâneas.

Infelizmente, o Brasil vai se tornando um solo de narrativas em todos os segmentos e matizes ideológicos. Sepultam-se a verdade, o realismo e a honestidade intelectual. Há cada vez mais falácias, relatos desonestos e desconexos, impedindo avanços e agravando a polarização. Convive-se com falas fora dos trilhos, incompatíveis com os cargos ocupados, comprometendo a seriedade dos poderes e instituições. Não raro, discursos e pronunciamentos geram desentendimentos, acarretando intransigências, reforçando radicalizações, alimentando medos, minando a paz social. Na tarefa de reconstruir a Nação, mister se faz investir em palavras que iluminem e apaziguem pela verdade que transmitem. É preciso respeitar autoridades e direitos, salvaguardar a Pátria com políticas sensatas, varrer os cenários da vergonhosa desigualdade social, garantir a vigência de valores e princípios inegociáveis. Assim é possível reconstruir verdadeiramente nosso torrão natal. Nisto consiste a recomendação bíblica, interpretada apenas do ponto de vista demográfico: “Crescei e multiplicai-vos” (Gn 9, 7). Crescer em dignidade e grandeza humana. Multiplicar o bem-estar social dos filhos de Deus! “Feliz é a nação, cujo Deus é o Senhor” (Sl 33/32, 12).

À cata do vento

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Na região londrina de South Kensington – bairro chique, por sinal –, precisamente no encontro da Cromwell Road com a Exhibition Road, ficam alguns dos melhores museus da capital do Reino Unido: o Victoria and Albert Museum (o maior e melhor museu de artes decorativas do Mundo, posso afirmar), o Natural History Museum e o Science Museum.

Na nossa estada em Londres para o feriado de Páscoa, decidimos levar o pequeno João, em dias encarrilhados, para conhecer dois desses museus, o de História Natural e o de Ciências. Tenho certeza de que, por mais maravilhoso que seja o Victoria and Albert Museum, João, com os seus cinco anos ainda incompletos, não está muito interessado em arte decorativa.

O Natural History Museum, começando pelo belíssimo prédio, é fantástico. É programa para toda a família, com seus dinossauros gigantes, suas baleias e outros grandes mamíferos, seus vulcões e meteoros e uma infinidade de coisas mais. Algumas atrações são “de verdade”; outras, claro, como um insólito terremoto, simulações. Tudo é muito explicadinho. Instrutivo mesmo. A pegada do Science Museum é a mesma, apenas direcionado para a ciência do homem. Invenções de todo tipo, casa, carros, navios, aviões e computadores, viagens espaciais, energias sustentáveis, conquistas da matemática e da medicina, laboratórios ilustrativos e muito mais, tudo junto mas não misturado. Muito interativo para as crianças. A visitação a ambos é gratuita. Maravilha!

Aproveitamos bastante – João, em especial – os passeios. Chegar aos museus é facílimo. A estação do tube de South Kensington é bem pertinho das atrações. Curtimos toda a tarde do nosso primeiro dia em Londres no Museu de História Natural. Já na manhã do segundo dia, que passamos no Museu de Ciências, nos livramos, agradavelmente abrigados e distraídos, de uma daquelas inconvenientes chuvas londrinas. Saímos quando o céu deu uma trégua. A rua ao derredor da estação de metrô é simpaticíssima. Cheia de pequenos restaurantes. Comemos uma massa. João devorou suas batatas fritas. Eu ainda achei uma pequena mas charmosa livraria, a South Kensington Books, onde comprei um livro de divulgação científica (gênero literário que adoro), “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (Ivy Press, 2019), de Brian Clegg. Deu tudo certíssimo.     

Mas o meu objetivo hoje não é bem elogiar – ou não é só esse – as visitas aos museus londrinos. Quero aqui muito mais “protestar” em prol de um museu brasileiro, sito em São Paulo capital, que, asseguro, pouco deixa a desejar aos congêneres estrangeiros: o Museu Catavento, inaugurado em 2009, também dedicado às ciências e à sua divulgação.

A excelência do Museu Catavento começa pelo seu prédio, o outrora Palácio das Indústrias, depois sede da prefeitura, que é belíssimo. Lá uma exposição conta a história da edificação. Mas o seu acervo também é maravilhoso. Gigante. Tem de tudo: planetas e estrelas, vulcões e terremotos, aviões e submarinos, ciência, educação e interatividade. É um espaço do poder público, administrado – e muitíssimo bem cuidado – pelo estado de São Paulo. E a entrada é gratuita. Viva!

Entretanto, talvez pelo nosso alegado “complexo de vira-lata”, é comum enaltecermos –  e visitarmos, se nos dada a oportunidade – apenas os museus estrangeiros. O que é nosso é desmerecido e até mesmo desconhecido. Eu mesmo, tendo morado/estudado em São Paulo, até outro dia sequer tinha ouvido falar do Museu Catavento. Só ficamos sabendo da sua existência por intermédio de um amigo de Natal que havia acabado de levar o filho lá.

De toda sorte, o pequeno João nos deu mais uma lição. Na sua inocência, acho que ele gostou muito mais do museu paulistano do que dos congêneres londrinos. Lembro-me dele pulando da Terra para o Sol, metendo a mão nos meteoros e de cabelos em pé na sua experiência com a eletricidade. Talvez porque intuitivamente entendendo o português ali escrito e falado, ele estava mais feliz – aliás, curioso e excitado talvez sejam termos mais justos. No nosso museu, ele correu solto à cata do vento e das suas muitas histórias. 

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL