O gosto

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O “gosto” é algo complicado. “Tem gosto pra tudo”, afirma o ditado popular; “(…), cada um tem o seu”, encerra um dito ainda mais enfático e escrachado. Essa sabença geral é confirmada pelos especialistas em estética. Virgil C. Aldrich, no seu “Filosofia da arte” (Zahar Editores, 1976), lembra que, “ao falar sobre obras de arte [e, aqui, eu incluo realizações da literatura, da música, das artes plásticas, da arquitetura e por aí vai], as pessoas frequentemente dizem que gostam mais de uma do que de outra ou, então, que simplesmente não podem suportá-las”. E Jean Lacoste chega mesmo a ter, como um dos tópicos do seu livro “A filosofia da arte” (Jorge Zahar Editor, 1986), “o gosto como problema”. Acho que é por aí mesmo – e quem sou eu para contestar o povo e os doutos?

De toda sorte, sempre me pareceu que podemos enxergar certos consensos sobre algumas coisas. O convencionalismo é uma grande arma para enfrentarmos a inconsistência do gosto e apontarmos o que é “belo”. Um desses consensos é a cidade de Paris, no caso sua arquitetura/ambiência, de modo geral glamorosa. Eu acho Paris bela. Você provavelmente também acha. E algo entre meio mundo e mundo e meio concorda conosco.

Paris, ouso dizer, é belíssima. A Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Avenida dos Campos Elísios, a Ópera, os Inválidos, o Museu do Louvre, o rio Sena, a Catedral de Notre Dame, o Jardim de Luxemburgo, os grandes bulevares, as ruelas do Marais, de Saint-Germain-des-Près e do Quartier Latin, a boemia de Montmartre e a Sacré-Cœur, os muitíssimos cafés da cidade… etc. etc. etc. Até a cor de Paris encanta: de dia, nos seus prédios, um tom bege que a tudo predomina; à noite, uma Cidade Luz, iluminada e iluminista. Paris é excitante como sentenciou Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”. E Paris é, e talvez sobretudo, romântica.

Foi por causa da reconhecida beleza romântica de Paris que ficamos preocupados com o causo de um primo muitíssimo querido. Há alguns anos ele foi para Paris em lua de mel. Viagem dos sonhos de qualquer casal. Passear de mãos dadas à beira do Sena, tomar um vinho nacional, namorar à luz de velas e de Paris, isso é muitíssimo mais do que muito para qualquer par de amantes. Imaginem para os recém-casados. Mas a mulher do meu primo não gostou de Paris, “definitivamente”, nos disse. Detestou talvez seja um qualificativo forte. Mas foi algo próximo daí. Separaram-se pouco tempo depois. Ficamos sem entender. E aqui me refiro ao “desgosto” de Paris.

Entretanto, outro dia, para além das complexas lições dadas pela filosofia sobre o problema do “gosto”, encontrei uma explicação até plausível – assim pelo menos eu quero crer – para os padecimentos parisienses do meu querido primo.

Há algumas semanas, quando voltamos da França em viagem familiar, meu pai perguntou ao nosso pequeno João o que ele tinha mais gostado de Paris. Eu estava na hora e esperava que João dissesse a Torre Eiffel (vi a empolgação dele embaixo daquele colosso de ferro onde estivemos duas vezes) ou a Euro Disney (por motivos óbvios). Mas ele disse os “esgotos”. Isso mesmo: os esgotos de Paris, embora aqui devamos ler o “Museu dos Esgotos de Paris” (Musée des Égouts de Paris), que visitamos, por promessa minha e exigência dele, numa malcheirosa, mas divertidíssima, tarde ao derredor do Sena.

É isso. Eles – o outrora casal de primos – apenas não foram na Paris certa. Pelo menos é isso que eu agora gosto de crer. E gosto… Bom, cada um tem o seu.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Ultradireita: a humanidade ameaçada

Por Kakay 

“Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior…”. – Ulysses Guimarães Outro dia, em um dos vários grupos de que faço parte –sempre prometo sair de alguns e não consigo–, critiquei, lamentando, o recrudescimento do direito penal no Brasil com os projetos que tramitam no Congresso Nacional.

Constatava o que para mim era óbvio: com o fortalecimento da ultradireita, no país e no mundo, viveremos uma realidade na qual os direitos humanos e as garantias individuais serão objeto de escárnio pela maioria. E, em uma democracia como a que vivemos, essa tal maioria banca o jogo e dá as cartas.

Vejo, com grave preocupação, uma razoável parte da dita esquerda democrática sucumbindo às teses punitivistas para continuar no jogo com um olhar politiqueiro e sem nenhuma densidade ideológica ou humanista. Comentei que estava cada vez mais difícil advogar no direito criminal. Recebi uma resposta interessante de um companheiro. Ele defendia que, com o endurecimento do processo penal, os advogados terão mais e mais clientes, devido a essa onda de punir para dar exemplo de moralidade a uma sociedade ávida por conceitos que rasgam todos os princípios humanitários.

É sempre difícil fazer entender o embate entre barbárie e civilização. Não vejo o direito penal sob o prisma das oportunidades de trabalho para o criminalista, embora entenda quem assim o faz. Minha visão procura ser sempre sob a perspectiva dos que sofrem e sofrerão a mão pesada do Estado punitivo. É disso que trata a tensão permanente que permeia a política, cada vez mais dura, no enfrentamento da fúria punitiva que embala a direita mundial. Com essa onda política extremista, no Brasil e no mundo, nós estaremos progressivamente pregando no deserto.

A pauta de costumes e a necessidade de acabar com garantias no âmbito criminal vão ser a tônica destes tempos que se anunciam brutos. Uma das perplexidades que assola quem ainda quer pensar sobre a ótica das garantias individuais é a de como manter uma coerência humanista e competir com as teratologias desse crescente movimento ultradireitista. Hoje, a moda é posicionar-se abertamente, com a arrogância própria da ignorância, contra os direitos dos menos favorecidos, das minorias, dos negros, dos imigrantes e das mulheres.

Enfim, ser contra a humanidade estrito senso dá voto e prestígio. Ser contra a inclusão social passou a ser chique em boa parte não só da sociedade, mas dos representantes políticos que adoram arrotar que o crescimento do pensamento direitista é o que interessa, pois mantém os privilégios dessa casta. Sim, é disso que se trata. Essa gente resolveu assumir que é necessário mesmo aumentar o fosso para que não seja possível o acesso dos invisíveis a uma vida digna, com o pressuposto que o mundo não comporta tanta gente dividindo o mesmo espaço. Na verdade, sempre foi meio assim, mas me parece que, agora, há uma determinação de mostrar que é necessário excluir os que pensam que é possível defender direitos para todos. Nós, democratas, viramos leprosos nesse mundo que se anuncia. A resistência tem que ser contínua e deve passar, quero crer, por uma certa mudança nos nossos embates. A divergência com o pensamento bárbaro da extrema-direita, muitas vezes fascista, é uma consequência lógica do nosso jeito de estar no mundo. Mas penso que é necessária uma reflexão sobre os que, em tese, estão do mesmo lado da trincheira.

A postura de sempre ceder para sobreviver politicamente está, em muitos momentos, fortalecendo a barbárie. Há uma falta irritante de pensamento crítico. A opção pelo desprezo aos direitos humanos na área criminal –sim, é disso que se trata– parece ser uma batalha já ganha pelos que defendiam a tese de que nós somos defensores de bandidos e que bandido bom é bandido morto. Antes de enfrentar os nossos velhos e conhecidos opositores, faz-se necessário voltarmos para uma definição de postura dos que, teoricamente, terçam espadas conosco pelo bom combate. É preciso uma reflexão sobre como nos posicionarmos.
Se a ultradireita está crescendo assustadoramente e se assumindo com um orgulho desdenhoso, o nosso recuo não estará fazendo o jogo da barbárie? Sempre defendi que temos que estar do lado da civilização e não podemos adotar os métodos daqueles que combatemos –pois, senão, teremos perdido a batalha que interessa. É um pouco o que estamos vivendo neste momento dramático de Trump, Le Pen, Milei, Bolsonaro e que tais. Não devemos pensar em manutenção política, o que me parece estar em jogo é muito mais. É a sobrevivência civilizatória. É disso que se trata e cabe a cada um dar um passo à frente. Sempre nos lembrando de Ernest Hemingway:

“–Quem estará nas trincheiras ao teu lado? “–E isso importa? “–Mais do que a própria guerra”.

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Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se

 O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Foto reprodução – O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Meu genial Fernando Pessoa precisou, em certo momento da vida, fazer propaganda para ganhar a vida. A que fez para a Coca-Cola- absolutamente fantástica- poderia ser uma definição do  Presidente Lula  quando iniciou sua carreira política. O texto é simples: “Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se”. Era assim que a sociedade brasileira via o Lula, com um certo estranhamento. E era mesmo.

Lembro-me de ter ido pegar um autógrafo do seu livro, no começo da trajetória política, mas já se afirmando como um líder, e ele disse: “não vou autografar Kakay com K e Y, é muito norte-americano”. E mudou meu nome escrevendo Cacai. Pode ter soado estranho, mas, à época, já estava entranhando em todos os cantos. E virou essa lenda viva que mudou o país e fez o Brasil ser respeitado em todos os foros internacionais. O Fernando Henrique tem estatura, cultura, charme e reconhecimento. Eu o respeito. Gosto dele. Mas faltou povo no rumo da prosa psdebista. E povo é o que identifica a trajetória do Presidente Lula.

Nunca tive partido político e detestaria fazer política partidária, mas é preocupante a falta de um nome para ocupar o pós-Lula. O Presidente me disse, na festa de comemoração da diplomação, em dezembro de 2022, na minha casa, que ele não queria mais ter sido candidato e que só foi porque era o único capaz de dar um basta ao governo do fascista que tentava a reeleição. Ou seja, ele foi, docemente, constrangido a ser candidato de novo. Um constrangimento adorável que nos salvou do abismo. Tivesse uma outra gestão  Bolsonaro, o Brasil não conseguiria manter, minimamente, as estruturas democráticas. O bando bolsonarista saqueou o país. Inclusive, e principalmente, com uma determinação histérica de acabar com todos os princípios humanísticos.

O Lula, claramente, tem disposição, saúde, prestígio e o nosso apoio para ser candidato de novo em 2026. O país precisa disso. E vamos ganhar e nos distanciar mais do precipício. Porém, é necessário consolidar e fortalecer novas lideranças. Não pode ser algo gestado da cabeça do Presidente, que é gênio da raça, mas já não dialoga tanto e ouve muito menos. Quando estava no seu auge, tirou o nome da Dilma da cachola -uma mulher preparada, séria, competente e admirável -, mas a falta de políticaresultou em um impeachment covarde, ilegal e inconstitucional, pois não havia crime. Mas é um fato para a história.

Uma das bases estruturantes do crescimento da ultradireita no mundo, e no Brasil, não é diferente: afastar a política do cardápio democrático. O fortalecimento da extrema direita se dá, também, por uma política estruturada na mentira, no ódio e no desprezo pela política. Fazem política pregando desprezá-la. O discurso que consegue abduzir milhões de pessoas tem, em uma de suas fontes, a alienação, o obscurantismo e o fanatismo. Para esse caldo de cultura, tirar a política da mesa é uma estratégia importante. Nada é por acaso. No caso do fascismo, finalizá-la é absolutamente necessário para a manutenção dos grupos de apoio ao terror e à barbárie.

Tenho um olhar de fora, como democrata e observador. Fui advogado de 4 ex-presidentes da República, mais de 90 governadores, inúmeros ministros e senadores e convivo muito com a política. Nos finais de noite, nas mesas do meu restaurante Piantella, mítico e que deixou saudades, na época da redemocratização e das diretas, o ambiente respirava política. O Brasil queria se libertar das trevas. Buscava ar. Fazia política. Recordo-me de que o grande Nizan Guanaes sintetizou aquele período com uma propaganda que definia o movimento. Retratou um prato para baixo, para representar o Senado, e um outro para cima, para representar a Câmara dos Deputados. No meio, 2 copos de champanhe davam o desenho exato do prédio do Congresso Nacional. Emoldurando, a frase que simboliza os tempos que fazem falta: “Piantella: aqui situação é oposição sentam-se à mesma mesa”.

Saudades desse tempo no qual a política era o ingrediente mais forte para o fortalecimento da Democracia. Com o crescimento assustador da ultradireita, em vários lugares, o mundo ficará um lugar inóspito para morar. Mais conservador, mais moralista, mais sectário, com menos política social e com uma divisão mais nítida entre o rico e o pobre. Os invisíveis sociais tendem a ser cada vez mais excluídos. O racismo e a misoginia terão terra própria e adubada para crescerem.

Por tudo isso,precisamos ter uma estratégia para enfrentar o caos que se anuncia. E penso que a direita está crescendo de maneira predatória. É necessário um posicionamento dos democratas e dos humanistas. E, é claro, da classe política. Se deixar só nas mãos do Lula, poderemos andar algumas quadras atrás.

Lembrando-nos do Churchill: “A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Minhas traduções

Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Na semana passada, prometi escrever sobre os conteúdos e as traduções de “Essais français: droit et philosophie en édition bilingue français/portugais” (“Ensaios franceses: direito e filosofia em edição bilíngue francês/português”) e “Littératures françaises: récits sur les livres et les écrivains en édition bilingue français/portugais” (“Literaturas francesas: crônicas sobre livros e escritores em edição bilíngue francês/português”), livros siameses, que por estes dias jubilosamente entreguei aos leitores. Os lançamentos se deram ou se darão: em Natal/RN, no dia 24 de junho de 2024, às 18 horas, na Aliança Francesa, sita na Rua Potengi, nº 459, bairro de Petrópolis; em Recife, no dia 25 de julho de 2024, às 19 horas, na respectiva Aliança Francesa, sita na Rua Amaro Bezerra, nº 466, bairro do Derby. E eu estou très content.

Os conteúdos de “Essais français e “Littératures françaises” representam minha curiosidade transdisciplinar sobre o direito, a política, a filosofia, a arte e a literatura da França e da francofonia. Coisa de francófilo atrevido, repito. E, sem querer avançar muito nesse conteúdo – isso eu deixo a cargo do querido leitor –, registro apenas que dividi o material em duas grandes temáticas: direito e filosofia ficaram em um tomo, o “Essais français”; literatura, no outro, o “Littératures françaises”. E o leitor vai notar que, a depender da temática (transdisciplinar) predominante do texto, romancistas como Balzac, Hugo ou Gide, por exemplo, foram trasladados da ambiance de “Littératures” para o mélange dos “Essais”. Espero que vocês aprovem a metodologia.

            Mas quero fazer aqui algumas observações quanto às traduções. Elas me deram uma trabalheira dos diabos.

Decidi publicar os textos em edição bilíngue – e não apenas em francês, como até cogitado inicialmente –, para que o estudante de francês, falante nativo de português, ou vice-versa, de qualquer nível, pudesse aproveitar o que de bom têm os livros.

          Quanto às traduções em si, reconhecerei certa razão se alguém disser que a “boa” tradução é aquela feita de uma língua estrangeira para a língua materna (não é o caso aqui, já que sou criado e educado em bom português). Vertendo um texto para a sua língua materna, um tradutor quase sempre obtém um resultado melhor do que teria ao fazer o mesmo para uma língua dita “aprendida”. Todavia, procurei compensar as minhas deficiências.

Fiz “alianças”, como, por exemplo, com Heloísa Arcoverde de Morais, que “assina” a revisão da tradução. Sou mais do que grato.

Ademais, como lembra Geir Campos (em “O que é tradução”, Editora Brasiliense, 1996), “um fato inegável é que, para traduzir bem qualquer texto, o tradutor deve sentir-se de algum modo atraído ou motivado, ou pela forma ou pelo conteúdo dele, ou pelo autor, ou pela cultura do lugar a que se refere o texto a traduzir”. Não me faltaram atração ou motivação. Definitivamente.

Além disso, para bem traduzir, como anota Paulo Rónai (em “Escola de tradutores”, Edições de Ouro, 1967), “o tradutor deve conhecer todas as minúcias semelhantes da língua de seu original, a fim de captar, além do conteúdo estritamente lógico, o tom exato, os efeitos indiretos, as intenções ocultas do autor”. Os tons e as intenções do autor não me eram ocultos. Por óbvio.

Por fim, também dizem, na “Escola de tradutores”, que “o problema da tradução suscita comentários maliciosos e tópicos indignados, mas que não vão além da conclusão tradicional traduttoritraditori”. Fui fiel a mim mesmo. Escrevendo e traduzindo. Podem ter certeza.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O discurso falso e o beco

Extremistas invadem a Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante os atos do 8 de Janeiro de 2023.

Por Kakay…

“Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso.”
– Bertolt Brecht.
Começa a haver uma cobrança da direita civilizada –sim, ela existe– que, de certa forma, causa um constrangimento. A pergunta que fica sem resposta é: por que somente os “bagrinhos” foram presos e condenados, até agora, pelo 8 de Janeiro? E sempre enfatizam o tamanho das penas, 17 anos, para pessoas aparentemente sem importância na estrutura da organização criminosa que ousou colapsar o Estado Democrático de Direito.
É claro que é possível explicar que, em um processo penal democrático, a acusação deve, obrigatoriamente, respeitar todos os direitos e garantias constitucionais. Em razão dessa regra civilizatória, a ampla defesa faz com que o tempo do processo não seja o mesmo da imprensa e da nossa natural ansiedade. Acostumados com os atropelos processuais, como nas grotescas manipulações da operação Lava Jato, o ritual do cumprimento das garantias é encarado por muitos como desídia.

E o quanto da pena se dá pela gravidade dos tipos penais que comportam punições mínimas muito altas. E, sendo várias imputações, a soma das penalidades, pelo concurso material, mesmo com a fixação do mínimo legal, obrigatoriamente, leva a um número de anos muito elevado. No caso dos processos sobre o 8 de Janeiro, ou é absolvição, ou penas graves. E é necessário explicar que os que foram presos em flagrante –ou logo após a tentativa de golpe– têm necessariamente os processos com ritmo muito mais célere do que os que estavam na organização.

Mas é estranho, reconheço, ver a direita (que, no fundo, apoiou o golpe) usar o argumento de que o dia da infâmia nada mais foi do que o uso do direito à liberdade de expressão. No máximo, aceitam que pode ter havido algum exagero. Como se o cidadão pudesse fazer movimentos para abolir o Estado de Direito em nome da democracia. É uma contradição que eles não conseguem enfrentar. Com a demora na responsabilização dos políticos, dos militares de alto coturno, dos financiadores e da família golpista, cresce a ideia de que algum arranjo foi feito pela elite para que somente os aprendizes de terroristas sejam responsabilizados. E ainda temos que escutar críticas ácidas com a condução do processo no Supremo.

Cresce, cada vez mais, a ideia de que o julgamento na Corte está se dando sem as garantias da plenitude da defesa. É comum os advogados dos réus alardearem que não é respeitado o devido processo legal. Até mesmo os apoiadores golpistas têm que ter respeitado, na sua totalidade, as garantias constitucionais.

O mais constrangedor é ouvi-los discorrer, com a arrogância que a ignorância permite, sobre o direito à ampla liberdade nos Estados Unidos. Arrotam uma liberdade absoluta de expressão citando como exemplo o caso do foragido Allan dos Santos. Esse golpista tem, há tempos, prisão decretada. Porém, os EUA se negam a conceder a extradição sob o argumento de que o que ele fez foi crime de opinião. E, para boa parte dessa direita, mesmo a mais esclarecida, tudo o que ocorre nos EUA é certo, não existe erro e nem abuso no país dos sonhos desse grupo.

E, enquanto trabalham no Congresso Nacional por uma bizarra anistia, controlam a narrativa de que, se não prenderem Bolsonaro e familiares, alguns generais, empresários que financiaram, alguns deputados e senadores, será a comprovação de que não houve tentativa de golpe. Quem assiste à conversa fica com a nítida impressão de que eu estou fazendo a defesa dos golpistas e eles cobrando uma atitude.

E fazem, deliberadamente, uma confusão para provocar. No meio da discussão, perguntam se é verdade que houve um acordo para proteger o senador Sergio Moro. Ou seja, estamos nós, democratas, em posição de desvantagem e perdendo a narrativa sobre uma tentativa óbvia da quebra da instabilidade institucional.

Precisamos encerrar esse círculo para não criar argumentos, ainda que impróprios, aos que, no fundo, apoiaram o golpe e já se sentem à vontade para defender publicamente a ideia de que tudo o que ocorreu foi um exercício do direito de expressão. O discurso falso e fácil começa a ganhar corpo entre os incautos.

Por isso, é primordial apoiar a condução das investigações pela competente e técnica Polícia Federal, cobrar o acompanhamento cuidadoso do Ministério Público e, com o espírito crítico próprio das democracias, exigir que todos os processos, mesmo no Supremo Tribunal, sejam rigorosamente dentro das garantias constitucionais.

Mas sabendo que o tempo corre contra a normalização e que a pacificação deverá vir com a responsabilização dos principais responsáveis pela tentativa de ruptura institucional. É preciso finalizar os inquéritos. Denunciar criminalmente os que tramaram, incentivaram e financiaram a quebra da democracia. Não importa se grupos poderosos se insurgirem contra, com acusações de que o abuso está do lado dos que defendem a estabilidade democrática. Nesse caso, aí sim, estaríamos simplesmente respeitando o direito democrático e civilizatório das pessoas defenderem posições diferentes. Verdadeiramente dentro das linhas previstas na Constituição.
Se perdermos esse momento, será alimentada a ideia de que o golpe ainda pode ser a solução.
Lembrando-nos sempre do mestre Manuel Bandeira, no “Poema do Beco”
“O que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?

“–O que vejo é o beco”.

Fonte: www.www.poder360.com.br

Paris, o Sena e o tempo

 O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
O advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay – Foto: reprodução

“A maior riqueza do homem é a sua incompletude.” Manoel de Barros

Existe uma vida, especialmente no verão, longe dos cafés de Paris. Para quem, como eu, que gosta de sentar-se em um café com um livro, ler um pouco, tomar um copo e ficar vendo a vida passar, modorrentamente, à sua frente na calçada, é quase inadmissível tudo isso que pulsa em Paris. Com a proximidade das olimpíadas, a cidade se vestiu com outras cores. Frenética e com um trânsito que desafia o humor já instável do parisiense. Para o turista, tudo continua sendo uma festa e até trocar o vinho pela cerveja tem certo charme. À beira do Sena, as pessoas parecem querer, de alguma maneira, correr contra o tempo e deixarem-se levar pelas águas caudalosas do rio. Todo o mistério das águas escuras torna ainda mais insondável a vida de quem se dedica a flanar pelas ruas de Paris.

Um projeto ambicioso de 3 bilhões de euros promete deixar o Sena apto para banhar. Parece que esqueceram-se de combinar com o rio, que está cada vez mais revolto e quase bravo com suas águas que abraçam a cidade e nos envolve a todos, como que a nos lembrar-nos de que vale a pena viver. As águas, que descem rumo ao mar, nos fazem companhia e, de alguma forma, nos inquietam e nos intrigam. O Sena tem uma vida própria que dá um certo sentido às angústias de quem ama Paris. Não são os parques, nem os grandes boulevards e nem o brilho da torre Eiffel que dão o aconchego; são as águas desse rio que têm vida. Como em um poema, ele abraça e logo solta, nos fazendo correr com ele como se fizéssemos parte do rio.

Fazer parte do dia a dia de uma cidade exige a coragem de se entregar aos sonhos mais intangíveis. Não querer definir nada e muito menos controlar. Apenas virar água e se deixar levar como que a desafiar os nossos limites. Como Pessoa, ter um carinho especial pelos rios que correm no nosso imaginário. E lembrar de Leão de Formosa, que cantou o rio da aldeia dele e disse “que o Paranaíba é um rio triste, ensinou-me que o tempo não existe”.

Parar o tempo de repente é deixar de sofrer um pouco e, talvez, esquecer a imensidão dos nossos problemas. É não olhar as milhares de pessoas que estão morando nas ruas, é não se ligar por instantes nas guerras que nos sufocam, é não ver a extrema direita que teima em emburrecer o mundo, é apenas querer ser parte do rio e deslizar sem se importar de ter as margens a nos dar limites. Apenas esquecer de tudo, como se fosse possível, num átimo, não ter mais memória. Nem mesmo sonho. Só ser água cumprindo, dolentemente, um destino. Sabendo que em algum ponto vou desaguar no mar e ser protegido pela imensidão que me aguarda. É poder ser, perigosamente, indecifrável como os olhos vagos de uma pessoa idosa que você ama com Alzheimer.

Como nos lembrou Helena Kolody: “Quem é essa que me olha de tão longe, com olhos que foram meus?”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Fonte: www.ultimosegundo.ig.com.br

O pálio arquiepiscopal

Por Padre João Medeiros Filho

No dia 7 de julho próximo, Natal presenciará um rito milenar, remontando ao ano 336 da era cristã. Trata-se da imposição do pálio arquiepiscopal a sua Excelência Reverendíssima Dom João dos Santos Cardoso, nosso Arcebispo Metropolitano, pelo Excelentíssimo Senhor Núncio Apostólico no Brasil, Dom Giambattista Diquattro. É um ritual rico de significado e tradição católica. Tal cerimônia acontece pela primeira vez em solo potiguar. Os arcebispos anteriores receberam o distintivo da dignidade de metropolita, no Vaticano. O evento é mais um marco nas mudanças dos rumos da Igreja norte-rio-grandense. Dom João tem se revelado um líder e pastor, conquistando paulatinamente o rebanho com sua simplicidade, firmeza dialogada, escuta atenciosa, responsabilidade partilhada, abertura interior, espírito fraterno e paternal, marcado por amor ao Povo de Deus. Desde os primeiros dias de seu ministério episcopal em nossa terra, tem surpreendido com gestos discretos, porém icônicos. “Bendito o que vem em nome do Senhor” (Mt 21, 9).

Pálio provém da palavra latina “pallium”, antigo manto romano que cobria os ombros, protegendo-os do frio europeu. Isso explica sua confecção em lã. Atualmente, é uma espécie de colar com dois apêndices, em forma de “Y”, com seis cruzes ali bordadas e três alfinetes fixados, lembrando os cravos do Senhor. Originalmente, era privativo dos papas. Depois, estendeu-se aos metropolitas e primazes, expressando a jurisdição delegada pelo Sumo Pontífice. Destina-se aos prelados que assumem um arcebispado. Simboliza a colegialidade episcopal, comunhão com a Igreja e a missão de coordenar uma província eclesiástica.

Conforme historiadores, começou a ser usado na primeira metade do século IV, pelo Papa Marcos. Este estendeu o uso ao bispo de Óstia (Itália), que na qualidade de decano no episcopado presidiu a investidura do Sumo Pontífice. Após o século VI, é concedido aos metropolitas, tornando-se obrigatório, desde o século IX. O ritual inclui a profissão de fé do metropolita e seu juramento de fidelidade ao sucessor de Pedro. O objetivo é recordar publicamente aos investidos com aquela insígnia seu vínculo com a Cátedra Romana, fonte de todas as prerrogativas, fortalecendo assim a comunhão com o Papa. Buscava neutralizar aspirações de alguns eclesiásticos, ansiosos de uma autonomia incompatível com a unidade eclesial.

O pálio detém grande simbolismo teológico e forte dimensão metafórica. Sua feitura com lã de ovelha alude à figura do Bom Pastor, que coloca em seus ombros a ovelha perdida. Deseja relembrar o primeiro ícone da arte cristã, uma imagem de Cristo, Bom Pastor, atribuída ao evangelista João. O arcebispo, como na iconografia religiosa, deverá pôr em seus ombros as ovelhas que lhe são confiadas por Cristo. O pálio é preparado com a lã de cordeiros brancos, criados pelos monges trapistas e posteriormente costurado pelas freiras beneditinas do Mosteiro de Santa Cecília, em Roma. A lã ovina é ofertada ao Papa no dia 21 de janeiro (festa de Santa Inês) e por ele abençoada numa missa solene na basílica, erguida em homenagem à Virgem Mártir, nos arredores de Roma. Uma vez preparados, os pálios são colocados, em 29 de junho, sobre o túmulo de São Pedro para exprimir a tradição apostólica e posterior imposição aos prelados. Inês, em latim, Agnes, significa cordeiro. O arcebispo deverá empenhar-se para que suas ovelhas sejam dóceis e santas. Eis um dos simbolismos do belíssimo ritual que nossa arquidiocese vivenciará brevemente.  Será um evento memorável para a história eclesiástica norte-rio-grandense.

A parábola da ovelha desgarrada que o pastor procura no deserto – evocada na insígnia – é para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo Salvador. Sendo veste litúrgica, o pálio deverá ser usado em cerimônias religiosas em sua arquidiocese, mormente nas celebrações eucarísticas. Este é um momento em que o celebrante se assemelha a Cristo, desejoso de que haja um “só rebanho e um só pastor” (cf. Jo 10, 16). A referida vestimenta litúrgica sempre representou a unidade com a Sé Apostólica, simbolizando também as virtudes que adornam a vida daquele que dela se reveste. A cerimônia em Natal expressará nossa comunhão com o Vigário de Cristo. Cabe lembrar a profética frase do Quarto Evangelho: “Houve um homem enviado por Deus, cujo nome é João” (Jo 1, 6).