Ciência e imagem

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Já confessei outras vezes a minha paixão por alguns livros que são o resultado da adaptação, para o papel, de séries/documentários de TV: “Civilização” (“Civilisation”, 1969), “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973), “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”, 1977), “A música do homem” (“The Music of Man”, 1979) e “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”, 1980). Esses livros, sob a batuta de especialistas nas respectivas áreas do conhecimento – Kenneth Clark (1903-1983), Jacob Bronowski (1908-1974), John Kenneth Galbraith (1908-2006), Yehudi Menuhin (1916-1999) e Carl Sagan (1934-1996) –, nos contam a história da humanidade através das artes, das ciências, da economia/sociologia, da música e do universo/cosmos. Eu os li algumas vezes, sem falar que vivo xeretando-os ou mesmo reassistindo a capítulos das respectivas séries.

Outro dia, meditando sobre essa minha paixão, acho que descobri as suas causas/motivos.

Primeiramente, relaciono essa paixão com o que esses livros realmente são: exemplos de “divulgação científica”, aqui entendida em sentido amplo para englobar todas as artes. E de altíssimo nível, tanto quanto ao conteúdo como – e sobretudo – ao estilo/qualidade literária.

Sou um curioso (a maioria de nós o é, nem que seja sobre fofocas quanto à vida alheia…). Para além da minha suposta especialização (o direito), no que toca às ciências, sempre me interesso em saber mais um pouco, para interdisciplinarmente poder interagir ou para, pelo menos, quando for o caso, saber raciocinar dentro do respectivo sistema. Acredito que a aprendizagem de qualquer ciência, nos seus diversos níveis de conhecimento, é uma questão de desenvolvimento do senso comum aplicado à respectiva área. O etnólogo e arqueólogo Augustus Pitt Rivers (1827-1900) já dizia que a ciência era “senso comum organizado”. E, mais recentemente, o economista formado em direito Gunnar Myrdal (1898-1987) sentenciou: “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado”. Esse potencial mínimo de refinamento do senso comum, nos seus variados níveis (desde o raciocínio do agricultor sobre a meteorologia do sertão às elucubrações dos físicos teóricos), é comum a todos nós.

Possuo inclusive um livro – “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (Ivy Press, 2019) – cujo autor, Brian Clegg, nos leva exatamente “a uma jornada bibliográfica através do tempo/história e examina como a literatura científica redirecionou seu foco da elite acadêmica para uma audiência generalizada ansiosa para se educar. Essa transformação demonstra como os livros têm sido um condutor para a promoção do nosso conhecimento do universo e de nós mesmos”.

Mas também acredito que há uma razão mais simples para a minha paixão pelos livros acima citados. Trivial mesmo. Para explicá-la, talvez bastasse uma releitura do ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Lembremos que os livros aqui referidos têm algo de inusitado em comum. Se, em regra, livros é que são transformados/adaptados, embora quase sempre resumidos, em filmes ou séries de TV, os livros acima citados são o resultado expandido de um percurso inverso, da tela para a página. Penso que isso faz serem eles livros muito visuais. E posso até dizer que eles são perfeitamente visuais no sentido de agradar aos olhos, ao nosso importantíssimo sentido da visão.

Sempre fui – e ainda sou hoje – mais um homem da página do que da tela. Mas não custa nada misturarmos as coisas, letras, imagens e até sons. Estou ficando mais velho – estamos todos, não? –, e intercalar a leitura de alguns parágrafos com uma bela fotografia vai muito bem. Para não termos, como disse o Pessoa, “um supremíssimo cansaço / Íssimo, íssimo, íssimo / Cansaço…”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Saudade da direita civilizada

Lula e Geraldo Alckmin
Articulista afirma que a impressão que nos incomoda e nos assusta é a de que abriram a porta do esgoto; na imagem, o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin.

 

Por Kakay

“Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora entre feras, sente inevitável  Necessidade de também ser fera.” –Augusto dos Anjos, poema “Versos Íntimos”.

Nunca imaginei que sentiria saudades da polarização política entre direita e esquerda. Os embates que empolgavam a todos: AécioXDilma ou AlckminXLula. É claro que, à época, sabíamos que a vitória da direita e a implementação das políticas neoliberais iriam, pouco a pouco, solapando os direitos sociais e afastando o pobre da mesa. Era a luta por sobrevivência de um estado social, uma tentativa de incluir o menos favorecido no mundo sempre tão desigual e injusto. 

Existia uma tensão nas divergências políticas que eram claras e históricas. A gente sabia, com razoável segurança, como a sociedade poderia ganhar se tal candidato e partido vencessem e quais seriam as perdas nas derrotas. 

Com certa clareza e possível comparação histórica, o mundo se dividia entre ruim e razoável. Nunca conseguíamos estar num patamar realmente bom, pois a exclusão social, a pobreza e a fome estavam sempre presentes. Era uma luta diária de sobrevivência para milhões de pessoas e cada grupo político representava o aumento do fosso, ou um lampejo de melhorias. Era fácil constatar. Mas era civilizado.

Hoje, em muitos casos, a velha divisão entre esquerda e direita foi implodida. Por uma série de fatores ainda não totalmente estudados e compreendidos, o mundo se abriu para o enorme risco de um antagonismo irracional, sem nenhum limite ético, nenhum escrúpulo e sem controle. Sabíamos do pântano que, muitas vezes, tem a velha política como habitat natural. E a sociedade sempre procurou encontrar maneiras de enfrentar, com armas democráticas, esses movimentos que residem em uma área pegajosa e estranha.

Mas a democracia se equilibrava com cada grupo tentando cumprir os ritos de uma convivência civilizada. Claro que, muitas vezes, os limites eram derrubados, como no caso do golpe contra a Dilma, no escândalo criminoso da república de Curitiba e da força-tarefa da Lava Jato –coordenada pelo ex-juiz Sergio Moro–, na prisão do Lula para entregar o governo para o Bolsonaro, entre outros descalabros. Mas, mesmo com tantos percalços, ainda podíamos defender certa democracia.

Hoje, a impressão que nos incomoda e nos assusta é a de que abriram a porta do esgoto. Seres escatológicos saíram das trevas e ocupam com incrível desenvoltura os espaços políticos. Com rara desfaçatez e sem nenhum, absolutamente nenhum, critério ético ou escrúpulo. 

A mentira virou uma arma diária e, na disputa política, especialmente nas mídias sociais, o interesse é usá-la de maneira mais convincente e capilarizada. Se uma inverdade, ainda que grave e infamante, puder causar um estrago nas hostes inimigas –não é mais adversária– e, principalmente, angariar mais seguidores nas mídias sociais , é o que será usado e implementado. 

Não existe mais a mínima preocupação ao espalhar uma fake news, mesmo as mais vulgares, covardes ou criminosas. Ao contrário, os criminosos –sim, são criminosos– jactam-se, em público, de serem essas criaturas teratológicas. E essa atitude ainda serve para aumentar exponencialmente os seus seguidores.

Tentei acompanhar o debate entre os candidatos à Prefeitura de São Paulo. É assustador. Ou estabelecem e cumprem regras civilizatórias, ou, aos poucos, só sobrarão essas figuras bizarras no palco. Não há nenhum espaço minimamente civilizado para suportar tamanha agressividade e uso desmedido de ofensivas. Palhaços como o tal Padre Kelmon, da última eleição presidencial, tornaram-se figurantes em comparação com o que se avoluma na política. Escrevi aqui, neste prestigiado espaço, na última 6ª feira (23.ago.2024), em meu artigo “Deu no New York Times”, a previsão maldita do Steve Bannon, ex-estrategista chefe da Casa Branca no governo Trump: com o crescimento da extrema-direita, sentiríamos saudades do Trump. Com o que tenho visto, penso que esse tempo já chegou.

O fenômeno que se anuncia e toma corpo na nossa frente é algo dantesco. Mais do que usar os princípios da ultradireita, há um misto de messianismo, cinismo, uso deliberado da mentira como estratégia, compulsão pela atitude agressiva, obsessão por ganhar dinheiro, sem nenhum critério, nas redes sociais, enfim, o caos como meta. E, com esse descontrole nas relações políticas, voltamos a um ponto extremamente delicado: a atitude do Poder Judiciário como polo ativo no controle dos abusos. 

Sempre nos lembrando de Rui Barbosa, na Oração aos Moços: “Justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”. Já escrevi, diversas vezes, que, com o crescimento da extrema-direita bolsonarista e a criminosa tentativa de golpe em 8 de Janeiro, o Brasil foi jogado em um impasse. No governo anterior, no Executivo, vicejava a ultradireita solapando todas as conquistas democráticas. O Congresso estava, em sua grossa maioria, cooptado.

O que sustentou a democracia foi a ação firme e constitucional do Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal e o Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo sendo, em regra, um poder patrimonialista, conservador, machista e racista, o judiciário se superou e garantiu o Estado Democrático de Direito. Ainda ameaçado, mas, agora, com o apoio mais amplo da sociedade organizada.

É interessante acompanhar a discussão da determinação de retirada do ar de redes sociais do candidato Pablo Marçal. É pueril a imputação de que foi um ato de censura prévia. Ora, tanto não é censura que foi permitido que o candidato abrisse outras contas. O que foi decidido é que fossem retirados os abusos. 

Na realidade, o que chama atenção e merece reflexão é que, se fosse a sociedade minimamente madura e lúcida, tais decisões nem seriam necessárias. Todos esses abusos histriônicos seriam debitados como folclore e a vida seguiria com uma pretendida normalidade democrática.  O que assusta é que a grande maioria aplaude. Em vez de asco, tem admiração. Com isso, o show de horrores tende a crescer e a democracia vai, cada vez mais, cedendo lugar para a barbárie. Perdemos todos. Remeto-me ao grande poema, Poema em linha reta, de Fernando Pessoa na pessoa de Álvaro de Campos:

“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”

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Kakay sobre “outro Boulos” em caso da cocaína: “Marçal fez com dolo, tem que responder”

O coach condenado Pablo Marçal e o advogado Kakay.Créditos: Band e Henrique Rodrigues/Revista Fórum

Depois de repetir inúmeras vezes em debates televisivos e nas redes sociais, inclusive afirmando possuir um “dossiê” com provas, que o adversário Guilherme Boulos (PSOL) era usuário de cocaína, o coach Pablo Marçal (PRTB), um condenado pela Justiça por integrar uma quadrilha de fraude a bancos que disputa a prefeitura da maior cidade do país, terá que voltar a responder a uma acusação criminal. O jornal Folha de S.Paulo revelou nesta quarta (28) que o tal processo a que Marçal teve acesso “provando” a grave acusação que fazia era, na verdade, de um homônimo do postulante que lidera a corrida eleitoral.

O caso de prisão por porte de drogas em 2001 ocorreu com um homem chamado Guilherme Bardauil Boulos, que coincidentemente disputa uma vaga de vereador na capital paulista nas eleições deste ano, pelo Solidariedade. O nome completo do candidato do PSOL ao Palácio do Anhangabaú é Guilherme Castro Boulos. Ou seja, a campanha de Marçal deliberadamente utilizou um homônimo para espalhar uma grave acusação contra o candidato da frente ampla de esquerda.

Para falar da questão legal que envolve tal expediente espúrio do candidato de extrema direita, a Fórum ouviu o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos mais influentes e respeitados juristas brasileiros e figura de grande relevo no universo do direito brasileiro. Para Kakay é inequívoco que a atitude de Marçal e de seus assessores foi proposital, o que consiste em pelo menos dois crimes.

“Evidentemente que ele fez isso de forma dolosa, ele sabia que não era o Boulos candidato, então ele incorreu em pelo menos dois crimes: cometeu o crime de calúnia e cometeu o crime de injúria. A questão criminal, às vezes as pessoas não levam a sério, mas o Boulos deveria representar contra ele, porque além de ser um crime, é uma tentativa de burlar o interesse do eleitor. Ele tem que responder por isso. Eu venho discutindo muito isso e eu acho que, especialmente o Pablo Marçal, é um homem absolutamente sem limites, sem critério e sem escrúpulo nenhum. É muito difícil você fazer um debate com uma pessoa que não tem nenhum critério, que não tem nenhum apreço à verdade. Ele fala o que quer, ele faz insinuações colocando o dedo no nariz de forma jocosa, e isso faz com que o debate perca a credibilidade, pois o debate é um instrumento muito interessante no Brasil, que sempre o usou muito bem. Nós já tivemos gente como aquele padre Kelmon, um farsante, que faz as coisas por esses meios, porque sabem que existe um nicho, sobretudo nos movimentos de ultradireita, em que esses atos absolutamente sem limites e que privilegiam a mentira têm espaço”, disse o advogado.

Kakay falou ainda para os impactos deste comportamento criminoso, que vão muito além do universo jurídico, interferindo nos processos político e democrático, já que se tornou, desde a ascensão de Jair Bolsonaro (PL), uma conduta reiterada e estratégica.

“Ele não aumentou só incrivelmente o seu espaço político e os seguidores, como também aproveita pra ganhar dinheiro, pra monetizar nas redes dele. Tudo isso é muito grave e eu penso que se as televisões e as rádios não colocarem limites muito rígidos nos debates, vai acabar afastando os candidatos, e vão continuar aí esses candidatos que não têm escrúpulos, que não têm limite, que não têm vergonha do ridículo. Em síntese é isso, ele cometeu um crime contra o Boulos e, politicamente, o que a gente vê é gente que se utiliza da mentira como estratégia política”, concluiu o jurista.

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Pedra e fé em Cristo Jesus


Padre João Medeiros Filho

Carlos Drummond de Andrade escreveu em um de seus poemas: “No meio do caminho tinha uma pedra…” Alguém já disse que “a poesia é a menina dos olhos da literatura.” Houve, entre os críticos literários, quem quisesse comparar os versos drummondianos com a poesia primitiva a ser burilada pelo autor. Seria semelhante ao granito, com o qual o escultor faz brotar sua obra de arte. Abgar Renault em “A lápide sob a lua” afirmou: “O poeta é artesão e bruxo das palavras.” A poesia, assim como a escultura, seria um trabalho artesanal do artista paciente e perseverante, evitando a inspiração apressada, fortuita e alienada. Ao contrário, é fruto do empenho “das retinas tão fatigadas”, segundo o vate de Itabira. Diante de tais interpretações, Drummond intervém, afirmando que ali ele tratava mesmo de pedra.

João Cabral de Melo Neto era considerado um poeta de estilo contido e seco. Em sua obra “Pedra do Sono” afasta-se da tradição do simbolismo da linguagem, tornando a objetividade da prosa escrita envolta em poesia. Para esta transporta a dura realidade dos canaviais pernambucanos, também retratada nos pedregulhos em “Morte e Vida Severina”. A luta árdua pela vida traduz-se na estética do drama. Pode-se perceber o desafio compreendido por Cristo, quando usa a metáfora pétrea ao designar o primeiro papa. O granito inspira-nos a ser firmes, mas quando transformado em arte, leva-nos à admiração e ao amor.

Deste modo, a fé deve ser inspiradora, capaz de suscitar atitudes de entrega, solidariedade e perdão, como o mármore que se presta a vários tipos de escultura. Vale lembrar o romance de Ariano Suassuna “A Pedra do Reino”, ao descrever a vida como uma pedra, “mas doce como uma cajarana madura.” Se ela chega a comover poetas e romancistas, não deixaria de chamar a atenção do autor das Bem-aventuranças. “Olhai as aves do céu… Aprendei dos lírios do campo…” (Mt 6, 26). Quanta beleza nesses textos bíblicos, que amenizam a aridez da existência!

Cristo emprega várias expressões e imagens do cotidiano de seu tempo: terreno, rocha, grão, pastor, ovelha, senhor, servo etc. Revelava com alegorias e muita simplicidade o Reino dos Céus, que Ele veio pregar. Como é importante retornar à simplicidade das analogias evangélicas para se compreender o pensamento de Jesus! A realidade da rocha, mantida na retina ou na memória, é um desafio e encanto. Um olhar poético sobre ela a verá com mais profundidade e transcendentalismo. O Filho de Deus a tornou parábola do Príncipe dos Apóstolos, em cuja fé colocou os alicerces de sua Igreja. “Tu és Pedro e sobre esta pedra, edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18). Encontramos a palavra pedra vinte e sete vezes no Novo Testamento e vinte e quatro, o vocábulo rocha. Eis como Cristo é preconizado no Antigo Testamento: “A pedra que os construtores rejeitaram, tornou-se a pedra angular” (Sl 118/117, 22). O próprio Deus é assim lembrado: “E quem é a Rocha, senão o nosso Deus?” (2Sm 22, 32).

Há algum tempo, o Sumo Pontífice, dirigindo-se a um grupo de freiras contemplativas, propôs-lhes “uma fé sólida e útil como a rocha”, contrapondo-a a um caminho “demasiadamente espiritualizante, abstrato e místico.” Com o significado da rocha o Salvador do mundo procurou definir a dimensão transcendente do ser humano. Queria mostrar nossa fé, inabalável e profunda, burilada pela graça divina, sem falsa e alienante espiritualidade. A pedra é ícone de nossa existência espiritual, desafiadora e objetiva, que se molda na firmeza da gratuidade sobrenatural. Ela também acolhe, serve de assento, referencial e repouso no cansaço da caminhada.

Por isso, Cristo a constituiu símbolo de sua Igreja. Portanto, a condição pétrea de nossa humanidade não serve apenas para a poesia moderna, mesmo não sendo engajada na problemática social, segundo o pensar de alguns teólogos. É indispensável à fé, que deverá ser autêntica e testemunhada, isto é, fundamento da caridade e propulsora da esperança, nutrindo a transcendência do homem, cidadão do Infinito. Convém refletir sobre as palavras do apóstolo Pedro: “De igual modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual” (1Pd 2,5).

A arquitetura jurídica (II)

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Como já disse aqui, os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar. Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. É um lugar sagrado onde se faz justiça, na medida em que o seu oposto, o espaço externo, seria, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), “o reino da violência, da barbárie e da desordem”.

Mas essa é uma arquitetura – a dos palácios ou fóruns de justiça – que também constrange. Muitos dos edifícios são grandiosos, às vezes suntuosos, feitos especialmente para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar. A grandiosidade e simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, a visão.

Como anota Eduardo C. B. Bittar, “ao ser mergulhado na experiência de uma Court House, mensagens explícitas e mensagens subliminares são constituídas no universo dos destinatários das mensagens. E as reações são várias: admiração; reverência; espanto; medo; constrangimento; pequenez; temor; respeito; imposição”. E essa enorme carga simbólica atinge tanto seu frequentador recorrente (juízes, promotores, advogados, serventuários, policiais etc.), como o seu frequentador ocasional, o cidadão ou jurisdicionado.

Tomemos como exemplo dessa grandiosidade opressiva o Palais de Justice de Paris, o maior “templo jurídico” da França, onde, como anota François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012), “centenas de profissionais do direito e litigantes vão todos os dias e são circundados por prestigiosos vestígios de mais de 1000 anos de história”.

Sobre o Palais de Justice, para deixar a coisa mais lúdica, leiamos o “depoimento” do Comissário Maigret, o detetive imaginado por Georges Simenon (1903-1989). Em “Maigret no tribunal” (L&PM, 2013), ele nos confessa que a sala de audiência do Palais, embora fisicamente próxima do seu ambiente de trabalho, é outro mundo, no qual as palavras não têm o mesmo sentido que nas ruas, “um universo abstrato, alegórico, ao mesmo tempo solene e impertinente”. Acredito que aqueles que “fazem” a Justiça (juízes, promotores, advogados) já devem ter sentido essa asfixia anacrônica poeticamente descrita por Maigret/Simenon. Eu já senti. Imaginem a sensação daqueles que vão aos “palácios de justiça” ocasionalmente (partes, vítimas e testemunhas), não acostumados àquele ambiente opressor. Para eles, quanto mais rápido aquela “tortura” acabar, melhor.

E vou mais longe nessa mistura da “arquitetura jurídica” com a literatura aludindo a Kafka (1883-1924) e ao seu célebre romance “O processo”, de 1925. Na conhecida narrativa “Diante da Lei”, tem-se um camponês que pede admissão ao porteiro que está na entrada à “lei”. O porteiro recusa e responde evasivamente que o camponês poderá entrar mais tarde. Quando o humilde homem, do portão, olha para o interior da “lei”, o porteiro adverte-o de que é inútil tentar entrar sem permissão. Anos se passam. O humilde camponês envelhece. Esquece até que existem outras entradas e porteiros. Próximo de morrer, ele indaga por que, em todos aqueles anos, nenhuma outra pessoa solicitou entrada na “lei”. O porteiro responde que aquela porta havia estado aberta só para ele e que, agora que ele está morrendo, vai cerrá-la.

“Diante da Lei” é uma parábola. Ela tem um fim moral ou ensinamento de vida. Mas qual seria essa “moral da história”? Kafka deixa a resposta ao leitor. Há mil interpretações. Eu tenho as minhas. Numa delas relaciono a parábola aos “palácios da justiça”, que, na sua grandiosidade, já na “porta” do aparelho judicial, impedem o acesso dos vulneráveis à “lei”. Não enfrentamos devidamente os porteiros. Os palácios. Os nossos moinhos de vento.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Deu no New York Times

Falhou o modelo Trump nas eleições presidenciais brasileiras | Opinião
Na imagem, os ex-presidentes do Brasil e dos EUA, Jair Bolsonaro e Donald Trump.
Por Kakay 23.ago.2024
“A cadela do fascismo está sempre no cio.”

–Bertolt Brecht Às vezes, a sensação que tenho é a de que estamos em uma enorme caixa escura, hermeticamente fechada e com o ar, a cada segundo, mais rarefeito. E, o pior, dentro dela não se enxerga nada; porém, o barulho consegue nos perturbar. E o que se consegue ouvir é tão grave quanto a falta de ar ou a ausência de luz. Existe um ruído que atinge nossos ouvidos e, principalmente, nossa consciência sobre uma completa irracionalidade que beira a teratologia.

Nós imaginávamos que os Bolsonaros, Trumps e que tais seriam o fundo do poço. Mas parece que o mundo escatológico abriu as portas do esgoto e tudo ainda pode piorar. Até o limite do insondável.

Em recente manifestação numa entrevista ao jornal New York Times, em 1º de julho, Steve Bannon –ex-estrategista-chefe da Casa Branca e conselheiro sênior do ex-presidente Donald Trump– alertou que os novos políticos de extrema-direita farão, em pouco tempo, com que os democratas tenham “saudades” dos direitistas Trump e, por consequência, Bolsonaro. O que os superdireitistas apostam é na destruição da política e no caos. Eu sempre considerei que o bolsonarismo tinha o apocalipse como meta, o fim, a não política. Da mesma maneira, Donald Trump. Mas reconheço que Javier Milei, na Argentina, e Pablo Marçal, no Brasil, acenderam uma luz amarela. Há uma aposta clara e direta na incoerência absoluta e no negacionismo. Ainda que proibidos de usar as mídias sociais por fazer, muitas vezes, de maneira ilegal e agressiva, a opção desses candidatos é desafiar e manter a hostilidade. Como monetizam o que postam e falam, mesmo em debates, vale a pena, na visão utilitarista, pagar eventual multa.

Ganham rios de dinheiro e aumentam exponencialmente os seus seguidores. E nem há que se falar em escrúpulos de consciência, pois isso nunca existiu. É assustador. Quando se enfrenta quem, deliberadamente, não tem limites, qualquer critério ético não pode ser chamado à colação. É uma guerra de destruição e de terra arrasada.

Durante os 4 anos da gestão Bolsonaro, impressionou a todos a ausência de limites éticos e, até, de bom senso. A base do governo era, pensadamente, a estratégia da propagação do ódio e da mentira. A absoluta falta de compromisso com a verdade era algo estudado e pensado. A divulgação de fatos falsos servia como motivo para manter unida, a qualquer custo, a base bolsonarista.

Repetidamente, alertei que é muito difícil, quase impossível, debater com seriedade e profundidade com quem não tem nenhum limite. Quem mente com convicção e fala para um público incauto tem uma enorme chance de ser seguido cegamente. Há uma completa inversão de valores. Quem é ético e se sustenta na verdade, muitas vezes, perde a capacidade de discutir com esses verdadeiros trapaceiros. Faltam argumentos diante dos abusos.

A tese de Steve Bannon chega a causar calafrios, pois desnuda o que pode existir de pior no ser humano. A pregação e o discurso hipócrita da desnecessidade da política como forma de fazer política. E um método fascista de chegar ao poder a qualquer custo, tendo como tática o uso descarado de todo e qualquer artifício e o desprezo olímpico pela verdade e pelos fatos. Isso levou à afirmação cínica e descarada do mentor do ex-presidente norte-americano de que a esquerda terá saudades dos Trumps e Bolsonaros. É assustador imaginar que poderá ainda piorar.
E, infelizmente, é o que se apresenta como realidade neste triste momento da política nacional. Tenho dito que, quando o presidente Lula se apresentou como candidato, ele o fez para impedir outra vitória do fascista Bolsonaro. As últimas eleições foram um confronto entre a barbárie e a civilização. A democracia ganhou. Todavia, é necessário nos mantermos éticos e com os mesmos princípios. Se usarmos os métodos fascistas, a barbárie terá, no fundo, vencido. Esse é o nosso desafio.
Lembrando-nos de Mauro Santayana: “Com a extrema-direita não se brinca, não se alivia, não se tergiversa, não se compactua. Quem não perceber isso – esteja na situação ou na oposição– ou está sendo ingênuo ou irresponsável, ou mal-intencionado.

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Intimidação desleal

O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay
Carlos Humberto/SCO/STF  – O advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay

Recentemente, escrevi que o  Bolsonaro tem o direito de ser processado, até para exercer o seu legítimo direito à defesa em toda sua plenitude, e pareceu provocação. Com a tentativa burlesca de desmoralizar o Supremo Tribunal, especificamente o ministro Alexandre de Moraes, o assunto volta a ter relevância. Essa pressão sobre o ministro é claramente uma estratégia de defesa. Ao tentar desacreditar o Judiciário, aqueles que estão na mira das investigações criminais buscam cavar nulidades, pois sabem que, no mérito, não terão como lograr um resultado positivo. Faz parte do jogo democrático o exercício da ampla defesa. Claro que, no caso concreto, a postura não ética tisna o exercício defensivo pleno.

Entendo que uma das causas que sustenta esse ataque frontal ao ministro Alexandre é a demora do PGR em apresentar a acusação. O Supremo Tribunal já decidiu, diversas vezes, que toda apuração tem que ter um tempo razoável. Ou o Ministério Público oferece a denúncia – peça formal que, se recebida pelo Judiciário, dá início à ação penal -, ou a investigação deve ser arquivada. O cidadão tem direito a um prazo razoável para ficar exposto ao escrutínio estatal. Se o Estado, com todo seu poder e aparato, não consegue elementos suficientes para dar início à persecução criminal, é necessário que se determine o fim da investigação.

O método fascista de ser do bolsonarismo causou graves entraves na convivência social brasileira. O país foi jogado em um terreno pantanoso do ódio, da violência política e da desagregação social. Os métodos usados foram deliberadamente para dividir a sociedade. A aposta no caos é uma característica da ultradireita. Fazem um jogo para captação de pessoas como se fosse para uma seita. Não existe debate ou troca de ideias.

O que impera é algo como se viu no  8 de janeiro. Milhares de bolsominions entrando nas sedes dos Três Poderes ensandecidos, quebrando tudo e pedindo uma intervenção militar. Deu pena. Mas preocupou. A pronta reação foi proporcional. Mais de 1.000 prisões e, 20 meses depois, 300 pessoas já foram julgadas e condenadas a penas altíssimas pelo Supremo Tribunal Federal. Agora, a sociedade inteira aguarda aresponsabilização criminal dos financiadores, dos militares de alto coturno, dos políticos e do Bolsonaro. Sem isso, o Brasil continuará entregue à instabilidade e aos frequentes ataques à Democracia.

A reflexão necessária é: sem processar os reais responsáveis pela tentativa de golpe, haverá uma enorme decepção e a estabilidade democrática continuará em ataque. Não é possível que o Judiciário responsabilize os pretendentes a terroristas e não faça o enfrentamento necessário daqueles que tramaram, sustentaram e coordenaram o golpe.

Enquanto isso não ocorrer, a saída desesperada dos que sabem que são os reais responsáveis será desacreditar o Poder Judiciário e tentar desmoralizar o ministro Alexandre para cavar nulidades nos processos. O Judiciário é um poder inerte, só age se provocado. Por isso, é urgente que a sociedade democrática acompanhe, de perto, o trabalho do Ministério Público. O procurador-geral da República é o titular da ação penal esomente ele pode propor uma acusação formal. E, só após a denúncia, o Supremo pode agir. A nós, cabe acompanhar e cobrar. A Democracia agradece.

Lembrando-nos do velho Fernando Pessoa:

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas que já têm a forma do nosso corpo e esquecer os caminhos antigos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É tempo de travessia, e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Fonte: www.ultimosegundo.ig.com.br