Zero à notação

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Na Europa, em especial na França, já de algum tempo, há quem denuncie aquilo que eles chamam de abuso das “notações” – leia-se a prática de se classificar ou dar nota a tudo –, por consumidores/clientes, em sites de diversas empresas (a Uber, por exemplo) ou mesmo em plataformas virtuais para tanto direcionadas (a exemplo do TripAdvisor).

Alega-se que esse tipo de notação tem “infernizado” a vida dos trabalhadores das empresas avaliadas. As notas dadas, marcadamente subjetivas, têm ensejado reduções de salários, suspensões de contrato de trabalho ou mesmo demissões com justa causa, entre outras penalidades. “Boicotem esse sistema abjeto”, é o que já pedem as organizações em prol dos trabalhadores.  

Ademais, na selva virtual de hoje, as inúmeras plataformas especificamente direcionadas para a notação têm sido um inferno não só para os trabalhadores. Basta irmos ao Google e encontraremos profissionais liberais – médicos, por exemplo – bem ou muito mal “notados”. E especificamente quanto ao Golias da Web TripAdvisor, muito em razão dos chamados “serial-noteurs” (de boa ou má-fé), este tem se tornado uma ameaça “insuportável” às empresas/profissionais de hotelaria e de restaurantes, na França, mas também no mundo inteiro.

Novamente estudando na Aliança Francesa de Natal, por intermédio do nosso livro/método de francês “Défi 5”, tive acesso a um texto do Concierge Masqué da revista Vanity Fair francesa, em que se grita “Morte ao TripAdvisor”, uma plataforma que, veiculando as “chantagens mesquinhas” dos clientes de restaurantes e hotéis – muitas vezes em busca de um jantar ou um pernoite como recompensa –, transformou-se numa “ditadura de Jecas Tatu”. Texto forte.

A moda da notação/classificação está se espalhando perigosamente. O tal Concierge Masqué até especula sobre uma exigência do governo chinês de uma notação recíproca entre seus concidadãos, algo que “não iria desagradar a todos neste minúsculo mundo”. Nessa toada, aliás, é interessantíssimo o episódio “Nosedive” da badalada série de ficção científica britânica “Black Mirror”. Na estória, as pessoas são reciprocamente notadas/classificadas em um aplicativo do tipo Instagram, com avaliações de 0 a 5. Graças às notas/classificações de outrem, a pessoa pode conseguir tudo na vida… ou nada. E aí temos a confirmação da máxima de Jean-Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros”.

Embora isso ainda possa ser tido como um tipo de distopia, acho que não estamos muito longe desse “abominável mundo novo”. Por exemplo, na Internet, outro dia, dei de cara com mais de um quiz que prometia apontar a minha “real” posição política, se “de esquerda ou de direita”. No geral, fui classificado como “de centro”, mas, por ser a favor da proteção do meio ambiente, “com ideias de esquerda”. Ainda acho que proteger o meio ambiente é um dever universal, cósmico.

Para os mais diversos fins, até de amizade ou relacionamento, as pessoas já estão hoje notando/classificando os outros como de “direita” ou de “esquerda”. E laços são completamente rompidos. Aliás, tenho um amigo querido, já fanático por natureza, que pedestremente nota/classifica a tudo e a todos com base na posição dos assentos da Assembleia Revolucionária Francesa, fato histórico que ele desconhece por completo. Sentado num já imaginário “Muro de Berlim”, esgoela delírios destros e canhotos. Em meio a qualquer assunto, sai com “esse cara é um esquerdista fdp”, “isso é coisa da esquerda”, “na direita não tem isso não” e por aí vai. Outro dia, curioso, eu perguntei a ele se “quem toma suco de maracujá é de direita ou de esquerda”. Gostaria de saber, sob esse critério, de que lado da sua revolução imaginária eu estaria.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Neymar X Gabrielzinho: qual nos representa?

Na imagem, o jogador de futebol Neymar Jr (esq.) e o nadador paralímpico Gabriel Geraldo (dir), conhecido como Gabrielzinho
Na imagem, o jogador de futebol Neymar Jr (esq.) e o nadador paralímpico Gabriel Geraldo (dir), conhecido como Gabrielzinho.
Por Kakay.
“Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez.” –Frase atribuída a Jean Cocteau (pode não ser dele, mas se aplica ao Gabrielzinho). O fim das Paralimpíadas em Paris 2024, que foi um sucesso absoluto, deixou um ar de quero mais no mundo todo, pelo sucesso absoluto das competições, e um sentimento de enorme alegria e alívio na França. Foram momentos de tensão e de inúmeros boatos de atentados que intranquilizaram o governo e os franceses. E, claro, a todos nós turistas. Em um evento dessa magnitude, sempre fica um espaço para reflexão: a união dos povos, a solidariedade, o espírito olímpico, a garra e a dedicação dos atletas. São muitas as lições que deixam um legado. Cada país, nessa hora, olha para o que foi marcante e para o que mais emocionou.

No caso brasileiro, a performance exuberante da Rebeca Andrade, juntamente com sua história de vida, sua técnica, leveza, beleza e charme, já seriam mais do que suficientes para nos encher de orgulho. Bem como a garra e a determinação do vôlei e do futebol femininos.
São muitos os exemplos que nos dão satisfação. Desde aquele atleta que não conseguiu nenhum destaque na prova, mas que, parece óbvio, só por estar lá competindo já demonstra que todo o esforço e sacrifício valeram a pena. Até aquele que arrematou uma medalha. Seja de ouro, de prata ou de bronze. Para um esportista, levar a medalha para casa é carregar consigo um pouco do país dentro do peito.
Cada um faz o registro da sua emoção. O esporte é um misto de paixão e emoção. Sou apaixonado por futebol. E fiquei muito frustrado de ver a não classificação do time masculino brasileiro para disputar as Olimpíadas.
 
Senti aquele gosto amargo na boca de que o exemplo de um bilionário como Neymar, com suas caidinhas ridículas e patéticas, chamuscou toda uma geração de jogadores. Será que os salários megaestratosféricos e o excesso de glamour idiota deram um tiro no futebol brasileiro?

É verdade que, desde a 1ª participação em uma edição dos Jogos Olímpicos, em Helsinque 1952, já ficamos fora de 5 Olimpíadas:
  • Melbourne 1956;
  • Moscou 1980;
  • Barcelona 1992;
  • Atenas 2004;
  • e a última, Paris 2024.
Com o coração na mão, estamos acompanhando o sofrimento da fase eliminatória da Copa do Mundo. Não é demais registrar que o Brasil foi sede de duas Copas do Mundo, em 1950 e 2014, e é a única Seleção que esteve em todas as edições do evento. É o maior vencedor da competição, com 5 títulos. É bom lembrar que só participou de todas as Copas porque decidiu furar um bloqueio dos países vizinhos e frustrou um boicote. Todavia, essa é outra história.
Porém, o que mais me emocionou foi a participação nas Paralimpíadas de Paris do nadador Gabrielzinho. Sem os 2 braços e com as pernas bem pequenininhas, ele ganhou 3 medalhas de ouro. Virou o xodó da torcida francesa e disse que sua 4ª medalha era exatamente a receptividade que teve dos torcedores. Imagino, na verdade nem posso imaginar, o quanto sua vida deve ser sofrida.
Mesmo os detalhes do dia a dia, certamente, são de enorme dificuldade e superação. Mas ele exala alegria, simpatia, solidariedade e dedicação. Realmente, foi muito emocionante vê-lo disputar as provas de natação com a surpreendente habilidade na água.
Na imagem, o nadador Gabrielzinho, campeão paralímpico nas Paralimpíadas de Paris 2024.
Imagino quando disse, pela 1ª vez, que queria ser nadador. Coloquei-me na piscina e me comovo só em pensar na cena. E foi desconcertante e estimulante ver os vídeos da sua preparação para as provas.
Ao ver esses mimados se mostrando nos iates, nos carrões e nas caidinhas esdrúxulas, valorizo ainda mais a força de um exemplo como o Gabrielzinho. Penso que sim, o Brasil tem jeito. Obrigado, Gabrielzinho!
Remeto-me a Pessoa, na pessoa de Ricardo Reis:
“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago

a lua toda brilha, porque alta vive.”

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Solidão, presença indesejável

Padre João Medeiros Filho

A solidão, ausência de companhia e interlocução, marcada pelo isolamento, é algo doloroso. Existe o risco de levar alguém à depressão e morte. Faz-nos pensar na música de Vinícius de Moraes e Toquinho “Um homem chamado Alfredo”. Este contava tão somente com a companhia de um papagaio e um gato de estimação. Desistiu de viver, inalando gás de cozinha. Dizia-se cansado da vida, por não ter ninguém com quem falar, alguém para amar, uma mão para apertar. Entediou-se com sua invisibilidade e existência que não atraía ninguém. A solidão é um dos grandes males testemunhados nos dias de hoje. Pode acontecer em um pequeno quarto ou sentida em meio às multidões que passam e não veem, escutam e nem se dão conta de que ali há um semelhante com sentimentos, sonhos e desejos. “É solitário andar por entre a gente”, desabafava Camões num soneto.
Os seres humanos são relacionais, necessitando da presença e interação de outrem para viver. O isolamento acaba destruindo uma pessoa, prematura ou repentinamente. O governo britânico criou o Ministério da Solidão, ao constatar que o Reino Unido invertia a corrida mundial pela longevidade, apresentando índices de mortalidade precoce em seus cidadãos. Tornou-se para os ingleses problema de saúde e política pública. Carecia de um órgão para cuidar dessa nova situação humana. Suas maiores vítimas são os idosos. Há cidadãos que já não contam mais no mapa da produtividade, contribuição social e beleza. Têm suas atividades físicas limitadas. Segundo os versos de Vinicius, “andam com os olhos no chão, pedindo perdão por existir e incomodar.” São impotentes, não tendo a quem pedir socorro, quando se aproximam do abismo da depressão. Esse grupo avoluma-se nas aglomerações modernas. A longevidade aumenta e não se morre mais no apogeu da existência ou na flor da idade. Nestes casos, a partida era sentida e pranteada. Na velhice, o óbito poderá deixar um alívio para alguns.
Os solitários de hoje são majoritariamente os idosos, órfãos de filhos vivos, esquecidos pela família. Não raro, os descendentes e familiares moram longe, acarretando dificuldade financeira e de deslocamento para visitá-los. Ou, porque atrapalham a ânsia de lazer e consumo que predomina na nas gerações atuais. Quem vai querer um velho incomodando um fim de semana de festas, comemorações e programas? E o idoso fica em casa, geralmente pequena e sem muitos recursos. Onde estão os amigos do ancião? Muitos, doentes; vários já partiram. E os recursos para passeios e diversão? As aposentadorias são parcas, mal dão para comprar comida e remédios. Os filhos ajudam? Provavelmente. Nem sempre com o suficiente. Há outras prioridades, como levar as crianças a Disney, esquiar na Europa, divertir-se em casas de campo ou de praia, bem como frequentar restaurantes badalados. E assim, o final de muitos idosos é marcado de Alzheimer, confinamento em algum asilo, tristeza com a presença domiciliar de um cuidador impaciente ou improvisado.
A solidão cresce com a diminuição das energias, o desaparecimento dos círculos de amizade. Em muitas cidades brasileiras há ainda o agravante da violência e insegurança, impedindo o hábito de um contato assíduo. Os vizinhos cuidam cada um de sua casa, vida, família etc. Alguns solitários se apegam a animais. Alfredo tinha um louro e um bichano que estimava. Quando morre o companheiro de bico ou quatro patas, a dor é equivalente à perda de um parente. O idoso sente-se descartado por uma sociedade, que não previu um lugar para ele, por uma família que progressivamente o abandona e esquece. É necessário tornar-se mais humano, aprendendo a povoar a vida do semelhante. Cristo prometeu aos apóstolos: “Não vos deixarei sozinhos” (Jo 14, 15). E acrescentou: “Estarei convosco todos os dias” (Mt 28, 20). O cristianismo é comunhão, pois é trinitário. Solitários não, e sim solidários somos chamados a ser! Isso implica em estar atento ao outro, à sua tristeza e dor, a seus anseios e alegrias. Na solidão, o ser humano mergulha dentro de si mesmo numa autodefesa contra o isolamento a seu redor. Toma consciência de sua pouca importância no mundo externo. Mas, Deus assegura-nos sua permanência a nosso lado: “Não temas, porque eu estou contigo” (Is 41,10).

Ciência ou crença

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Já faz algum tempo que Rubem Alves, em “Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras” (Editora Brasiliense, 1981), nos advertiu: “O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um resultado engraçado (e trágico) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. Quando o médico lhe dá uma receita você faz perguntas? Sabe como os medicamentos funcionam? Será que você se pergunta se o médico sabe como os medicamentos funcionam? Ele manda, a gente compra e toma. Não pensamos. Obedecemos”. E isso vale não só para a medicina e os seus profissionais/“cientistas”. “Os economistas tomam decisões e temos de obedecer. Os engenheiros e urbanistas dizem como devem ser nossas cidades, e assim acontece”, ainda anota o grande educador. E o mesmo se dá com o direito e os seus “juristas”, acrescento eu.

Tendo a concordar em parte com Rubem Alves. Não acredito que o cientista – e, sobretudo, o suposto cientista, que apenas arrota um “conhecimento” sustentado por um diploma – seja uma pessoa que necessariamente pensa melhor do que as outras. Costumo, quando recebo uma receita, fazer algumas perguntinhas. É sempre bom saber como um remédio ou uma vacina funcionam.

Todavia, acredito que hoje estamos vivendo um mundo perigosamente ao contrário, onde se dá palpite, passando bem longe do senso comum disciplinado e refinado, sobre quase tudo que deveria ser tratado “cientificamente”.

Quantas vezes não estamos em uma festa barulhenta, com quatro doses de uísque já animando o juízo, e alguém, invariavelmente leigo em direito, vem com essa: “E o Supremo, hein?”. E começa o rosário de afirmações que não guardam base senão nas crenças da própria pessoa ou da sua “bolha”, para usar a expressão consagrada por Peter Sloterdijk (1947-). Hoje mais do que nunca, como lembra Aécio Cândido em “Conhecimento, conhecimentos – como sabemos o que sabemos” (Edições UERN, 2021), “as pessoas organizam sua percepção e a comunicação desta segundo algumas matrizes de raciocínio, formadas pelo conjunto daquilo em que elas acreditam e têm como assertivas verdadeiras. As pessoas possuem crenças religiosas, políticas e morais; elas estão impregnadas de alguns medos ilógicos e de muitas certezas duvidosas. Ao comunicar um ponto de vista, elas expressam essas convicções. Na interlocução, em razão da empatia criada e por outras razões, nem sempre se analisa criticamente o que é dito”.  

Com a Internet, o que era um papo de bêbado chato, tornou-se um problema cósmico. Não se estuda o assunto; não se lê acerca dele, sequer. E “viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”, já alertava a Mafalda do cartunista Quino (1932-2020). Repetem-se as asneiras de bolhas cheias de “idiotas da aldeia”, como dizia Umberto Eco (1932-2016), dando e recebendo mais do mesmo, insuflando crenças e preconceitos que passam longe da verdade. As leis da imitação, de Gabriel Tarde (1843-1904), no que têm de mais negativo, jamais encontraram terreno tão fértil como no esgoto iletrado do Twitter, WhatsApp, Telegram e assemelhados.  

Não acredito que o especialista seja infalível. Longe disso. Mas acho que devemos ser mais conscientes nesse ponto. Devemos ser mais “filosóficos” nos sentidos leigo e técnico desse termo. Saber se o raciocínio que estamos recebendo/tendo é mesmo minimamente científico ou não passa de uma crença. José Souto Maior Borges, em “Ciência feliz” (Editora Noeses, 2021), afirma que “nenhum sistema científico – refiro-me às ciências especializadas, ditas naturais e culturais – pode ser construído sem o sustentáculo da Filosofia”. E complementa Inês Lacerda Araújo em “Introdução à Filosofia da Ciência” (Editora UFPR, 1998): “A ciência, o conhecimento científico, seus métodos, suas explicações e, ainda, os resultados da pesquisa aplicada, marcam nossa época. A filosofia, como referencial necessário do pensamento crítico, tem na ciência um tema fundamental. Cabe ao filósofo pensar sobre que tipo de conhecimento é o conhecimento científico, seu alcance e validade”.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

O X da questão

Na imagem, o ministro do STF Alexandre de Moraes e o empresário Elon Musk
Na imagem, o ministro do STF Alexandre de Moraes e o empresário Elon Musk.

Por Kakay.

“No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo.” –Pessoa, na pessoa de Bernardo Soares, “Livro do Desassossego”.

Chega a ser engraçado ver parte da mídia e alguns advogados criticando a decisão do ministro Alexandre de Moraes de determinar a suspensão do X (ex-Twitter) no Brasil. Não se sabe se é o eterno complexo de vira-lata, ou se é simplesmente uma implicância com o Supremo Tribunal e com o ministro Alexandre. Uma coisa parece certa: quem a condena, não leu ou não quis entender o que o ministro determinou.

É importante ressaltar que, em 28 de agosto, ele determinou à companhia que, em 24 horas, indicasse quem seria o responsável por ela no Brasil. Parece evidente que uma empresa não pode funcionar no país sem ter um representante legal. E, muito menos, pode, simplesmente, optar por não cumprir as ordens do Poder Judiciário.

No caso concreto, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, em manifestação técnica e correta, opinou favoravelmente à suspensão e deixou explicitado: “Ordem judicial pode ser passível de recurso, mas não de desataviado desprezo. O acatamento de comandos do Judiciário é um requisito essencial de civilidade e condição de possibilidade de um Estado de Direito”.

E o ministro Alexandre, ao ordenar a suspensão, fez questão de consignar expressamente: “Até que todas as ordens judiciais proferidas nos presentes autos sejam cumpridas”. Ou seja, um biliardário trata o Brasil como se fosse o terreiro dele e ainda encontra eco em parte da imprensa e da população.

O que está por trás dessa correta e necessária ordem do ministro do Supremo é o verdadeiro pano de fundo do que o aplicativo fazia no país. A plataforma foi usada para incrementar a tentativa de golpe de Estado no 8 de Janeiro.

O ministro ressaltou a instrumentalização das redes sociais “para divulgação de diversos discursos de ódio, atentados à democracia e incitação ao desrespeito ao Poder Judiciário nacional”. E afirmou que “o ápice dessa instrumentalização contribuiu para a tentativa de golpe de Estado e atentado contra as instituições democráticas ocorrido em 8 de janeiro de 2023”. Salientou, ainda, que outras empresas cumpriram devidamente outras ordens de bloqueio.

O atrevido Elon Musk, controlador do X, em solene desprezo às leis brasileiras, testou a seriedade do nosso Poder Judiciário. E agiu bem o relator, inclusive ao submeter a decisão monocrática imediatamente ao colegiado da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. A Turma, por unanimidade, seguiu o voto do ministro Alexandre.

Na verdade, o que está em curso é uma campanha orquestrada pela extrema-direita –e Elon Musk é um instrumento dessa empreitada– que visa a desestabilizar o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal. A cúpula da tentativa de golpe do 8 de Janeiro sabe que que o cerco está se fechando. Se os 221 já julgados –ninguém importante na organização criminosa– foram condenados de 12 a 17 anos de cadeia, os que faltam –financiadores, políticos, militares e a família Bolsonaro– fatalmente, serão punidos com penas de mais de 20 anos. O plenário do Supremo já enfrentou as questões fundamentais daquela fatídica tentativa de destruir a democracia brasileira. Agora, é questão de tempo para julgar os líderes.

Com o ar ficando rarefeito, o desespero faz com que a destruição da reputação do Supremo e do ministro Alexandre passe a ser a única fonte de defesa. Assim como o Judiciário, com o apoio da sociedade organizada, resistiu ao golpe, resistiremos a esses aproveitadores e golpistas internacionais. Este é o X da questão, eles não esperavam uma reação à altura. Blefaram e perderam.

Reporto-me a Torquato Neto, no livro “Essencial”, com o poema “Cogito”: “Eu sou como eu sou Vidente E vivo tranquilamente Todas as horas do fim.”

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Naquela mesa estão faltando eles

Desastre em Mariana: as vítimas não foram chamadas à mesa de negociação!
Arte: Kiko – Desastre em Mariana: as vítimas não foram chamadas à mesa de negociação!

Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Quando ocorreu a tragédia de Mariana, o mundo inteiro ficou sensibilizado. A irresponsabilidade, a ganância e a falta de planejamento, mais uma vez, patrocinaram um desastre de proporções dantescas. Todas as pessoas com algum viés humanista e autoridades que têm responsabilidade pública se uniram, ainda que, muitas vezes, em silêncio, numa solidariedade que parecia espontânea. O que se esperava era que esse sentimento pudesse resultar em ações efetivas em prol dos atingidos pela  catástrofe.

Passados quase 9 anos, as vítimas continuam suplicando, quase como heróis anônimos, à procura de um acordo que possa minimizar as dores, as perdas e a tristeza. Óbvio que nada pode compensar, verdadeiramente, o sofrimento da perda de um ente querido, dos lares destroçados e da terra que um dia sediou sonhos. Mas algo teria que ser feito.

Um TTAC – Termo de Transação e Ajustamento de Conduta-, para tentar uma reparação minimamente digna, foi firmado entre as 3 mineradoras responsáveis pela tragédia, a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. E, pasmem, um escândalo dentro do escândalo: as vítimas não foram chamadas à mesa de negociação!

Poder-se-ia imaginar essa atitude das mineradoras, que não se preocuparam com as vítimas antes do desastre. Mas um governo que tem compromisso social, de profunda identificação popular e que tem uma conexão real com o povo pobre e sofrido, virar as costas para mais de 600 mil atingidos é tão triste quanto surpreendente.

Dentre os que têm o direito de sentar à mesa estão os ribeirinhos, os grupos quilombolas e os povos originários. Além de 46 municípios atingidos. Qual a legitimidade de um acordo no qual os principais interessados não estão sentados à mesa? Será que a União tem a pretensão de falar por todos eles? Será que julgam que os quilombolas, os povos originários, os ribeirinhos não têm capacidade de se fazerem representar? Esse cenário em uma gestão popular é muito frustrante.

Mas a prepotência não tem limites. Ousaram financiar, com 6 milhões de reais, o IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração – para bater às portas do Supremo Tribunal para alegar, supostamente em nome de uma estranha soberania nacional, que os municípios não teriam legitimidade para pleitear seus direitos junto ao Tribunal Inglês e contra uma empresa inglesa. É quase um crime perfeito. Não chamam para a mesa de negociação as 600 mil vítimas, numa prepotência que envergonha quem tem sentimento humanitário, e querem impedir a representatividade dos 46 municípios de se fazerem representar no país que sedia a mineradora BHP, a Inglaterra. Um jogo arquitetado. Cruel.

Ao registrar a perplexidade pela falta do estado da Bahia à mesa de negociação – afinal, 5 municípios baianos se habilitaram no processo por se sentirem atingidos e estudos mostram os graves prejuízos em Abrolhos -, é bom lembrar que ainda é tempo do povo baiano se fazer representar. Como baiano por adoção, estarei sempre questionando porque só Minas Gerais e Espírito Santo estão devidamente habilitados.

Agora, anuncia-se, com pompas e gala, um acordo que será apresentado como o maior do mundo. Os políticos e governantes darão entrevistas para festejarem um montante grandioso de indenização. O Judiciário, que quer anunciar que a vitória foi em solo brasileiro e não na jurisdição inglesa, também estará na foto. E, lógico, as mineradoras que sentam, com naturalidade, à mesa com os poderosos.

Será que não valeria uma consulta aos destinatários reais do acordo? Ou que deveriam ser? É claro que milhares irão se habilitar para receberem uma quantia predeterminada por cada atingido. Nenhum deles têm condições de abrir mão desse dinheiro, nós entendemos. Mas será que é assim que se faz cidadania? É assim que se fortalecem os movimentos sociais? É assim que demonstramos respeito ao povo brasileiro? É uma decepção essa postura. E me parece longe de representar um governo popular.

Socorro-me de Torquato Neto, no Poema do Aviso Final:

“É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade se afirmará
a machadadas.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Adélia Prado e poesia teológica


Padre João Medeiros Filho

Em 1965, de retorno da Bélgica ao Brasil, no início de minha vida sacerdotal, li alguns poemas de Adélia Prado. Influenciou-me também uma crônica de Carlos Drummond, publicada em 1975, sobre a poetisa de Divinópolis (MG). Assim afirmou: “É lírica, bíblica, existencial. Faz poesia com a fé e oração.” Ao longo dos anos, fui conhecendo e saboreando os versos adelianos, cuja autora pode ser considerada uma das maiores poetisas brasileiras da atualidade. Decorridos tantos anos, não tive a alegria de conhecê-la pessoalmente. O que mais me encanta em sua poesia é a capacidade de harmonizar a beleza existente no mundo com a profundidade inefável do mistério divino. Louva a corporeidade de Jesus e desvela o mistério da Encarnação, assumido por Cristo, “o Verbo feito carne” (Jo 1, 14). Adélia, em versos inspirados pelo Transcendente, revela que o poema ao irromper à mente, há de obedecer Àquele que é o Senhor da Palavra. Não há como fugir. E o que brota em forma poética é pura vida, fome e sede de graça, louvor e gratidão.

Adélia declara esse apetite vital que a possui, ao escrever: “Não quero a faca nem o queijo, e sim a fome.” Dessa fome pela vida em todas as suas dimensões constitui-se a sua obra poética. E o que escreve, sendo fruto de especial inspiração, não pode desobedecer ao Eterno. A poesia da escritora mineira é semanticamente profética. E o profeta, ao ser tocado pelo Espírito, tem de anunciar as coisas que lhe foram reveladas pelo Altíssimo. E ainda que fale na primeira pessoa, ele expressa suas palavras na terceira: “Oráculo do Senhor”, “Assim diz Javé” etc. Deixa evidente que é Deus quem fala através dele. Isto pode ser sentido na poesia adeliana.

Assumindo-se publicamente católica e praticante, a poetisa traz para dentro de sua obra – tanto em poesia quanto na prosa – a experiência de sua fé e intimidade com o mistério de Deus, movida pela mística e espiritualidade do cotidiano de escritora. Não é a poesia a fusão de todas as expressões artísticas, inclusive da arte da Palavra? Ela não precede à filosofia, estimulando a razão, a partir da expressão da beleza, a qual permite à finitude tocar o Infinito? A escritora mineira não cessa de exaltar em seus poemas o ser humano na busca incessante de comunhão com o Sagrado ou Divino.

Toda a poética adeliana é permeada por essa visão sacra da existência humana, sacramento e templo de Deus. Todos os que admiram a poetisa de Divinópolis foram também agraciados com as duas premiações a ela outorgadas, em junho passado: os Prêmios Machado de Assis e Camões. O primeiro é o mais importante das letras no Brasil e o segundo, o maior reconhecimento no âmbito da literatura em língua portuguesa. Do alto de seus oitenta e oito anos, a vate mineira está prestes a publicar um novo livro, cujo título é marcadamente bíblico: “Jardim das Oliveiras”. Entre 1987 e 1994, viveu um período de recesso e retiro, rompido com a publicação de “O homem da mão seca”.

Em Adélia é desvelada a teologia poética, essa área de estudos e escritos na qual a ciência da religião interage com a estética, em todas as suas formas: literatura, teatro, artes plásticas, música etc. Em Adélia, consagrou-se aquilo que se convencionou chamar entre os teólogos cristãos de “teopoética”. E não é por demais afirmar que essa forma de saber científico recebe assim o maior incentivo possível para seguir abrindo e alçando voo, tangida pelo Espírito que sopra onde quer, proclamando as belezas da vida e da criação divina. O reconhecimento da excelência da escrita adeliana glorifica as letras, mas também a fé de todos aqueles que, lutando com a finitude e a fragilidade de sua existência, creem na beleza e no encanto de invocar a todo momento o mistério maior com o nome de “Abba-Pai” (Rm 8, 15). “Entre as mais nobres atividades do espírito humano estão as artes [inclusive a poesia]. Elas tendem a exprimir a infinita beleza de Deus” (Sacrossantum Concilium, nº 122). “Ó Senhor, eu cantarei eternamente a tua grandeza, de geração em geração. Anunciarei com meus lábios a tua fidelidade!” (Sl 89/88,1).