A política, as hienas e o tabuleiro de xadrez

Quem, no futuro, terá prestígio e estômago para dividir a mesa com as hienas?

Penso que a discussão acirrada que se dá, neste momento, em vários grupos, sobre se o  PT perdeu as eleições municipais, tem seu valor para quem faz política partidária. Para a sociedade como um todo e para o cidadão, o buraco é mais embaixo. Independentemente de partido, o que se constata é que o mundo deu uma guinada para valores identificados com a direita e, até, para a extrema direita. As pessoas perderam, em boa parte, o sentido de solidariedade e de compaixão que ainda mantinham – ou mantêm?- certa esperança na utopia de um mundo mais igual e justo.

Hoje, ser professor é considerado, por parte dos “influenciadores do pensamento”, um retumbante fracasso. Se você não empreendeu e não acumulou bens e dinheiro, vai ser expelido, expulso do rol dos políticos que podem estar à frente de um projeto de governo. E as dificuldades vão muito além: as pessoas se desumanizaram e a violência, cada vez mais, domina o dia a dia. Não é só a violência física que mata, rouba e estupra. É a de gênero, de raça, de cor e de religião. Que mata a alma, rouba a esperança e estupra o futuro de uma nação.

Até entendo quem faz a conta da quantidade de  prefeituras que cada partido elegeu. Mas, sinceramente, acho razoavelmente desimportante. Os partidos, em regra, têm dono e, salvo raras exceções, nenhuma identidade ideológica. É um agrupamento de pessoas com interesses muito mais próximos de vocação de negócio e de poder do que de preocupação com princípios que possam defini-los.

Lembro-me que, certa vez, fui procurado por 2 candidatos que estavam às portas de serem eleitos. Um agoverno de estado e outro a deputado federal. Ambos queriam que eu os apresentasse a um importante político de direita. Influente e experiente. Ao propor a apresentação, esse político foi pragmático: “estou viajando agora e só tenho tempo de receber um deles hoje. Chame o candidato a deputado”. Perplexo, perguntei se não seria melhor ele falar primeiro com o futuro governador. Ele me explicou, com a visão prática que chega a ser palpável que, na divisão do bolo partidário – do dinheiro, da grana, do vil metal -, o deputado pesa mais na balança. E a gente discutindo quem ganhou mais prefeituras.

Ou seja, muito mais preocupante e relevante do que entender os indecifráveis caminhos que levam às composições partidárias na hora da disputa eleitoral,é compreender os estranhos caminhos por onde caminha a humanidade. Claro que é importante para os analistas políticos entender, ou tentar entender, porque o PT abriu mão de lançar candidatos em cidades emblemáticas – São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, entre outras.

Porém, mais importante e fundamental é colocar na mesa para o cidadão comum, que vota, o peso das emendas, do orçamento secreto, da burla ao sistema de cotas para mulheres e negros, da força colossal do dinheiro do fundo partidário, ou seja, das questões práticas que efetivamente contam para a grande maioria dos políticos. Que foram e serão eleitos com as mãos na massa desse pragmatismo político partidário. Mas essa engrenagem foge, na grande parte das vezes, da capacidade de observação dos estudiosos políticos.

Existem outras preocupações mundanas que nos afligem e que, prazerosamente, nos dedicamos a palpitar como analistas de boteco. Dentro de uma normalidade, o Lula, não necessariamente o PT, vai ser reeleito. E com o apoio ostensivo ou envergonhado da grande maioria dos prefeitos e políticos que “derrotaram” o PT nas  eleições municipais. O xadrez já mexe suas pedras. Mesmo a direita dita civilizada já avança com seus peões, bispos e torres, tudo dentro de um acordo que não passa por discussão partidária, por ideologia e, o pior, muitas vezes, a ética não entra no tabuleiro.

E aí nos restam angústias mundanas. Em 2030, com Lula fora do jogo – por já ter sido reeleito outra vez -, qual peça vai representar o humanismo e a decisão de fazer o enfrentamento da injustiça e da desigualdade social? O Lula teve e tem. Quem, no futuro, terá prestígio e estômago para dividir a mesa com as hienas?

Lembrando-nos do grande Eça de Queiroz:

“O orgulho é uma cerca de arame farpado que machuca quem está de ambos os lados.

É o coração que faz o caráter.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Dia de Finados

Padre João Medeiros Filho
Numa solenidade única e especial, a liturgia celebra aqueles, que marcados com o sinal da fé, partiram para o abraço definitivo de Deus. Nisso, a Igreja dá-nos um grande exemplo de unidade, comunhão e fraternidade, reunindo numa só celebração santos e pecadores. Não há privilegiados nem desprezados. A Igreja deseja-nos conclamar para nossa condição de seres imortais, perfilhados pelo amor divino e pela graça santificante do batismo. No entanto, temos medo da morte. Há dificuldades em aceitá-la como um ato natural da existência. A morte é a porta de entrada da Vida, sem ela não se poderá desfrutar da paz em plenitude.
Como cristãos, cremos num Deus Pai, que vela por nós e nos recebe com carinho, no final de nossa caminhada. Tornou-nos seus filhos, resgatados pelo sangue de Cristo, sinal ainda maior de sua inefável ternura e misericórdia. Diariamente, somos alimentados com suas bênçãos e graças, manifestação de sua amorosa presença em nossa caminhada terrena. Tudo é fruto do Amor. Este não morre, gera vida e diferentes formas de viver. Deste modo, nossos entes queridos não desaparecem, encontram em Deus outra maneira de ser.
A Solenidade de Finados é um convite a lembrar e homenagear aqueles que passaram por nossos caminhos, presente precioso que o Senhor nos deu. Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta “tem razões que a razão desconhece”, identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade, que o espaço e o tempo sequer imaginam. Ela é a marca do eterno, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, quebra os laços que nos prendem e liberta das prisões. A fé conduz-nos ao Amor. E este não morre. “É mais forte que a própria morte. E quem não ama, permanece na morte” (1Jo 3, 14). Santo Agostinho repetia: “ninguém ama sem ter fé nem acredita sem amar.”
A Liturgia de Finados é a celebração da fé que nos une e consola. Por isso, devemos reverenciar aqueles que continuamos a amar. O vazio temporal é preenchido pela força da esperança cristã. A Eucaristia coloca-nos numa atitude de escuta silente daqueles que marcaram nossa história. O Dia 2 de novembro é uma data de encontro familiar, em que nos reunimos para ouvir dentro da alma aqueles que nos ajudaram a compreender e a viver melhor o dom da vida. É metaforicamente nossa celebração. Sofrimentos, decepções, tristezas, angústias, derrotas e perdas têm sabor de morte. Mas, Deus nunca nos deixa sozinhos, relegados ao desespero. “Eu te chamei… e te peguei pela mão” (Is 42,6). Assim, podemos verificar na história do povo bíblico. O apóstolo Paulo afirma que não há proporção entre os padecimentos deste mundo e a glória futura. Deus reserva para cada um de nós o inimaginável, que supera nossas dificuldades e dores.
Em Finados celebra-se o Amor. Primeiramente, o de Deus por nós; em segundo lugar, o de nossos entes queridos para conosco e vice-versa. Não nos inquietemos. Apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé, haveremos de descobrir meios de permanecer presentes e unidos. Os discípulos de Jesus Cristo não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes, quando oportuno, a Sua face. Assim, os que nos precederam na Casa do Pai, saberão como nos tocar e responder as nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva.
A Solenidade de Finados é, portanto, a proclamação da certeza de uma fé que nos consola e fortalece. Nesse dia, dedicamo-nos especialmente a reverenciar a memória daqueles que amamos, apesar de fisicamente ausentes. O vazio corpóreo e cronológico é preenchido pela força da graça cristã. A liturgia da Igreja conclama-nos a uma atitude de comunhão com aqueles que marcaram nossa vida. A Eucaristia dessa data propõe-nos um encontro transcendente, em que nos reunimos para sentir no íntimo da alma aqueles que – hoje no reino celestial – nos ajudaram a viver o dom da existência. Para Santo Agostinho, “a morte é a aurora da eternidade e nos faz semelhantes a Deus.” Assegura-nos o Mestre “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11, 25).

Quem só direito sabe

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Tenho me batido, aqui e na vida, contra aquilo que chamo de “mito da especialização”. Como já alertava Rubens Alves, em “Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras” (Editora Brasiliense, 1981), circunscrevendo o nosso pensamento e induzindo o nosso comportamento, “a especialização pode transformar-se numa perigosa fraqueza”.

No direito, isso tem até um toque especial e curioso.

Como muitos já devem ter notado, historicamente, os cursos jurídicos no Brasil sempre foram formadores de bacharéis cujas vocações, ao final dos estudos, acabavam sendo direcionadas para diversas outras profissões além daquelas consideradas estritamente jurídicas (magistratura, ministério público, advocacia etc.). Era – e ainda o é – uma característica do direito. 

Na verdade, segundo Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), “a tantos aspectos negativos de que têm sido acusados os cursos jurídicos, em sua unilateralidade ou em sua preponderância – e que devem ser historicamente situados –, há que juntar um aspecto positivo quase sempre esquecido. É que tais cursos forneceram, como era de sua finalidade, conhecimentos que permitiam a atividade ligada ao Direito, mas forneceram, paralelamente – e, até o fim da fase de que nos ocupamos, unicamente –, aqueles conhecimentos, ainda que em nível rudimentar, que seriam fornecidos, adiante, por centros especializados de estudos, e, bem mais adiante, pelas Faculdades de Filosofia, isto é, o saber universal, humanístico, filosófico – com alguma licença nessas qualificações. De sorte que os bacharéis não se habilitavam apenas ao exercício profissional, mas às letras, ao jornalismo, à política, ao magistério, sem falar nas funções públicas. Não espanta que nos cursos jurídicos encontrassem eco especial as atividades mencionadas, de que ali se fizesse o noviciado, que tornavam estes cursos focos de ideias e de irradiação de campanhas, não esquecendo o papel, que tiveram, de unificadores da cultura, pela aproximação de elementos oriundos das mais distantes e diversas regiões do país, a que retornavam muitos com as marcas dessa formação”.

Talvez seja por isso que o folclore jurídico tenha consagrado o ditado “quem só direito sabe nem direito sabe”, cuja autoria muitos atribuem ao grande Pontes de Miranda (1892-1979), com o qual tendo deveras a concordar.

Mas se no passado essa “generalidade” do direito no Brasil era mais intuitiva pela própria necessidade de quadros profissionais, acho que hoje essa tendência do direito de ir além da sua especialização vem ganhando ares sistemáticos e espaço formal na academia. De fato, no direito, uma das atuais “coqueluches” é a interdisciplinaridade, aqui entendida, no seu sentido lato, como a interação, nos mais diversos níveis de complexidade (multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade em sentido estrito e transdisciplinaridade), das áreas do saber, visando à compreensão e ao aperfeiçoamento da realidade que nos cerca. Nas últimas décadas o estudo interdisciplinar do direito tem ganhado institucionalmente espaço na academia e na literatura jurídica em geral, sobretudo nos EUA, com movimentos/disciplinas do tipo “law and society”, “law and economics”, “critical legal studies”, “law and literature”, “law and film”, dentre outros. E, mesmo que de forma não tão organizada como nos EUA, no Brasil, nos cursos de bacharelado e de pós-graduação, aos professores e estudantes é recomendado trabalhar toda e qualquer disciplina jurídica curricular em interação com os demais ramos de direito, assim como interagir com as demais ciências, tais como a filosofia, a política, a economia e a sociologia.

Seguindo essa boa tendência da interdisciplinaridade, eu faço a minha parte. Sempre misturo as enfadonhas tecnicalidades do direito com a filosofia, a literatura e o cinema, entre outras sabenças. E você, caro bacharel, tem se lembrado de fazer a sua?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Renúncia imoral: acinte à soberania nacional

Barragem de Mariana vistoriada pelo Ibama
Trecho atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Mariana (MG).
Por Kakay.
“A verdade é inconvertível, a malícia pode atacá-la, a ignorância pode zombar dela, mas, no fim, lá está ela“.
–Winston Churchill.
Está sendo muito interessante, emocionante até, acompanhar a cobertura de boa parte da mídia do julgamento em Londres sobre o crime ocorrido há 9 anos e que resultou na maior catástrofe ecológica do mundo. A tragédia de Mariana não foi um acidente. Foi um ato criminoso. Claro que sempre haverá, na imprensa, quem represente os interesses das mineradoras. Elas são fortíssimas, e gastar com a mídia é muito mais barato do que indenizar as vítimas e reparar o mal causado ao meio ambiente. A gente, infelizmente, sabe que faz parte do jogo.
Algumas questões de fundo independem de conhecimento jurídico para quem está acompanhando o processo. Perguntas que devem ser respondidas, ou que ficarão como espadas nas nossas cabeças: Por que, em 9 anos, as vítimas não foram, devidamente, indenizadas? Os danos são inquestionáveis e, evidentemente, não há dúvidas sobre eles. Da mesma maneira, há um consenso no sentido da necessidade da reparação. É fato que 19 pessoas morreram, que as famílias perderam casas, plantações e acesso ao rio que significava quase tudo: vida, sustento, lazer, culto, magia e história. Foram despejados 43,8 milhões de m³ de rejeito no meio ambiente.

Famílias ribeirinhas viram suas vidas serem levadas junto à lama. Os quilombolas e as populações originárias foram tragadas pela violência do rompimento criminoso da barragem. Até hoje, os efeitos se estendem e acompanharão esses cidadãos brasileiros por todo o sempre. Porque, depois de todos esses anos, anuncia-se, exatamente quando começa o julgamento em Londres, um grande acordo entre as mineradoras, os governos Federal, de Minas Gerais e Espírito Santo, sem a presença das vítimas, na mesa de negociações? É também estranho que o Estado da Bahia, diretamente atingido pela lama, inclusive

no santuário de Abrolhos, esteja de fora da negociação. Quem teve o poder de barrar a presença dos representantes de 620 mil atingidos, quais sejam os ribeirinhos, os quilombolas e as populações originárias? Em um governo popular, essa mesa está manca e não para em pé. Como já escrevi anteriormente: “Naquela mesa estão faltando eles”.

É óbvio que não cabe criticar a opção daquele que sofreu a dimensão da tragédia em receber uma reparação nesse acordo. Quem ficou 9 anos sem ser indenizado poderá, é claro, optar por receber muito menos do que teria direito. Cabe a todos nós respeitarmos. O que não podemos é nos calar diante das questões que não têm respostas: seria possível usar a força das mineradoras para obrigar os aderentes ao acordo a desistir do processo na Inglaterra? é possível aceitar, sem discutir, pois não estavam à mesa de negociação, valores que foram tramados pelos infratores? essa obrigação de

renunciar à discussão, de abrir mão do direito à indenização na Inglaterra, não seria imoral e significaria o abuso da força contra aquele que ficou 9 anos sem sequer ser chamado à mesa de negociação? É importante frisar, por tudo que acompanhei, que a AGU (Advocacia Geral da União), representada por um ministro probo e justo, não parece concordar com essa exigência. Mas e as mineradoras e os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo?.

Não queremos, obviamente, atrapalhar o recebimento de qualquer montante por parte dos que foram solenemente desprezados, especialmente pelas mineradoras. Porém, cuidar de alertar que não pode haver abuso por parte dos causadores diretos da tragédia e nem dos Estados que se beneficiam do acordo.

No caso concreto, representamos, com muito orgulho, as associações dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores e Produtoras Rurais da Agricultura Familiar da Comunidade Quilombola de São Domingos Sapê do Norte, Conceição Da Barra (ES) e dos Remanescentes dos Quilombos de Produtores Rurais da Agricultura Familiar e Pesqueira da Comunidade Morro Da Onça – Sapê do Norte, Conceição da Barra (ES). Por isso, não podemos admitir que, depois de serem tragados pela lama e pela água, sejam, agora, atingidos pela prepotência do poder econômico.
Imagine a hipótese, desumana, de uma estratégia de não fazer o acordo, por 9 anos, sem sequer sentar à mesa com os verdadeiros representantes dos atingidos e, depois, quando se vislumbra uma luz na ação proposta na Inglaterra, mudar o rumo e fazer um acordo no Brasil, sem discussão com as vítimas e exigir que abram mão do direito que será decidido na Inglaterra. Isso sim é dar um drible na soberania nacional. Isso sim é desprezar o Poder Judiciário brasileiro.

Não estamos falando da manobra odiosa só em relação às vítimas, pois elas nunca foram levadas em consideração. Salvo agora, como estratégia para diminuir o prejuízo. Mas é um verdadeiro acinte à própria soberania nacional. O acesso à Justiça deve ser tratado como um direito indisponível no caso concreto. Afinal, as vítimas não foram ouvidas e estão sendo levadas a aderir. Lamentável. Remeto-me à oração do mestre Roberto Lyra Filho, que ele fez para meu convite de formatura na UnB (Universidade de Brasília) em 1981:

“Procurai a justiça social e achareis o direito, não como produto entortado pelos interesses e conveniências de privilegiados contra oprimidos, mas na sua fonte legítima: o sufrágio livre e universal do povo, que não reconhece tutores; que abomina as dominações manhosas ou violentas; que produz a riqueza e deve participar, equitativamente, dos seus frutos; que determina a única segurança verdadeira, com base no exercício da liberdade coletiva e no respeito às garantias individuais”.

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O feminicídio e os idiotas convictos

ARTE KIKO – Qual o impacto da completa impunidade na vida pública da extrema direita?

A banalização da  política impregnou o mundo de idiotas convictos. Quando a extrema direita, em um movimento concatenado mundialmente, optou pela estratégia da violência e do ódio como modo de ação, usando a mentira como método, os pilares do humanismo ruíram mundo afora. No  Brasil, o que se viu com a consolidação do bolsonarismo foi algo espantoso. A agressão às mulheres, aos negros, aos quilombolas, aos pobres, aos povos originários e aos homossexuais, vinda do próprio Presidente da República, à época  Jair Bolsonaro, foi mais do que uma opção política. Foi rigorosamente uma maneira de subjugar aqueles que ainda optam pelo debate, pela ética e pelo respeito aos que pensam diferente.

Em um momento triste da política nacional, o então Presidente desdenhou da  pandemia: imitou brasileiros morrendo com falta de ar, riu da dor da morte afirmando que não era coveiro, como também desdenhou dos familiares e amigos de mais de 700 mil brasileiros que morreram pela covid. E nada aconteceu com ele e com seus asseclas. Ao contrário, vários dos corresponsáveis pela tragédia – que resultou em quase 1 milhão de mortos – são hoje candidatos aos mais diversos cargos, com o apoio declarado do bolsonarismo raiz. Posicionar-se contra a ciência, a favor da violência e em sentido oposto ao Estado democrático de direito rende muito dinheiro e voto.

A reflexão que se faz necessária: qual o impacto da completa impunidade na vida pública da extrema direita? Os bolsonaristas não foram responsabilizados pelos crimes da pandemia. Resolveram dobrar a aposta. Um bando de seres escatológicos saiu de algum esgoto e se oferece, à luz do dia, com propostas que têm forte apelo político entre a extrema direita.

Agora, um jovem aspirante aprefeito de uma importante capital, Fortaleza, faz um apelo criminoso e patético sobre um dos maiores dramas atualmente no Brasil, o feminicídio: “Ah, mas o feminicídio, aqui no Brasil, tantas mulheres morrem por dia. Tá. Dane-se. E quantos homens morrem por dia?”.

As palavras do candidato são exatamente na mesma linha do seu líder Jair Bolsonaro. Sem nenhum subterfúgio. Ofensa clara e direta. E ele e seus seguidores sabem que não serão responsabilizados. Ao contrário, passa a ser um seguidor privilegiado por ter a “coragem” de fazer apologia ao crime. Os machistas bolsonaristas certamente passaram a ter orgulho de tamanha teratologia.

Essa manifestação não pode simplesmente ser ignorada pela Justiça Eleitoral e Criminal. Há muito pouco tempo, o candidato da extrema direita em São Paulo teve a ousadia de apresentar um  laudo falso contra o Boulos, no apagar das luzes do primeiro turno, por saber que ficaria impune e que não daria tempo de ser desmascarado. Nada aconteceu e o modus operandi do engodo e do uso criminoso das mentiras e das sandices vai se tornando a regra.

O acúmulo das ações criminosas sem nenhum enfrentamento e responsabilização levou à tentativa de  golpe de 8 de janeiro. A Democracia resistiu, mas ainda ronda uma nuvem espessa que nos tira o ar e que nos impede de ter uma opção clara pelo Estado democrático de direito. A investigação sobre a tentativa de golpe está na hora de ser finalizada.

A situação, embora grave, comporta certa simplicidade. Basta responsabilizar os envolvidos pelo 8 de janeiro. Não somente as buchas de canhão, mas os que tramaram o golpe. Depois, ainda é tempo de responsabilizar os crimes da pandemia. E aí, aos poucos, enfrentaros fascistas menores, que vivem da mentira e dos descalabros contra o Estado democrático de direito. Esse é caminho. Parece tão óbvio que ninguém entende porque não se faz.

É sempre bom relembrarmos o lindo poema “No Caminho, com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa:

 “Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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Itinerário místico-espiritual de Clarice Lispector

Padre João Medeiros Filho

Em sua infância, Clarice Lispector, de origem ucraniano-judaica, aportou no nordeste do Brasil e aqui ficou. Começou a escrever despretensiosamente por pura inspiração. Vem se tornando objeto de inúmeros estudos universitários e não acadêmicos. Muito se tem dito sobre essa artista da palavra. A linguística e a literatura estudam-na sob vários enfoques. Clarice buscou uma linguagem especial para expressar o estado da alma, utilizando o monólogo e a análise psicológica. Por isso, é considerada uma escritora intimista. A filosofia perpassa pela sua obra. Ultimamente, a teologia tem se voltado para o seu pensamento e legado literário. Há uma percepção teológica de que ela é uma apaixonada pelo mistério de Deus. Seus escritos, especialmente “Paixão segundo G. H.” – que consoante estudiosos parece ser uma metáfora romanceada – desvelam uma intimidade com o Transcendente. Seus leitores e críticos, por vezes, ficam perplexos com a verve espiritualizante de alguns textos.

Quem a conheceu de perto declara se tratar de uma mística no pensar, viver e escrever. Talvez, ela não concordasse com tal afirmação. Porém, o leitor é levado a concluir dessa maneira, quando lê os seus textos. Neles transpiram espiritualidade e busca do Eterno. Santo Tomás de Aquino denomina “Cognitio Dei experimentalis” (conhecimento experimental de Deus). Para Jacques Maritain é “a experiência do Absoluto.” Cabe salientar que os ucranianos são dotados de profunda religiosidade, professando a fé judaico-cristã, por meio de ritos cristãos orientais de tradição bizantina ou pelo culto nas sinagogas. Exemplo dessa espiritualidade é a existência de duas dioceses (eparquias), contando mais de trezentos mil ucranianos (e descendentes), nas cidades de Curitiba e Prudentópolis (PR).

Na leitura atenta da “Paixão segundo G. H.” – denominada por certos pesquisadores de “Paixão do Gênero Humano” – verifica-se o itinerário de despojamento interior que deságua na comunhão com o Transcendente. Há no desenrolar de seus escritos um arrebatamento interior, digno de Teresa d’Ávila e João da Cruz. É patente o processo ascético e purificador, que prepara o seu íntimo, modificando sua concepção do mundo e da vida. Nesse processo existe permanentemente a “mão invisível que me sustenta”, como escreveu, referindo-se a G.H. Esta já não depende mais de si mesma, mas daquele braço que a segura. Assim, suplica: “Ah, não retires de mim a tua mão.” Parece o brado do salmista: “Levanta-te, Senhor, ergue a tua mão e não te esqueças dos que sofrem” (Sl 10/9B, 12). Em determinado momento, acontece o percurso em direção ao Deus que a chamava.

Clarice coloca nos lábios de seu personagem estas palavras, que são uma confissão da alma: “Eu estava em pleno seio de uma indiferença que era quieta…, de um Deus que, se eu amava, não compreendia o que Ele queria de mim.” Aqui, poder-se-ia encontrar análoga angústia interior que queimava o coração e as entranhas de Agostinho. No meio da luta e provação, da busca e do pranto, sente que a misericórdia divina vem socorrê-la. “E no soluço veio a mim o Deus que me ocupa toda agora.” Ele penetrou em seu âmago e ela sentiu – como o Bispo de Hipona – que Deus não estava distante, mas dentro dela. Nos relatos metafóricos do romance de Clarice, inicia-se o diálogo entre o Criador e aquela que O procurava.

Nos textos claricianos percebe-se claramente sua sensibilidade espiritual e suas raízes judaicas, que esperam pelo Senhor, à semelhança do salmista: “Das profundezas, Senhor, eu clamo a Ti, escuta a minha voz” (Sl 130/129). É o mesmo sentimento de Moisés, ao perceber a inebriante presença de Javé, diante da sarça ardente, no Monte Horeb, como consta do Livro do Êxodo (Ex, 3, 1 ss). Lispector encontrou, através da palavra escrita, o rosto do Todo-Poderoso, que tanto buscava ao longo de sua vida. E, paulatinamente, Ele se revela em seu mistério jamais totalmente desvelado. Na ucraniana-brasileira confirmam-se a veracidade e a força daquilo que proclama o salmista: “Em Ti eu confiei, não ficarei envergonhado.” (Sl 25/24, 1-2). O contato com a escritora poderá nos ensinar a desviar da onda que banaliza o Divino e a descobrir cotidianamente as manifestações do Mistério inefável de Deus. “Tenho a Ti, Senhor, nada mais quero sobre a terra” (Sl 73/72, 25).

Orgias universitárias

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Thomas E. Woods Jr., em “Como a Igreja Católica construiu a civilização Ocidental” (Quadrante, 2019), nos relembra que a “Universidade foi um fenômeno completamente novo na história da Europa. Nada de parecido existia na Grécia ou na Roma antigas. A instituição que conhecemos atualmente, com as suas Faculdades, cursos, exames e títulos, assim como a distinção entre estudos secundários e superiores, chegam-nos diretamente do mundo medieval. A Igreja desenvolveu o sistema universitário porque, com palavras do historiador Lowrie Daly, era ‘a única instituição na Europa que manifestava um interesse consistente pela preservação e cultivo do saber”. E, da trilha Bolonha, Paris, Oxford e Cambridge, chegamos às Harvards de hoje.

Essa relação Igreja e ensino superior, nas suas origens, não se mostrou muito diferente no Brasil. Peguemos os casos dos primeiros cursos jurídicos do país, criados em São Paulo e Pernambuco. Como anota Nelson Werneck Sodré, em “Síntese de história da cultura brasileira” (DIFEL, 1985), “por circunstância que não importa em coincidência, os dois cursos instalam-se em antigos conventos, em São Paulo e em Olinda, ‘como símbolo da superposição das duas culturas, a religiosa e a profissional que lhe sucede, substituindo o espírito eclesiástico pelo espírito jurídico’. Esses cursos, como fora previsto, tornaram-se provedores de quadros às assembleias e ao governo das províncias e do país”.

De toda sorte, por força de condições impossíveis de aqui analisar, foi tardio, no Brasil, o aparecimento da chamada Universidade. E essa ideia de agrupar faculdades e cursos em universidades deveu-se tanto a uma necessidade premente como a uma mera tendência imitativa do estrangeiro. Datam as primeiras universidades no país de meados da década de 1930, com destaque para a Universidade de São Paulo (USP), de 1934. Já o crescimento industrial pós 2ª Guerra Mundial e, sobretudo, nos anos 1960, firmou a ideia de que o país necessitava de profissionais com formação universitária para enfrentar o exponencial desenvolvimento econômico. A década de 1960 viu a criação de uma gama de universidades federais, públicas e gratuitas, praticamente em todos os estados da nossa Federação.

Não resta dúvida de que a transmissão da “cultura” se dá através de meios sistemáticos e não sistemáticos. O meio sistemático mais usado e efetivo é aquilo que chamamos de ensino. Em todos os tempos e lugares onde enxergamos um desenvolvimento da sociedade sempre existiu um aparelho, uma estrutura, vocacionada à transmissão de cultura/conhecimento. A começar pela alfabetização, sua etapa inicial, e culminando no ensino superior, consagrado nas universidades, como etapa final. A importância das universidades, em especial das universidades públicas, no ensino, extensão e pesquisa no Brasil é intuitiva e evidente. Ela é um compromisso com a razão, a argumentação racional e o espírito de pesquisa que devem caracterizar o mundo contemporâneo.

Todavia – e já adianto que nunca aceitei bem o porquê –, as nossas universidades sempre foram vistas com desconfiança por parcelas da sociedade. Como anota Nelson Werneck Sodré, as contradições da sociedade brasileira, inseridas na questão universidade, operam como explosivos para a destruição desta. Os intelectuais em geral, os professores e estudantes em particular, são tidos sob suspeição. As universidades são ameaçadas ou policialescamente mutiladas, como no Regime Militar, culminando com o expurgo – que tem como antecedente a Alemanha hitlerista, quando esta perdeu, para os EUA principalmente, os seus maiores cientistas –, dos “mestres de mais profundo saber e alto renome”. E “isso corresponde, no fim das contas, a colocar sob suspeita a própria cultura, a supô-la ‘subversiva’ em si”.

É verdade que às vezes a coisa ganha um ar caricato, cômico até. Tenho um primo, que jamais sequer passou pelas beiradas da UFRN, cuja filha está agora ali estudando. Ele está muito preocupado com os comunistas e, sobretudo, com umas tais “surubas” (vão me desculpando o termo), que de há muito, segundo ele, acontecem no curso de direito.

Anoto que fiz direito na UFRN. Depois fui ser ali professor. Mas nunca soube desses bacanais. Talvez seja a confraria mais hermética da civilização universitária ocidental cristã em séculos. Sem qualquer alma caridosa para então me sussurrar, quando hoje oiço dessas míticas orgias, a única coisa que me dá é inveja – de não haver, quando jovem e solteiro, participado delas.  

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL