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Viva a gastronomia brasileira!


Segundo os evangelistas, Cristo apreciava os alimentos e bebidas, chegando a ser acusado pelos adversários de “comilão e beberrão” (Mt 11, 19). Na Eucaristia, Ele transubstancia o pão e o vinho em seu corpo e sangue. Valoriza o alimento e proclama a sua sacralidade, ao se definir “Eu sou o Pão da Vida” (Jo 6, 8). Nesse contexto é costume entre os cristãos começar as refeições com uma prece de agradecimento. Os mosteiros medievais legaram-nos receitas de pratos e bebidas. Os monges eram exímios fabricantes de vinhos, licores, cervejas, tortas, biscoitos etc., além de desenvolver várias práticas agrícolas.
Anualmente, há um concurso internacional para os profissionais da gastronomia, denominado “Bocuse d’Or. Recebeu tal nome em homenagem ao organizador. O evento acontece, em Lyon (França), junto com a feira do Salão Internacional de Restaurantes, Hotelaria e Alimentação – SIRHA. Trata-se de uma prestigiada competição do mundo da gastronomia. A preparação dos pratos acontece diante do público. Na ocasião são organizados outros eventos, como o concurso mundial de “patisserie” e pães. Em 2017, os chefs Luiz Filipe Souza e Giovanna Grotti demonstraram, na versão latino-americana do Bocuse d´Or, que os sabores brasileiros podem agradar aos diferentes paladares. À época, tais estrelas de nossa culinária elaboraram receitas inéditas, capazes de encantar outras nações. No Bocuse d’Or, enquanto acontecem as provas e demonstrações, empresas de vários países mostram o diferencial dos ingredientes a milhares de compradores internacionais, difundindo sua cultura e tradições. As melhores lojas desse tipo de negócio disputam a atenção do mercado consumidor.
“A cada evento os clientes vão conhecendo as diversas formas de usar os produtos brasileiros e se encantam com os ingredientes que oferecemos”, afirmou o chef Luiz Fernando Arruda. Este levou para um desses encontros a tapioca hidratada e o leite de coco, produtos dos mais requisitados por quem buscava novidades. Sobressaíram igualmente o açaí e as polpas de frutas, oriundas do norte e nordeste brasileiro. Muitos compatriotas se deslumbram com comidas e bebidas importadas. O Brasil produz uvas de exportação e cachaça de excelente qualidade. Renova-se aqui o convite para revisitar o inesquecível Mestre Câmara Cascudo, em sua obra “Prelúdio da Cachaça”. Mas, para alguns, degustar pratos e bebidas alienígenas pode parecer chique, conferindo status. Cristo já dizia: “Em sua própria terra, um profeta não é valorizado” (Mc 6, 4).
Com ingredientes de todas as regiões, o Brasil detém uma riqueza imensurável de matéria prima, combinações, condimentos e temperos, que revelam nossa rica diversidade gastronômica. É preciso estudá-la e difundi-la. Foi assim pensando que a UniCatólica do Rio Grande do Norte, em Mossoró, aceitou o desafio e através de um curso de tecnólogo (um dos poucos no RN) defende nossas tradições e hábitos alimentares. A diversidade de clima e biomas que o Brasil possui, faz com que os experts em gastronomia possam contar com um manancial de produtos característicos. Isso possibilita levar à mesa de outros países a riqueza de sabores que temos a oferecer. Assim pensando, a Associação Brasileira de Restaurantes e Bares-ABRASEL promoveu em Natal, entre 18 e 20 de março, o seu 42º Encontro Nacional com a temática “Inovação na Gastronomia brasileira, conectando tradição e modernidade.”
No The Best Chef Awards 2024, ocorrido em novembro nos Emirados Árabes Unidos, o talento de dezessete chefs brasileiros foi reconhecido a nível internacional, recebendo significativa premiação, com mais de oitenta por cento da pontuação. Dentre eles estão: Alex Atala (do Dom, em São Paulo); Manoella Bufara (Manu, em Curitiba); Alberto Landgraf (Oteque, Rio de Janeiro); Fabrício Lemos e Lisiane Arouca (Origem, em Salvador); Ivan Ralston (Tuju, São Paulo); Janaina Rueda (Bar da Dona Onça, São Paulo); Jefferson Rueda (A Casa do Porco, São Paulo); Rafa Costa e Silva (Lasai, Rio de Janeiro). Padre Vieira, do púlpito da Igreja dos Jesuítas de Salvador, já defendia nossa cultura e apresentava matizes de nosso legítimo patriotismo: “Por que buscais tão longe aquilo de que necessitais, se tendes aqui em abundância e melhor?” Diz o salmista: “[Deus] fartou a alma sedenta e encheu de bens a faminta” (Sl 107/106,9).

Saber e sabor

Padre João Medeiros Filho

 Em latim as duas palavras têm origem no mesmo verbo: “sapere” (saber). Dele derivam-se os termos “saporis” (sabor) e “sapientia” (sabedoria). Os portugueses usam-no com dois sentidos: gosto e ciência. Exemplo: “Este prato me soube muito bem. Fulano sabe das coisas.” Segundo etimólogos, saber, enquanto conhecimento, é extensão figurada de sabor. Na vida monacal, comida e entendimento estão intimamente ligados. Os mosteiros medievais eram o berço de excelentes cervejas, vinhos, licores e deliciosos pratos, como também de escolas de alto nível. As grandes abadias europeias ainda são famosas por suas adegas e bibliotecas. Pode parecer estranha a conexão entre paladar e intelecto. Entretanto, é lógica a extensão do significado, ligando o saber à sensação de gosto e prazer. Ter um paladar apurado significa possuir afinidade com o conhecimento ou o discernimento das coisas.

Em vários dicionários, o adjetivo “sapiens” (sábio) tem a mesma acepção e diz respeito tanto ao paladar, quanto ao conhecimento humano. No caso do verbete “sapientia”, o nexo torna-se ainda mais claro. Assim, saber ao mesmo tempo em que é gosto apurado dos alimentos, consiste também em técnicas, habilidades e ciência. Em nossos dias, comer, beber e gastronomia ganharam uma relevância justa e merecida. A culinária, além de arte, adquiriu o status científico. A refeição para os de minha idade dizia respeito a um convívio ao redor da mesa, seja com a família ou os amigos. Hoje, passou também a ser objeto de estudos, refinamento de combinações dos vários elementos, criação de novidades e inusitadas surpresas. A gastronomia está se constituindo em carreira promissora e uma área fértil para pesquisas e estudos. Isso demonstra mais uma vez a conexão indissolúvel entre o sabor e a ciência, o sagrado e o profano. Louvo e exalto a UniCatólica de Mossoró por unir teologia e gastronomia, que cuidam da alma e do corpo.

Pergunta-se: o que entra pela boca passa também pela cabeça? Sem dúvida. Os excessos de alimentos redundam inevitavelmente em efeitos desastrosos na mente. É o caso do alcoolismo, que afeta tantos; da obesidade, que se transformou em epidemia; da bulimia, anorexia e outras doenças da beleza e estética ligadas à alimentação, reflexo de uma sociedade desordenada e desarmônica. Por isso, o paladar e os demais sentidos da corporeidade humana devem ser educados, da mesma forma que o espírito. Um curso de gastronomia faz sentido ao lado de graduações em nutrição, fisioterapia, psicologia, teologia e outras áreas do conhecimento. Nos dias atuais, assiste-se infelizmente a um distanciamento dessa unidade indispensável à vida. Além disso, os agrotóxicos estão poluindo as mesas. Por vezes, ingerem-se alimentos para saciar a fome, desconhecendo-se a ingestão simultânea de doenças e comidas nocivas.

O ato de tomar o alimento e degustá-lo em família vai paulatinamente desaparecendo. O advento da televisão, do celular e outras tecnologias vem impedindo as pessoas de estar à mesa, comendo e exercitando o sabor dos alimentos e o saber nas conversas e trocas do coração. Hoje, a família raramente se reúne em torno da mesa. Em geral, cada um tem um horário de refeição. A comida requentada no micro-ondas é engolida às pressas, sem degustação, comumente em frente à televisão, ao computador ou celular. Rompeu-se o elo entre o sabor e o saber. Nos mosteiros, conventos e alguns seminários, as refeições costumam ser feitas em silêncio, ouvindo-se leituras edificantes. Desta forma, unem-se as duas realidades.

Disse o Senhor Jesus: “O Reino dos Céus é semelhante a um banquete” (Mt 22,1). Nesta sugestiva metáfora, encontra-se um convite à reflexão sobre a importância da gastronomia para dar um sentido profundo à existência humana. À mesa, celebra-se a vida em suas dimensões. Aquilo que parece ser apenas algo para satisfazer uma necessidade biológica, transforma-se em ritual de louvação do nosso existir. Na comida saboreada à mesa, Cristo comparou a beleza desse ato com o Reino de Deus. Donde se infere a grandeza dos gastrólogos, diáconos nessa alegoria sagrada. Entende-se porque Cristo nos legou a Eucaristia numa refeição. “Eu sou o Pão da Vida” (Jo 6, 35). “Tomai e comei todos vós” (Mt 26, 26).

Após fiasco no Rio, ato da esquerda contra anistia de Bolsonaro é um erro. Por Kakay

Manifestação com Bolsonaro em Copacabana pela anistia dos condenados pelo 8/1. Foto: Giorgio de Luca/Entre Nuvens

O fracasso da manifestação de Bolsonaro no Rio de Janeiro ontem foi um evento extremamente significativo. Mesmo com a presença de quatro governadores, políticos influentes da extrema direita e a promessa de reunir um milhão de pessoas, apenas 18 mil bolsonaristas compareceram.

Com o recebimento da denúncia pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 25 de março, contra Bolsonaro e seus aliados, a próxima manifestação a favor da anistia deverá reunir apenas 1.800 pessoas. Com a provável condenação até setembro, se houver outra mobilização, estarão presentes 180. Após a prisão, é improvável que aconteça qualquer manifestação, pois nem o próprio Bolsonaro poderia comparecer, por razões óbvias.

Diante desse cenário, é difícil entender o motivo da convocação feita por Guilherme Boulos para uma manifestação contra a anistia no dia 30 de março. A “resposta” ao bolsonarismo – incluindo Tarcísio – já foi dada pelo retumbante fracasso da manifestação no Rio.

Morador de Copacabana grafa “Sem Anistia” em janelas durante ato bolsonarista. Foto: Alexandre Cassiano

O ato, coordenado por Silas Malafaia, também deixa claro que a defesa de Bolsonaro parece ter abandonado a estratégia jurídica e optado pelo embate político. Parece até que tentam forçar uma prisão preventiva para gerar instabilidade. A manifestação, marcada por agressividade, foi uma afronta ao Supremo Tribunal Federal a poucos dias do recebimento da denúncia.

Realizar uma manifestação contra a anistia, após o fiasco bolsonarista no Rio, seria um grande erro. Se não levarmos um milhão de pessoas – e não levaremos –, daremos espaço para que a direita e a extrema direita explorem essa fraqueza.

O melhor agora é apenas aguardar o desenrolar do processo. Em setembro, Bolsonaro estará condenado. Não devemos cair no jogo da direita.

www.diariodocentrodomundo.com.br

Menos, por favor

Marcelo Alves Dias de Souza

Estes dias o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento do HC 232.627/DF, no qual se discute a manutenção da chamada “prerrogativa de foro”, nos casos de crimes cometidos no cargo público e em razão dele, mesmo depois que a autoridade tenha deixado a função. Prevaleceu, por 7 x 4, o entendimento do relator, Ministro Gilmar Mendes, pela concessão da ordem, para reconhecer a competência do STF para processar e julgar a ação penal originária, com a fixação da seguinte tese: “A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Ter-se-á, segundo consta, a aplicação imediata do novo entendimento aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior. Por derradeiro, o Ministro Flávio Dino ainda propôs acrescentar à proposta de tese um item II com a seguinte redação: “Em qualquer hipótese de foro por prerrogativa de função, não haverá alteração de competência com a investidura em outro cargo público, ou a sua perda, prevalecendo o foro cabível no momento da instauração da investigação pelo Tribunal competente”.

Bom, não vou entrar no mérito da decisão. Pode até ser o melhor direito. E nós, operadores jurídicos, a aplicaremos devidamente (já me manifesto expressamente nesse sentido).

O problema aqui está em ser essa, nos últimos anos, a enésima mudança de entendimento do STF sobre o tema, sem que, na maioria das vezes, haja alteração do texto constitucional ou na disciplina legal pertinentes.

Com todo respeito ao nosso STF – a quem atribuo um papel fundamental na manutenção do nosso Estado Democrático de Direito, sobretudo nos últimos anos –, essa “constante mudança” (desculpem a contradição em termos) de entendimento na temática causa grave perplexidade (ainda muito discutiremos os detalhes e as nuanças, que serão várias, da novel interpretação), tumulto (começará nos próximos dias um sobe e desce de inquéritos e processos), morosidade (esse sobe e desce causará um prejuízo enorme à celeridade da persecução penal) e impunidade na administração da Justiça (com a extrapolação desarrazoada dos prazos previstos, sabemos que a Justiça, entre nós, tarda e falha).

Um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade, com regras de direito constantemente reformuladas e aplicadas de maneira diversa, prejudica muito a confiabilidade no sistema. Se, infelizmente, a instabilidade do direito parece já fazer parte da tradição brasileira, sofrendo o nosso sistema jurídico, num grau altíssimo, desse problema, contribuir jurisprudencialmente o nosso STF para isso é inadmissível. Com todo respeito, claro. Ademais, como de há muito aprendi com o saudoso mestre Arruda Alvim (em “Tratado de Direito Processual Civil”, RT, 1990), a partir da sua requerida estabilidade, deveríamos fomentar uma previsibilidade ou certeza (até bem futura) do que é o direito. A atividade jurisdicional, no seu conjunto e a do STF em especial, deve traduzir e, sobretudo, proporcionar essa certeza, para que os operadores do direito e os jurisdicionados, havendo já uma previsão de como as questões a eles relacionadas seriam tratadas judicialmente, possam melhor ordenar seus negócios e suas condutas. E isso sem falar na igualdade (talvez o fundamento derradeiro da Justiça) de tratamento decorrente de um entendimento jurisprudencial devidamente perene. Nada mais justo que casos semelhantes sejam sempre tratados de maneira semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam tratados, se foi ontem ou é hoje, de modos diversos.

Dito tudo isso, rogo, para a temática aqui referida e para tantas outras tão importantes para o nosso país: mudanças, menos, por favor!     

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

“Pedaços de mim mesmo”

Padre João Medeiros Filho

Eis o título de um livro de Dom José de Medeiros Delgado, primeiro bispo de Caicó (RN), há 37 anos na Casa do Pai. Nutro por ele profunda admiração, respeito e gratidão. Tentarei acrescentar outros fragmentos, não registrados naquela obra. Ao conferir-me o sacramento da confirmação, tocou-me sua belíssima homília sobre o Sermão da Montanha, dirigida aos fiéis de Jucurutu. Hoje, posso aquilatar a profundidade teológica e espiritual de sua pregação. Era o Ano Santo de 1950. Ele preparava-se para ir a Roma. De volta do Vaticano, trouxe-me um terço, bento por Pio XII e dissera-me: “Seja devoto de Nossa Senhora. Ela é a ternura divina, face maternal de Deus. A Igreja precisará de você.” Dom Delgado não tinha a imponência heráldica que caracteriza alguns “príncipes da Igreja”. Seus gestos inspiravam humildade, abertura, serviço, ternura e amor. Poucos sabiam que ele era amicíssimo e compadre de Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima) e outros líderes. De grande conhecimento didático-pedagógico, impressionou o Ministro da Educação, Gustavo Capanema. Sua transferência para São Luís (MA) foi de uma comoção, só repetida em Caicó, quando do sepultamento de Monsenhor Walfredo Gurgel. Queira Deus que o bispo eleito do Seridó conheça seu pensamento e obra pastoral.

Em Caicó, o legado de seu primeiro prelado é ingente. Contemplou as etapas da vida humana. Fundou a “Pupileira”, primeira creche do Seridó, campo de estágio das alunas da Escola Doméstica Darcy Vargas (obra sua) e abrigo seguro para as crianças, cujas mães necessitavam trabalhar. Além do Ginásio Diocesano, criou oito escolas paroquiais para educar jovens de menos recursos financeiros. Os candidatos ao sacerdócio tiveram sua formação no Seminário Cura d’Ars por ele fundado. Para os idosos deixou o Abrigo Dispensário Prof. Pedro Gurgel. Transformou um cemitério desativado em centro de reflexão e treinamento para o laicato.

Considero-me privilegiado por ter conhecido, antes do Concílio Vaticano II, um prelado de tanto espírito ecumênico, profunda visão pastoral, sensibilidade humana e dinamismo social. “Ele apascentava no poder do Senhor e na sublimidade de seu Deus” (Mq 5, 4). Eis alguns de seus gestos icônicos. Em 1942, ao fundar o Ginásio Diocesano, convidou um farmacêutico (Zezinho Gurgel) e uma linguista (Myrtilla Lobo), ambos de confissão evangélica, para ministrar aulas de ciências e língua portuguesa. Por esse motivo, denunciaram-no à Nunciatura Apostólica. O Núncio quis ouvi-lo. Respondeu-lhe: “Convidei-os, não para ensinar religião, mas para transmitir o que eles conhecem bem. Por outro lado, os futuros líderes e doutores de amanhã precisam, desde cedo, aprender a conviver com as diferenças.”

Em 1949, recebeu em sua diocese um seminarista salesiano (Luís de França). Os superiores negaram-lhe a ordenação, pois o jovem sofria de epilepsia, considerada à época, desaconselhável para o presbiterato. Após meses observando o jovem, resolveu ordená-lo. Mais denúncias à Nunciatura. Respondeu ao representante do Vaticano no Brasil: “Sou responsável diante de Cristo pelo rebanho que me confiara. Conheço as necessidades do bispado. Deus não discrimina pessoas. O rapaz não é culpado de padecer dessa enfermidade. Os fiéis têm mais compreensão e sensibilidade do que nós, padres e bispos.” Iria ordenar o levita. Mas, este veio a falecer, não da doença, mas de um infarto fulminante, de tanta emoção, ao comprar o cálice para a sua primeira missa.

A caridade de Dom Delgado surpreendia quem não estava acostumado a ver gestos de benignidade evangélica. A marca característica de suas atitudes era a prática da compreensão e misericórdia divina. Em 1964, quando arcebispo de Fortaleza, acolheu dois membros da Igreja Católica Brasileira: Dom Raimundo Simplício de Almeida e Padre Enemias Freire de Almada, que solicitaram à Santa Sé retorno ao catolicismo romano. Sugeriu que morassem na residência arquiepiscopal, pois careciam de adaptação e mais estudos. Um dia, seu secretário particular dissera-lhe: “Dom Delgado, esse bispo e o padre da Igreja Brasileira não regulam bem.” Respondeu o arcebispo: “Você diz isso por puro preconceito, pois vieram da Igreja Brasileira. Quantos padres desequilibrados você conhece na Igreja Romana e os aceita! Estes dois são simples. Deus poderá se servir deles para fazer o bem.” Disse Jesus: “Misericórdia eu quero e não sacrifícios” (Mt 9, 13).

Codicismos

Marcelo Alves Dias de Souza

Nos sistemas jurídicos filiados à tradição romano-germânica, tem vigorado o primado da lei, fonte quase que exclusiva do direito. E, mais do que isso, a partir do século XVIII, ocorre na Europa um movimento codificador, que encontrou o seu ápice no Código Napoleônico, precursor das muitas codificações modernas, granjeando o aplauso tanto de legisladores como de estudiosos do direito, da época e de hoje.

Houve até um tempo de um tipo de “codicismo”, digamos, hiperinflacionado. Nos albores da vigência do Código Napoleônico, sob o domínio da Escola da Exegese, a lei era aplicada exatamente como ela estava escrita, sem fazer “interpretações”, mesmo que fossem necessárias. Para os defensores desse tipo de “codicismo”, não havia um só caso concreto que não fosse previsto no Código. Nenhuma hermenêutica, ainda mais quando externa ao texto codificado, era minimamente permitida. Dogmatismo legal à décima potência.

Argumentos em prol da supremacia da codificação das leis são fáceis de colecionar. Anota Felix M. Calvo Vidal (em “La Jurisprudencia: fuente del Derecho?”, Editora Lex Nova, 1992) que os “critérios de segurança, de permanência, de estabilidade aparecem sempre como proeminentes. Para a doutrina, a codificação apresenta uma série de vantagens que não se dão em outros casos em que o direito não haja sido condensado em normas legais harmonizadas e organizadas”. E, citando boa doutrina, arremata: “se o Código supõe uma facilidade para o teórico, não é esta menor para o prático, que sabe com relativa facilidade onde buscar com segurança as leis com as quais vai resolver um caso determinado”.

Todavia, o sistema que prega a legislação, seja ela codificada ou não, como uma única fonte do direito, mostra-se, hoje, insuficiente, sobretudo no que diz respeito à necessária correspondência entre o que está previsto em tese na legislação e a realidade nos tribunais e juízos, seja no campo do direito material, seja no campo do direito processual.

E mais: a crise por que passa o direito brasileiro, em especial o seu Poder Judiciário (frequentemente vítima de campanhas orquestradas e injustas), atinge profundamente verdades que se têm por estabelecidas. Aproveitando uma feliz assertiva do já citado Vidal, essa nova situação política e institucional há de implicar também “uma grande flexibilidade técnico-jurídica de adaptação não somente às novas circunstâncias históricas normais, mas também às circunstâncias excepcionais e transitórias”.

Foi por isso que fiquei muito feliz quando li, no site do Senado Federal, que a futura lei para regulação do dito “processo estrutural”, segundo a Comissão ali criada para elaborar o respectivo anteprojeto (presidida pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras), deverá “ser concisa e adaptável para assegurar resultados concretos”. Para quem não sabe, “a expressão processo estrutural surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema”. Temática importantíssima.

Meu receio era que a comissão caísse em um segundo tipo de “codicismo”, que é a mania, em voga na França até hoje, de se criar códigos, longos e detalhadíssimos, para tudo.

Mas não. O anteprojeto será curto. Terá um texto flexível, que privilegie o consenso entre as partes e não a opinião do juiz. Como afirma o relator da referida comissão de juristas, Desembargador Edilson Vitorelli, o papel do anteprojeto de lei “é não atrapalhar”, “é construir”. E, como arremata o vice-presidente da comissão, o potiguar Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, a futura lei não pode trazer retrocessos. Há de se encontrar um texto moderado em prol da eficiência: “todos querem flexibilidade porque o processo estrutural, embora exista e funcione, trabalha na base da tentativa e do erro. Se você amarrar muito as coisas, não pode fazer experimentações. Mas essa flexibilidade não pode prejudicar o fluxo do processo estrutural porque há também um compromisso de que a coisa termine”.

Pois, então, abaixo os codicismos! E viva a moderação!

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

Muito além da arte

Kakay 6 mar online - ARTE KIKO
“Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.”
Fernando Pessoa, na pessoa de Caeiro
A vitória espetacular do filme Ainda Estou Aqui no Oscar vai muito além do mundo da arte, do cinema. Em um momento tão delicado e estarrecedor, com o crescimento da extrema direita no mundo, o filme levou para todos os cantos uma crítica, um alerta e um apelo contra a ditadura. A obra ter mostrado, ainda que de maneira quase leve, a dor do desaparecimento covarde e cruel de um marido, de um pai, de um deputado, de um brasileiro foi um soco no estômago desses fascistas que cultuam a tortura e a morte. E só teria a repercussão que está tendo pela inteligência no enfrentamento de um tema tão grave e doloroso. A cena da família posando para a foto com todos sorrindo é a imagem que mais marca, é o símbolo da resistência contra a violência. É emocionante.
O atual contexto é de uma gravidade imensa. A extrema direita perdeu qualquer limite. No mundo inteiro, assistimos a cenas grotescas de recrudescimento da violência, como o casamento macabro de Trump e Musk. A falta absoluta de qualquer critério, até estético, choca e preocupa. Não se pode imaginar aonde chegarão esses métodos teratológicos de tratar as pessoas e a coisa pública. A vida passou a ter outro significado. A maneira de compreender a política foi drasticamente banalizada. O mundo emburreceu.
Até por isso, o significado dessa vitória cresce. Além da mensagem do filme, é relevante lembrar que, em todas as homenagens, nas mais de 40 comemorações de prêmios diversos, a crítica à tortura, ao covarde desaparecimento e à ditadura estava, de alguma maneira, presente. E chegou a milhões de pessoas mundo afora. Enquanto no Brasil, há muito pouco tempo, nós tivemos que conviver com fascistas que cultuam a tortura e que têm o torturador Brilhante Ustra como ídolo, o mundo inteiro – incluindo o povo brasileiro – parou para acompanhar a dor de uma família vítima da violência da ditadura. E por isso mesmo é importante gritar aos quatro cantos, com uma voz forte, para que nunca mais volte o horror da ditadura que os fascistas de 8 de janeiro tentaram restabelecer: ainda estamos aqui!
Lembrando Mario Quintana, no poema Emergência:
“Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo – para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay