O criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro afirma que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é um serial killer dos crimes de responsabilidade. Kakay, como é mais conhecido, já defendeu quatro presidentes da República, 30 ministros e mais de 80 governadores – segundo as próprias contas – mas não incluiria Jair Bolsonaro no rol de clientes. Ele considera que o ocupante do Palácio da Alvorada tem “hora marcada com a Justiça”, devido aos crimes que estaria cometendo ao longo do mandato.
O advogado acredita que é preciso combater o “poder imperial” do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do procurador-geral da República, Augusto Aras, que não respondem sobre os pedidos de impeachment e os crimes de responsabilidade impunemente. Em entrevista ao R7, Kakay falou sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal(STF) durante a pandemia e no inquérito das fake news, além do exercício da advocacia hoje.
Confira a entrevista:
Recentemente, o senhor e o advogado Juliano Breda publicaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo em que listam possíveis crimes de responsabilidade que teriam sido cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Os senhores chamam o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a admitir um processo de impeachment e o procurador-geral da República, Augusto Aras, a denunciar as irregularidades. O senhor acha que esses pedidos podem prosperar ou é mais uma esperança?
No início, eu era até contrário ao processo de impeachment, mas o Bolsonaro virou um serial killer em termos de crimes de responsabilidade. Talvez, eu nunca tenha visto em nenhum país a hipótese de um presidente ter cometido tantos crimes de responsabilidade. Tenho levantado uma discussão sobre a necessidade de tirarmos o que chamo de “poder imperial” das mãos do presidente da Câmara, no caso do impeachment, e das mãos do procurador-geral da República, porque ele é o dominus litis, ou seja, quem pode apresentar um processo-crime. O Poder Judiciário é um poder inerte, só age se for provocado. Se o relatório da CPI [da Pandemia] vier com uma série de comprovações, como acredito que virá, comprovando a materialidade e a autoria de crimes, inclusive de homicídio por omissão, ainda assim ele será entregue ao presidente da Câmara. Ele poderá, ou não, apresentar um pedido de impeachment que será entregue, também, ao procurador-geral da República, que poderá, ou não, apresentar a denúncia. O PGR passa a ser mais poderoso que os 11 ministros do STF. Hoje, vivemos algo inusitado. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez uma notícia-crime contra o presidente Bolsonaro. Isso é de uma gravidade ímpar. Então, tenho proposto a necessidade de mudarmos o regimento da Câmara. Fui um dos autores daquele pedido que a imprensa intitulou de “superimpeachment” – que, na verdade, era a compilação de mais de 100 processos que estão dormitando na mesa do presidente da Câmara. Ainda assim, ele usou um direito que ele tem, de não apresentar [o processo]. Acho que isso tem que mudar. Você tem que dar um prazo para o presidente da Câmara decidir. Ele pode arquivar, logo, cabe recurso para o Plenário. Da mesma forma, a Procuradoria-Geral da República. Se o procurador-geral não apresentar denúncia num prazo X, que a lei pode estabelecer, é preciso fazer uma consulta a um conjunto de quatro, cinco ou seis subprocuradores que, ou concordaria com o arquivamento, ou que na inação do procurador, pudesse apresentar fundamentalmente a denúncia; isso é, tirar um poder imperial que não funciona, não combina com a República.
A ideia é ter um mecanismo que simplesmente impeça o PGR de sentar em cima dos processos?
É isso. Entendo que deveria ter um prazo hábil. É fácil para as pessoas entenderem. O Brasil está prestando atenção nessa CPI da Covid. Não é uma CPI de uma construtora, de um banco. É uma CPI que cuida de vidas. Faço uma reflexão: você entrega um relatório contundente, com provas, com materialidade, com tudo. O PGR não é obrigado a concordar, mas ele não pode simplesmente desprezar um relatório que foi feito durante meses de trabalho, com o Brasil inteiro parado, vários senadores se debruçando sobre aquilo. Diversas diligências de investigação, de apuração. Quebras de sigilo telefônico, quebras de sigilo bancário e, depois, o procurador pega aquele relatório com tudo que está junto e simplesmente não se manifesta. Há uma incongruência. Por isso que chamo de poder imperial, e deve ser enfrentado.
O senhor defenderia Jair Bolsonaro?
Não. me procurou para advogar para ele quando ainda era candidato. Não critico quem advoga para ele. Todo mundo merece defesa, todo mundo tem que ter advogado. Tenho um escritório pequeno, só faço advocacia criminal. Costumo dizer que, para defender uma pessoa, tenho alguns requisitos. O primeiro, é que não entro num processo que não tenha uma boa defesa técnica. E depois, tenho que ter uma certa empatia mínima, com a tese ou com a pessoa, que me permita me entregar visceralmente à causa. Jamais advogaria para ele, evidentemente. Disse “não” respeitosamente quando ele me procurou. Posteriormente, quando ele revelou ser, no governo, um neofascista que, de certa forma, desestrutura o Brasil – porque nós estamos vendo o óbvio, que são as mais de 500 mil mortes, toda a dor do povo brasileiro, e ele imitando a falta de ar [de uma vítima]. Então, não é apenas o fato de o Bolsonaro ser um político de direita. Não. No governo Fernando Henrique, advoguei para 17 ministros, quatro presidentes e 80 governadores de estados. No governo Lula, advoguei para 13 ministros. Não é uma questão ideológica, absolutamente. Mas é um direito que tenho de não querer advogar para ele.
O senhor disse que tem um escritório pequeno, mas quando se fala do poderio político dos clientes, é um portfólio significativo. Como o senhor maneja a defesa dessas pessoas?
Até muito pouco tempo atrás, o escritório tinha apenas três advogados. Depois, comecei a ser muito chamado para debates e julguei que deveríamos ter uma equipe maior. Agora, temos seis advogados. É pequeno. Frequento escritórios de amigos meus que têm 350 advogados. Nós pegamos poucos casos. De cada 20 casos que batem no escritório, nós pegamos um ou dois. Isso acontece porque todos os casos são diretamente tratados por todos nós. Como a gente pega muito caso que tem relevância, entendo que há uma obrigação de falar com os jornalistas. Se você deixar que o cliente seja massacrado na mídia, haverá um prejulgamento que, tecnicamente, dificultará o processo depois. Muitas vezes, o cliente fala que quer contratar um assessor de imprensa. Já falo: assessor de imprensa bom é aquele que te tira da imprensa. Se não, deixa que sou o interlocutor. Muitas vezes, você deixa o cliente falar, porém, sofrer um processo penal é, em si só, uma condenação. Infelizmente, criou-se uma cultura de vazamentos, especialmente na época da Operação Lava Jato. Se o jornalista tem uma informação, ele tem o dever de publicar, ele não comete crime algum. O que não pode acontecer é: quem tem o dever de sigilo, seja juiz, seja delegado de polícia, seja procurador da República, passar para frente.
Falando agora do Supremo Tribunal Federal (STF), como o senhor acha que a Corte está se comportando neste momento? Houve, recentemente, uma manifestação mais dura do presidente Fux. Qual sua percepção?
Tem uma frase que gosto muito: “É muito tarde, mas ainda é tempo”. Acho que demorou um pouco [a manifestação], mas o Supremo não tem faltado ao país. Durante a pandemia, na área da saúde, o verdadeiro ministro da Saúde foi o ministro Lewandowski, do STF. Quem determinou a abertura da CPI foi o ministro Luís Roberto Barroso. O Supremo é um poder inerte, ele só age se provocado. Mas ele tem dado respostas. O Legislativo tem se omitido. Se o presidente da República tivesse força junto às Forças Armadas, ele já teria dado um golpe. Ele não tem prestígio ou poder para dar o golpe, mas ele tenciona, causa instabilidade. Esse gesto inédito do ministro Luís Roberto Barroso, enquanto presidente do TSE, que determinou a abertura de uma notícia-crime contra o presidente da República é algo gravíssimo. O ministro Alexandre [de Moraes] tomou, ainda, a providência de seguir com o processo. Nesse ponto, o Supremo não tem faltado ao país. Recentemente, Congresso Nacional tomou a atitude de arquivar a PEC absurda do voto impresso, implementada para desestabilizar a democracia.
O que o senhor acha do inquérito dasfake news, que o Supremo abriu por conta própria?
Eu estava no Plenário no dia 14 de março, quando esse inquérito foi aberto. Desde o primeiro momento aplaudi essa ação. Primeiro porque o artigo 43 do regimento é claríssimo. É óbvio que o ministro do Supremo pode abrir um processo, como qualquer ministro pode. A história fará justiça aos que estão atuando nesse inquérito. Primeiro, a coragem do ministro [Dias] Toffoli de fazer aquilo no momento em que havia gravíssimas questões acontecendo que poderiam ensejar a quebra da institucionalidade, inclusive com o fechamento do Supremo. Então, o Supremo agiu muito bem. É muito interessante notar que o número dessas ameaças reais, dos grupos que financiavam, caiu assustadoramente. Agora, o ministro Barroso endereçou ao ministro Alexandre para investigar uma conduta do presidente da República. Ele não pode ser investigado por atos anteriores ao mandato, mas por atos durante o mandato, ele pode.
O senhor elencou crimes de responsabilidade e crimes comuns por parte do presidente Jair Bolsonaro. Caso ele não seja reeleito, o senhor acha que ele pode ser preso?
Não tenho bola de cristal, mas acompanho política há muito tempo. Acho que boa parte desse destempero absoluto dele, vai além de um despreparo. É um desespero. Porque está ficando muito clara a quantidade de crimes e, cada vez mais, as investigações se aproximam do presidente e de seus familiares. Ele respondeu ao ministro Alexandre dizendo que ia sair das quatro linhas da Constituição. É algo inusitado. O presidente da República explicita o desejo de dar um golpe. Entendo que parte disso ocorre porque ele sabe que tem uma hora marcada com o Poder Judiciário e com a Justiça.
O senhor falou em espetacularização da Justiça. A Lava Jato contribuiu para isso?
Essa espetacularização sempre existiu em casos específicos. O Mensalão foi um caso específico de espetacularização. Agora, muitas pessoas que influenciaram, falaram, fizeram uma campanha de espetacularização, especialmente na Lava Jato, estão vendo que deveriam ter agido de forma diferente. A Lava Jato foi uma operação importantíssima. Desnudou um grau de corrupção capilarizado que ninguém poderia imaginar a existência. Mas passou a ser um projeto de poder desse grupinho que pretendia ganhar o Poder Executivo e dominar o país. A exemplo desse ex-juiz, fraquíssimo intelectualmente, mas com um poder midiático grande. Ele tinha um projeto de poder, esse que foi o problema. Ele corrompeu o sistema de Justiça para chegar ao poder. E chegou. O ex-juiz [Sergio] Moro, enquanto ainda usava a toga sagrada do Poder Judiciário, determinou a prisão do principal opositor do presidente Bolsonaro e depois aceitou, ainda com a toga, conversar sobre cargos com o governo que ele ajudou a eleger. O governo Bolsonaro é filho dileto e direto do Moro e dos procuradores. Eles se elegeram porque o Lula foi preso e depois foi tudo anulado por causa da parcialidade dele. Eles ganharam na visão deles, porque o Moro foi ministro da Justiça do governo Bolsonaro, executando as ordens do presidente e perseguindo seus adversários com a Lei de Segurança Nacional. Depois se separaram, numa briga clara de quadrilha, divisão de poder. Não há nada ideológico nisso. É muito grave. A Lava Jato foi uma forma de se fazer uma corrupção no sistema de justiça como nunca foi feito. Foi muito interessante ver esse Deltan [Dallagnol] dizendo que os advogados entram com recursos demais, alegam prescrição – como se ele fosse o senhor da verdade. Depois, ele contratou um grande advogado, o ex-ministro [Francisco] Rezek e, com todo o direito, ocupou a tribuna do julgamento dele pedindo a prescrição. É assim que funciona: o advogado tem o direito de usar os meios de defesa. A hipocrisia é algo que cansa. Então, essa espetacularização é extremamente negativa.
Como está o exercício da advocacia hoje, com todas essas questões que o senhor coloca?
Seguramente é mais difícil. Quando o processo está mais espetacularizado, você tem que debater fora dos limites técnicos. Essa espetacularização é extremamente negativa para o Poder Judiciário como um todo, pois existe a superexposição dos ministros e dos advogados. A vaidade é um problema para todos nós. Como é que você quer que um advogado não fique vaidoso se ele usa uma beca preta, assume uma tribuna perante 11 ministros e é televisionado para o Brasil inteiro? Não tem jeito, a vaidade é negativa.
O senhor falou bastante em vaidade, mas o senhor nunca se furtou a se vestir como o senhor quer, ter a aparência que o senhor quer. O senhor também não tem essa vaidade?
Lógico que sim, sem nenhuma dúvida. Nunca me enquadrei nos moldes tradicionais da advocacia. Agora, cortei meu cabelo, que estava enorme. Uso um colar que gosto, visto uma roupa informal, dificilmente coloco um terno. Mas, em nenhum momento, significa que tenho menos respeito ao Judiciário. Primeiro, porque não me levo tão a sério para dar importância a esses ritos da advocacia e do Poder Judiciário. Acho que temos um excesso de formalidades que afastam o cidadão. Devemos trabalhar a vaidade. Falar que não tem, é mentira.
Fonte: R7