Brasília não é um lugar para principiantes. Como sede do poder político federal, a cidade pulsa com um ritmo que, para quem sabe ouvir, faz a diferença. Quem não viveu a redemocratização talvez não entenda e possa achar pueril, mas até o ambiente político que se vivia no mítico restaurante Piantella faz falta.
Não é pouca coisa você ter um espaço onde, depois das exaustivas e tensas discussões no Congresso, sentavam-se à mesma mesa José Genoíno, José Dirceu, Delfim Neto, Antônio Carlos Magalhães, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique e tantos outros. Os distencionamentos que se davam ali, diretamente, eram, muitas vezes, mais produtivos do que as cansativas reuniões políticas.
Da mesma maneira, os encontros informais, especialmente na Granja do Torto, com o presidente Lula, à época ávido para ouvir, nos quais, muitas vezes, falavam-se verdades difíceis de serem ditas nas audiências formais, de gravata, com assessores e ar condicionado. Saber ouvir era uma marca daqueles tempos e fazia toda diferença.
Desse dia a dia com ares de certa normalidade, criava-se uma expectativa sobre o que nós, sem cargos ou ambições pessoais, esperávamos do governo. Há um episódio sobre a Polícia Federal que, penso, delimita o que é a áurea que se cria em torno dos governos e, especialmente, dos governantes.
No começo do governo Fernando Henrique, assumiu o Ministério da Justiça o excelente advogado José Carlos Dias. Homem comprometido com os direitos humanos, com a democracia e com sólida história a favor das liberdades. Ele me procurou e pediu para sondar o delegado da Polícia Federal dr. Paulo Lacerda para ser o diretor-geral da instituição. Nós o conhecíamos pelo trabalho sério e competente que fazia.
Em Brasília, é assim: a autoridade não faz, em regra, o convite direto, pois é ruim ouvir um não. Salvo em situações de um forte relacionamento pessoal, é comum sondar aquele que será convidado. O delegado foi educado, mas direto: disse ter enorme respeito pelo ministro José Carlos, admiração mesmo, mas ele considerava que não teria a autonomia necessária para fazer o que julgava necessário na gestão tucana. E declinou.
Passam-se os anos e toma posse o presidente Lula. O ministro da Justiça nomeado, Márcio Thomaz Bastos, um advogado na plenitude da palavra, chamou-me e falou para eu sondar o dr. Paulo Lacerda para ser o diretor-geral da PF. Contei a ele o episódio anterior, o da negativa, mas ele insistiu. Novamente, fui até ele, que me disse que, com o que ouvia sobre o governo que estava tomando posse, ele aceitaria, pois teria liberdade e autonomia para fazer o que considerasse correto. Assumiu a Polícia Federal e fez um excepcional trabalho.
O que se diz e o que se ouve faz parte do dia a dia da política em Brasília. Tem que saber, principalmente, ouvir. Deveriam ter a grandeza da imortal Clarice Lispector:
“Adoro ouvir coisas que dão a medida de minha ignorância”.
Coisas de Brasília. Corria o ano de 2009, quando se anunciava uma disputa entre 2 queridos amigos meus, senadores da República, para a presidência do Senado Federal: Sarney e Tião Viana. Um importante jornal fez uma matéria enorme dizendo que eu era advogado, à época e concomitantemente, de 15 senadores. E brincava que eu tinha a maior bancada do Senado.
Que eu era advogado desses senadores era um fato, mas, que eu tinha alguma influência, isso corria por causa da lenda urbana da cidade. Eu nunca confirmei, mas, óbvio, também não desmentia o tal poder, assumindo um ditado lá da minha Patos de Minas: “fama de poderoso, comedor e valente a gente não desmente”.
O então senador Tião Viana me chamou para conversar e eu fui muito sincero e direto. Expliquei que, embora advogasse para vários senadores e fosse até amigo de vários, não tinha nenhuma ascendência ou poder. Mas expliquei a ele, por lealdade, que, se tivesse um único voto, votaria no ex-presidente Sarney. Assim deve ser a vida em Brasília: ouvir muito, ser leal e não sucumbir à ilusão do poder.
Depois da catástrofe bolsonarista, a política mudou muito. Certa vez, diz a lenda, perguntaram ao então senador Petrônio Portella, grande político e excepcional articulador, qual lugar seria melhor, se no céu ou no Senado da República. Ele teria respondido que o Senado era melhor, pois não era necessário morrer para chegar lá. Era uma outra época.
Nesta semana, senadores, que têm a missão constitucional de participar da sabatina do ministro da Justiça Flávio Dino, indicado para o alto cargo de ministro do Supremo, subiram em um carro de som em frente ao Congresso para se manifestar, junto com uns poucos gatos pingados bolsonaristas, contra a indicação. É um momento delicado da política nacional.
Brasília sempre foi uma cidade misteriosa. E, mesmo quem não se deixa levar pela ilusão do poder, pode ser vítima das trapaças da sorte. Certa vez, fui procurado pelo meu contemporâneo de faculdade Joaquim Barbosa pedindo para que eu o apresentasse ao então todo poderoso ministro José Dirceu. O presidente Lula havia se manifestado afirmando querer um negro no Supremo Tribunal. Disse que faria isso, pois ele era íntegro, correto e com um bom currículo, embora não o apoiasse.
Na reunião de apresentação, uma frase do ministro José Dirceu deu sinais de como Brasília pode ser cruel. Ao se cumprimentarem, ele disse ao Joaquim: “Doutor, precisamos mudar a maneira de prover cargos tão importantes. Não é correto que o senhor venha pedir meu apoio, pois, se o senhor virar ministro do Supremo Tribunal, poderá vir a me julgar como ministro de Estado”.
O Joaquim Barbosa virou ministro do STF, relator do Mensalão e o resto da história todos nós sabemos. Aqui, em Brasília, não tem só a ilusão do poder, existe também a ânsia pelo poder e o poder que cega.
Como nos ensinou Pessoa, na pessoa de Bernardo Soares, no “Livro do Desassossego”: “Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer”.