“O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos.” Mia Couto
Saindo da Bienal de Veneza rumo a Paris, sempre fica a ilusão de que a arte vai superar o horror, a mediocridade e a guerra. Embora a gente saiba que não é verdade, sonhar é que nos sustenta. Talvez o ato de simbolismo artístico mais forte, dentre tanta beleza, tenha sido o dos artistas israelenses terem optado por manter fechado o pavilhão de Israel em um protesto contra a guerra, contra a morte e contra o genocídio. Só abrirão quando for decretado efetivamente o cessar fogo e todos os reféns forem liberados. Como a Bienal vai durar até 24 de novembro, ainda podemos manter a esperança. Foi tocante ouvir o silêncio eloquente de um povo e ver uma opção pela paz. A arte e a cultura não combinam com a opressão da guerra.
Tiveram momentos de alta indagação artística, como um ato de um grupo indígena dos EUA com uma dança estranha, que mais parecia o que restou dos aborígenos americanos, trucidados pela cavalaria ianque em uma pajelança que lembrava os índios de parque de diversão. Como tudo pode ser arte, a gente observa, constrangido, quase triste. Mas é uma representação real de um país que assusta o mundo com a volta do Trump.
Sem entender nada de arte, só observando com liberdade, foi lindo ver a força da cultura popular. Um grande espaço para a arte de representação não acadêmica. Que, talvez, seja uma expressão necessária que pode apresentar um sentimento do que a arte significa para um dado período da humanidade.
Os grandes artistas, clássicos, conseguiram, em regra, captar a essência, a alma mesmo, de momentos da história. Às vezes, muito além do momento. Criaram. Viajaram. Contaram histórias ainda não escritas. A história, não interessa se verdadeira, de Michelangelo frente a escultura de David – a mais deslumbrante do mundo – diz tudo. Indagado como conseguiu, ele teria dito: eu me sentei em frente ao bloco de mármore por meses a fio. Fui imaginando David. Um dia resolvi que tinha que criá-lo: e aí peguei o material para entalhar e foi só retirar o excesso. Quando terminei, restou David.
Por isso, acredito na arte como poder de transformação. Não tem polícia matadora de Tarcísio, sentimento racista de Bolsonaro e ignorância atávica de Zema que serão capazes de calar o clima revolucionário de uma exposição como a Bienal. Ali, no meio de tanta criatividade, a gente tem a impressão de que o mundo existe, respira e pulsa além da mediocridade castradora. Tolo de quem, como eu, não consegue enxergar só o poder libertador da arte. Que fica sempre preso à polaridade política. Afinal, a arte existe é mesmo para nos libertar.
Como nos lembrou Nietzsche:
“Temos a arte para não morrer da verdade.”
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