Padre João Medeiros Filho
Anuncia-se para breve a inauguração da Barragem de Oiticica, localizada no município de Jucurutu (RN). Há os que reclamam a autoria do projeto, ignorando a real origem da ideia. Aliás, poucos conhecem o relato dos acontecimentos. Há três anos, publiquei um artigo neste jornal, abordando o assunto. Os verdadeiros protagonistas de uma história nem sempre são lembrados. Por vezes, outros recebem os louros da vitória. Em 1951, o Nordeste brasileiro viveu uma de suas inclementes secas. À época, era bispo de Caicó Dom José de Medeiros Delgado, tendo como vigário geral Monsenhor Walfredo Dantas Gurgel. O deputado Stoessel de Brito – proprietário da Fazenda Baixio e amicíssimo do bispo – representava Jucurutu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.
Em abril de 1951, deflagrada a seca e diante do sofrimento da população, Dom Delgado convocou uma reunião naquela fazenda com as lideranças do Seridó para encontrar meios de amenizar as consequências do flagelo. Participou dessa reunião meu pai, então vice-prefeito de Jucurutu, levando-me consigo, vez que os anfitriões eram os meus padrinhos de batismo. Deveria acompanhá-lo para lhes pedir a benção e ao senhor bispo. Tempos depois, ouvi deles o relato completo da reunião. Em setembro desse ano, o prelado foi promovido por Pio XII a arcebispo de São Luís (MA) e seu vigário geral assumiu o segundo mandato de deputado federal.
Em geral, nos períodos de seca, o poder público organizava frentes de trabalho para os agricultores, impedidos de cultivar a terra. Tais ações eram coordenadas pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas – DNOCS. Na reunião, acatando a sugestão do bispo diocesano, os participantes decidiram à unanimidade propor ao governo federal um empreendimento duradouro e não mero paliativo. Optou-se por indicar a construção de uma barragem, perto de Barra de Santana, sobre o Rio Piranhas-Açu, para ser um reservatório hídrico, destinado também à pesca e irrigação. O prelado caicoense conhecia bem o potencial do rio, pois quando jovem residiu perto de sua nascente.
Dom Delgado viajou ao Rio de Janeiro para tratar do assunto junto ao governo federal. Encontrou-se primeiramente com o Ministro da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida. Este era sobrinho de Monsenhor Walfredo Leal, ex-governador da Paraíba (pelo lado materno) e Monsenhor Odilon Benvindo de Almeida (pelo lado paterno). Tios e sobrinho tinham profunda estima pelo bispo de Caicó, anteriormente pároco de Campina Grande (PB). Na capital da República, Dom Delgado foi recebido em audiência pelo Vice-Presidente Café Filho, estando acompanhado de Monsenhor Walfredo Gurgel e também de seu compadre Tristão de Athayde. Das tratativas nos encontros resultou o ato federal, autorizando o início da construção da Barragem de Oiticica. O engenheiro Clóvis Gonçalves dos Santos fora escolhido para dirigir as obras.
O Ministro José Américo alocou recursos para a barragem e enviou gêneros alimentícios destinados aos flagelados do estado do RN, cuja distribuição ficaria a cargo das dioceses para evitar a exploração das vítimas pelos “barracões” (armazéns), integrantes da “indústria das secas”. O referido ministro chegou a ser indicado pelo Presidente Vargas embaixador do Brasil junto ao Vaticano. Entretanto, declinou da honrosa escolha.
O bispado de Caicó pensou na assistência religiosa aos operários. O pároco de Jucurutu, Padre Deoclides de Brito Diniz, dedicava especial atenção aos trabalhadores. No início das atividades, o inesquecível sacerdote abençoou o canteiro de obras e leu uma mensagem profética de Dom Delgado: “O suor de tantos, aqui derramado, um dia converter-se-á em água abundante para matar a sede e fome de nosso povo.” Anos depois, não concluída, a barragem recebeu o nome de “Governador Iberê Ferreira”. Oiticica tem a Igreja como sua inspiradora. Deste modo e num ato de justiça e gratidão, sem detrimento à homenagem prestada a nosso ex-governador, dever-se-ia denominar todo o conjunto da obra de “Complexo Hídrico Dom Delgado”. Um dos primeiros operários da construção da barragem foi o jovem Raimundo Sérvulo da Silva, hoje pároco emérito de Acari, carregando no corpo a marca de um acidente de trabalho, ali ocorrido. Não se deve esquecer o alerta de Cristo: “Dai a Cesar, o que é de Cesar; e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22, 21).