Como já disse aqui, os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar. Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. É um lugar sagrado onde se faz justiça, na medida em que o seu oposto, o espaço externo, seria, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), “o reino da violência, da barbárie e da desordem”.
Mas essa é uma arquitetura – a dos palácios ou fóruns de justiça – que também constrange. Muitos dos edifícios são grandiosos, às vezes suntuosos, feitos especialmente para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar. A grandiosidade e simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, a visão.
Como anota Eduardo C. B. Bittar, “ao ser mergulhado na experiência de uma Court House, mensagens explícitas e mensagens subliminares são constituídas no universo dos destinatários das mensagens. E as reações são várias: admiração; reverência; espanto; medo; constrangimento; pequenez; temor; respeito; imposição”. E essa enorme carga simbólica atinge tanto seu frequentador recorrente (juízes, promotores, advogados, serventuários, policiais etc.), como o seu frequentador ocasional, o cidadão ou jurisdicionado.
Tomemos como exemplo dessa grandiosidade opressiva o Palais de Justice de Paris, o maior “templo jurídico” da França, onde, como anota François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012), “centenas de profissionais do direito e litigantes vão todos os dias e são circundados por prestigiosos vestígios de mais de 1000 anos de história”.
Sobre o Palais de Justice, para deixar a coisa mais lúdica, leiamos o “depoimento” do Comissário Maigret, o detetive imaginado por Georges Simenon (1903-1989). Em “Maigret no tribunal” (L&PM, 2013), ele nos confessa que a sala de audiência do Palais, embora fisicamente próxima do seu ambiente de trabalho, é outro mundo, no qual as palavras não têm o mesmo sentido que nas ruas, “um universo abstrato, alegórico, ao mesmo tempo solene e impertinente”. Acredito que aqueles que “fazem” a Justiça (juízes, promotores, advogados) já devem ter sentido essa asfixia anacrônica poeticamente descrita por Maigret/Simenon. Eu já senti. Imaginem a sensação daqueles que vão aos “palácios de justiça” ocasionalmente (partes, vítimas e testemunhas), não acostumados àquele ambiente opressor. Para eles, quanto mais rápido aquela “tortura” acabar, melhor.
E vou mais longe nessa mistura da “arquitetura jurídica” com a literatura aludindo a Kafka (1883-1924) e ao seu célebre romance “O processo”, de 1925. Na conhecida narrativa “Diante da Lei”, tem-se um camponês que pede admissão ao porteiro que está na entrada à “lei”. O porteiro recusa e responde evasivamente que o camponês poderá entrar mais tarde. Quando o humilde homem, do portão, olha para o interior da “lei”, o porteiro adverte-o de que é inútil tentar entrar sem permissão. Anos se passam. O humilde camponês envelhece. Esquece até que existem outras entradas e porteiros. Próximo de morrer, ele indaga por que, em todos aqueles anos, nenhuma outra pessoa solicitou entrada na “lei”. O porteiro responde que aquela porta havia estado aberta só para ele e que, agora que ele está morrendo, vai cerrá-la.
“Diante da Lei” é uma parábola. Ela tem um fim moral ou ensinamento de vida. Mas qual seria essa “moral da história”? Kafka deixa a resposta ao leitor. Há mil interpretações. Eu tenho as minhas. Numa delas relaciono a parábola aos “palácios da justiça”, que, na sua grandiosidade, já na “porta” do aparelho judicial, impedem o acesso dos vulneráveis à “lei”. Não enfrentamos devidamente os porteiros. Os palácios. Os nossos moinhos de vento.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL