Em prol de nossa cultura

Foto: João Gilberto

Padre João Medeiros Filho

Em geral, por cultura entende-se um conjunto de ideias, símbolos, expressões artísticas, hábitos e tradições, transmitidos de geração em geração, através da vida em sociedade, incluindo o idioma falado e a culinária. Trata-se de uma variante de determinada herança social da humanidade. É também um processo cumulativo, no qual as modificações trazidas por alguns são repassadas a seus sucessores, incorporando-se a outros elementos. Não se pretende aqui uma definição acadêmica, e sim uma abordagem do cotidiano. Em face da globalização, mais do que nunca somos convidados a preservar nosso patrimônio material e imaterial.

Recentemente, dirigimo-nos a um restaurante para almoçar. Pessoas amigas desejavam consumir camarão empanado. Uma das responsáveis pelo “buffet” advertiu: “este prato faz parte da comida japonesa e deve ser tomado à parte” (sendo o preço diferenciado). Compreende-se o zelo da funcionária. Mas, atitudes assim contribuem para descaracterizar ou desrespeitar nossas tradições e origens. O camarão é componente cultural norte-rio-grandense. Um de nossos gentílicos é o étimo “potiguar”, que significa na língua indígena “comedor de camarão”. O crustáceo está ligado a nossos hábitos alimentares, desde os tempos coloniais e hoje a nossos produtos exportados. Pelo pouco que conhecemos sobre pratos típicos, o seu preparo empanado não lhe confere exclusividade de culinária japonesa. Os “experts” poderão discorrer melhor sobre a temática.

No entanto, as autoridades e os órgãos de cultura de nosso estado deverão estar mais atentos à proteção de nosso patrimônio. Se não cuidarmos, em breve, pessoas de outros países poderão patentear nossos bordados, queijos, carne de sol, a culinária regional etc. Seremos obrigados a pagar “royalties” por aquilo que é nossa produção (criação por vezes) e remonta a nossas raízes? Há cerca de quinze anos, propusemos um curso de gastronomia regional para o Seridó. O projeto foi apresentado ao MEC, mas por mudança na administração da diocese de Caicó e pouco interesse de alguns dirigentes, o processo foi esquecido e arquivado. Estados do sul e sudeste brasileiros cuidam de seus legados e costumes. Em Minas Gerais, a cachaça é estudada com suas nuances locais. O vinho é abordado academicamente, no Rio Grande do Sul. O mesmo se diga do churrasco e outros elementos de sua cultura. Segundo pesquisadores, o queijo potiguar precede ao mineiro, surgindo no Seridó, no final do século XVI, sob a forma de coalho e manteiga.

Os bordados e rendas seridoenses são uma tradição herdada de Flandres. Assemelham-se às “dentelles de Bruges”. Na paróquia de Campo Grande, padre Pedro Neefs, sacerdote neerlandês, promoveu cursos para as bordadeiras da Serra de João do Vale a fim de preservar a originalidade e a qualidade da produção artesanal. Infelizmente, outros municípios, inclusive de estados vizinhos, começaram a fabricá-los, em larga escala, com uma qualidade inferior e usando material sintético, que degrada mais rapidamente as peças nas primeiras lavagens.

Cabem à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, à Fundação José Augusto e ao Conselho Estadual de Cultura o posicionamento e a elaboração de normas sobre tais assuntos. Ultimamente, o parlamento estadual aprovou um projeto (Lei nº 10.481/2019), declarando nosso patrimônio cultural imaterial a ginga com tapioca. Acreditamos que há outros elementos de maior abrangência e repercussão. Dentro de alguns anos, nossos jovens não saberão mais o que é aluá, espécie, sequilho, mungunzá, buchada, chouriço etc. O consumo alimentar de nosso autóctone deve ser respeitado (enfatizando-se seus diversos preparos): macaxeira, carne assada, linguiça do sertão, farofa d´água, paçoca, tapioca, cuscuz e tantas outras iguarias por nós apreciadas, integrantes de nosso universo alimentar. Há o direito de opção, porém um restaurante não pode se apresentar como tipicamente regional, oferecendo comidas orientais.

Cada vez mais, faz-se necessário o estudo aprimorado das obras de Câmara Cascudo, especialmente a Antologia e a História da Alimentação no Brasil. Seria importante que nos cursos de nutrição e gastronomia, aqui ministrados, houvesse espaço para o aprofundamento das ricas tradições alimentares e da culinária norte-rio-grandense. O apóstolo Paulo já recomendava aos tessalonicenses: “Portanto, meus irmãos, permanecei firmes. Guardai as tradições que tendes aprendido, quer oralmente, quer por escrito”. (2Tes 2,15).

 

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