O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) havia entrado em vigor há menos de um mês quando 11 pessoas, sendo sete adolescentes, desapareceram de um sítio em Magé, na Baixada Fluminense, após serem levados por homens que se identificaram como policiais, em 26 de julho de 1990. Apesar de ser conhecido como Chacina de Acari, bairro onde moravam as famílias, os corpos das vítimas nunca foram encontrados.
A luta por verdade e por justiça, no entanto, revelou ao mundo a força de mulheres negras e de periferia do Rio de Janeiro, que enfrentaram ameaças e preconceitos para tentar ao menos saber onde estavam os corpos de seus filhos.
Lideradas por Edméia da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique da Silva Euzébio (16 anos), Vera Lúcia Flores Leite, mãe de Cristiane Souza Leite (17 anos), e Marilene Lima de Souza, mãe de Rosana Souza Santos (17 anos), elas formaram o movimento Mães de Acari, que reivindicou respostas e denunciou o crime em âmbitos nacional e internacional. O grupo de mães da zona norte do Rio chegou a ser recebido pela primeira-dama da França, Danielle Miterrand, e pelo secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre Sane.
Além desses três jovens, foram vítimas da chacina Hudson de Oliveira Silva, 16 anos, Edson Souza Costa, 16 anos, Antônio Carlos da Silva, 17 anos, Viviane Rocha da Silva, 13 anos, Wallace Oliveira do Nascimento, 17 anos, Hédio Oliveira do Nascimento, 30 anos, Moisés Santos Cruz, 26 anos, e Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, 32 anos.
Solidariedade
Diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, era uma jovem ativista na época do crime e lembra que as Mães de Acari levaram solidariedade a outras famílias de vítimas ao longo de sua jornada e compartilharam sua experiência de luta em todos os lugares em que foi possível. “Não sou parente de vítimas do Estado, mas eu aprendi com elas. Eu era jovem, convivi com elas e aprendi a potência dessa luta das mães. A Anistia Internacional continua até hoje apoiando a luta das mães certamente porque aprendemos com elas o quão central é”.
Jurema Werneck acredita que as Mães de Acari criaram uma metodologia que se repete até hoje quando familiares de vítimas de violência do Estado buscam esclarecimentos ou justiça. Além de cobrarem as instituições, elas investigaram e levaram suas denúncias a outros fóruns. “Elas fizeram denúncias nos âmbitos local, nacional e internacional. Percorreram muitos países do mundo denunciando o Estado Brasileiro, a polícia e as instituições do Rio de Janeiro. Elas não descansaram, não pararam. Só foram paradas pela morte”.
No caso de Edméia, a morte foi por assassinato, em 1993. Edméia já havia alertado as autoridades sobre ameaças que havia sofrido, e, um ano antes, a própria Anistia Internacional havia pedido que o Estado garantisse sua segurança. Mesmo assim, ela foi assassinada à tarde, no centro do Rio de Janeiro.
A Justiça recebeu a denúncia sobre esse homicídio apenas em 2001, e o caso ainda não foi julgado. Segundo o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o processo teve vários recursos por parte da defesa dos réus e, por isso, ainda não foi marcado o dia do julgamento. O processo encontra-se em análise na 6ª Câmara Criminal do TJ-RJ e, entre sete acusados, estão seis policiais militares.
A diretora-executiva da Anistia Internacional vê a contribuição da luta das Mães de Acari em outros movimentos que surgiram depois, inclusive fora do Brasil. “O exemplo delas reverberou não apenas no Brasil e reverbera até hoje, porque outras mães de vítimas continuam lutando e lutam da mesma forma”.
Mobilização
A atuação das Mães de Acari serviu de exemplo para Mônica Cunha, de 55 anos, e sua mobilização a favor dos direitos dos adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas. Um dos filhos de Mônica, Rafael da Silva Cunha, foi assassinado em 2006, aos 20 anos. Para a técnica em educação social, as falhas do sistema socioeducativo transformaram seu filho, no período em que ele ficou internado. “A transformação do meu filho levou ele a ser assassinado por um tiro de fuzil de um policial civil”, afirma ela. “Eles o transformaram no que adoram dizer, que é um adolescente desajustado”.
Mônica Cunha foi uma das fundadoras do Movimento Moleque, há 18 anos, e conta que chegou a conhecer Vera Lúcia e Marilene. “Uma luta específica como a das Mães de Acari, que se inicia pelo desaparecimento forçado, ecoa em todas nós, que somos mulheres negras e que passamos por diversas situações de racismo por nossos filhos. E ecoa no Vidas Negras Importam. Porque não é só o desaparecimento forçado. A gente não quer desaparecimento, não quer assassinato e não quer encarceramento. Nós queremos nossos filhos vivos”.
A mãe ativista acredita que as mulheres negras não tiveram suas dores ouvidas historicamente, e a mobilização das Mães de Acari foi um grito contra esse silêncio. “O que me chamou atenção era a união entre elas”, afirma. “Ver isso nelas foi o que me impulsionou na construção do Movimento Moleque”.
Mônica acredita que o grupo Mães de Acari foi o início de uma articulação que hoje envolve mães de outros estados. “O estado do Rio de Janeiro foi o primeiro estado a consolidar esse grupo de mães e a levar para outros estados, e há cinco anos temos essa rede nacional”, conta ela, que cita a parceria com grupos como as Mães de Maio, de São Paulo, e as Mães de Manguinhos, também do Rio de Janeiro.
Fonte: Agência Brasil